CAPÍTULO XXI
Uma Dor de Cabeça Histórica
— Quando os convencionais deixaram a Casa Branca o último a despedir-se foi o senhor John Dudley, pai da cor numero 8 e autor das 72 invenções.
Era esse Dudley um velhinho de olhar muito vivo e alegre, cuja inteligência tinha fama de ser a mais pronta da América, a mais facetada e contornante. Apreendia tudo instantaneamente, sob todos os aspectos possíveis.
Ao apertar a mão do Presidente Kerlog, disse ele com ar enigmático:
— "Faço votos para que o senhor Presidente descubra a solução pratica com a mesma facilidade com que o senhor Leland descobriu a solução teorica. Isso lhe trará, talvez, uma certa dorzinha de cabeça. Se por acaso se agravar essa dor de cabeça e não ceder a nenhum sedativo, lembre-se deste seu criado e chame-o.
Quero ter a honra de curar uma dor de cabeça histórica...
Disse e saiu a sorrir. Kerlog ficou uns instantes a meditar naquelas palavras enigmáticas, que traziam evidentemente uma intenção oculta. O homem das setenta e duas invenções nada dizia ás tontas.
— "Será que John Dudley possui de sua invenção alguma famosa super-aspirina?" pensou consigo o chefe de estado. Mas o tumulto das preocupações governamentais fez-lo em breve esquecer-se do incidente.
A semana que se seguiu á Convenção foi o pior momento de vida que ainda passou um presidente americano. O ministerio vivia em reuniões continuas, e era de fuga que aqueles homens tomavam algum repouso. A tarefa de manter o país em calma, de evitar a explosão das duas masas prenhes de eletricidades contrarias e suscetíveis de explosão ao menor choque, agravava-se com a premência de solver o caso dentro da formula votada pelos convencionais. Mas entre propor com toda a frieza uma solução daquelas e descobrir os meios de possibiliza-la, ia um abismo.
O ministro da Paz chegou a irritar-se.
— "São facílimas as soluções dessa ordem", disse ele. "Creio até que se em vez de seis velhos lideres reuníssemos aqui seis crianças de escola, o resultado seria o mesmo. É absolutamente impraticável a formula Leland."
O Presidente Kerlog possuía um caráter mais obstinado do que o do seu ministro. Assim foi que objetou:
— "Costumamos chamar impraticável ao que não praticamos ainda. Lembre-se de Colombo com o ovo..."
— "Perfeitamente", contraveio o ministro, "mas já se passou uma semana e não nos ocorre saída. Estou cansado de examinar as sugestões dos nossos tecnicos, todas absurdas, porque em grau maior ou menor implicam o emprego da força, o que seria desencadear a
tormenta. As sugestões de hoje — sete! — parecem-me tão idiotas como as anteriores.
Na realidade assim era. Debaixo do mais absoluto segredo cerca de cinquenta tecnicos do estado, dos mais hábeis que se puderam reunir, davam aos miolos as maiores torturas para afastar do remédio proposto por Leland o termo coação.
Os ministros já manifestavam sintomas de surmenage. Horas e horas perdiam a debater o caso, e nem no sono tinham repouso; o trabalho mental subconsciente os torturava de pesadelos.
No oitavo dia o Presidente apareceu na sala de trabalho a cheirar um frasco de sais. Era a dorzinha de cabeça prevista por John Dudley. No décimo dia essa dor agravou-se de modo a inspirar receio aos ministros. Felizmente a memória do senhor Kerlog funcionou a tempo e fez-lo recordar-se das palavras do convencional Dudley ao despedir-se.
— "A dor de cabeça mata-me", radiou ele para o homem das 72 invenções. "Acuda-me com o remédio, caro Dudley!"
Naquele mesmo dia, á noite, reapareceu John Dudley na Casa Branca, sendo logo introduzido nos aposentos particulares do Presidente.
— "Benvindo seja!" disse este com a mão na testa. "A cabeça estala-me e a dor não cede a sedativo nenhum. Acuda-me com a sua ultra-aspirina."
John Dudley sorriu com malícia.
— "Ouça-me", disse ele, "ouça-me com atenção que sarará dentro de cinco minutos. O seu mal cura-se com um tópico que só eu possuo."
E Dudley começou a falar. Ao cabo do segundo minuto, o Presidente Kerlog tirava a mão da testa. Ao fim do terceiro sorria. Ao quinto, saltava da poltrona e vinha apertar nos braços o terrível velhinho.
– "Maravilhoso!... Mas então é assim absoluto o efeito?”
– "Fiz todas as experiencias e tirei todas as contra provas," respondeu Dudley. "O efeito é absoluto!”
– "Sem dor, sem lesão, sem que o paciente sequer o suspeite?”
– "Exatamente!"
Kerlog sorria, com o olhar distante. O problema que em vão a política tentara solver, a ciência resolvia por um processo mágico.
– "Efeito duplo, então?" insistiu o Presidente.
– "Triplo, aliás", retrucou o malicioso sábio.
O presidente fez cara de surpresa.
— "Sim, pois cura tambem as dores de cabeça históricas..."
Kerlog sorriu e novamente abraçou o homem das 73 invenções,
— Miss Jane, disse eu interrompendo: está a senhora a judiar comigo! Macacos me lambam se percebo qualquer coisa...
— Uma pontinha de mistério é indispensável no tempero dos romances, respondeu a linda criatura. O senhor Ayrton vai ser romancista; deve pois ir aprendendo o sutil segredo da dosagem dos ingredientes...
Miss Jane estava a brincar comigo, não havia duvida. Punha fogo ao estopim de minha curiosidade e deixava-o a arder...
No dia seguinte, continuou ela, reapareceu na Casa Branca o senhor John Dudley, desta vez sobraçando um esquisito embrulho — um embrulho fofo, como se contivesse cabelos humanos.
Entrou e passou uma boa hora em conferência com o Presidente e mais os seus ministros.
O que lá houve ninguém conseguiu saber. Só se soube que, finda a reunião, ao descerem a escadaria, disse o ministro da Paz ao da Equidade:
– "O eterno ovo de Colombo! Bem dizia o Presidente que era necessário teimar...”
– "E que lindos ficam os cabelos!" comentou o da Equidade. "Não só se alisam, como afinam e se tornam sedosos. O peixe morrerá pela carapinha, não ha que ver...”
– Miss Jane... comecei eu, interrompendo-a nesse ponto.
A moça, porém, tapou-me a boca e deu o sinal do chá.
Fiz a cara de compunção com que sempre recebia o tal ponto e vírgula. Mas errei.
— Não faça esse bico de criança, disse miss Jane com a sua finura habitual. O chá é apenas virgula. O senhor Ayrton está convidado a jantar aqui.
Meu coração deu cabriolas dentro do peito, e arrastado por um impulso incoercível tomei... a mão da minha amiga e beijei-a. A mão! Apenas a mão! Timidez — teu nome era Ayrton Lobo!…
– Mas o enigma dos cabelos, miss Jane? Decifre-mo logo, que estou a arder de curiosidade, pedi-lhe logo depois do chá.
Uma história muito simples, senhor Ayrton. John Dudley dedicava-se, havia longo tempo, ao estudo do cabelo negro, esperançado em descobrir o meio de alisa-lo e torna-lo sedoso e absolutamente igual ao da raça branca — e muito se falou na América, alguns anos antes, nos admiráveis resultados das suas experiencias. Até 2228, porém, o sábio não havia tornado publica essa invenção, que seria a 73.a. E ninguém mais pensava no caso quando, dois dias depois da sua conferência particular com o Presidente Kerlog, esvoaçou pelos Estados Unidos uma noticia de sensação: John Dudley havia enfim resolvido o difícil problema capilar.
Os raios Omega, de sua descoberta, tinham a propriedade miraculosa de modificar o cabelo africano. Com três aplicações apenas o mais rebelde pixaim tornava-se não só liso, como ainda fino e sedoso como o cabelo do mais apurado tipo de branco. Os raios Omega influíam no folículo e destruíam nele a tendencia de dar forma elíptica ao filamento capilar. Vencido este pendor para a forma elíptica, cessava o encarapinhamento, que não passa de mera consequência mecânica.
Como é de supor, imensa foi a repercussão da noticia. Cem milhões de criaturas reviravam para o céu os olhos agradecidos. Os negros chegaram a tomar-se de puro êxtase, convictos de que das Alturas descera a pugnar por eles alguma alta divindade, como outrora os bons deuses do Olimpo. Mal repostos ainda da emoção consequente á vitoria de Jim Roy, outra os empolgava agora — e esta mais fecunda, pois redundaria num aperfeiçoamento físico da raça. Já o pigmento fora destruído e, embora o esbranquiçado da pele não se revelasse cor agradável á vista, tinham esperança de obter com o tempo a perfeita equiparação cutânea. Vir agora, e assim de chofre, o resto, o cabelo liso e sedoso, a supressão do teimoso estigma de Cam, era, não havia duvida, sinal de um fim de estágio. Reduzidas desse modo as duas características estigmatizantes da raça, o tipo africano melhorava a ponto de em numerosos casos provocar confusão com o ariano. Entre a miss naturalmente branca e loura e a negra despigmentada e omegada pelo processo Dudley, era quasi nula a diferença.
– Mas a cor dos cabelos? perguntei eu, sempre curioso de minúcias.
– Cor de cabelo bem sabe o senhor Ayrton que não é coisa que dependa da natureza e sim da moda. Hoje, por exemplo, é moda o louro, e nas ruas só vemos louras — louras que amanhã aparecerão de cabelos negros como asas de corvo, se assim o determinar a moda.
Logo em seguida á noticia, estupefaciente como pitada de cocaína, incorporou-se a Dudley Uncurling Company, que estabeleceu em todas as cidades, e nestas em todos os bairros, Postos Desencarapinhantes, como hoje vemos surgir Postos de Vacinação nos anos em que irrompe a varíola. Esses postos multiplicaram-se ao infinito e de um modo mágico, como se uma força oculta empurrasse a Dudley Uncurling Company ao desencarapinhamento da América negra ao menor espaço de tempo possível.
Era dos mais simples o processo. Três aplicações apenas, de três minutos cada uma. Tais facilidades juntas ao custo mínimo — dez centavos por cabeça — fizeram que os negros acorressem aos postos como cães famintos a bofes fumegantes. A vida americana chegou a sofrer um colapso. Só se falava em raio Omega, em folículo, em seção elipsiforme e mais capilotecnicas. A principio irritaram-se os brancos com o que chamavam a segunda camouflage do negro, por fim passaram a divertir-se com o espetáculo deveras curioso da súbita transformação capilar de cem milhões de criaturas. As fabricas de pentes, grampos, loções, shampoos, brilhantinas, tinturas, etc, trabalhavam dia e noite sem conseguirem atender á subitanea procura de tais produtos. Cabeleireiros novos surgiam em todos os cantos e por mais que trabalhassem não davam conta do recado. As negras, sobretudo, viviam num perpetuo sorrir-se a si próprias, metidas dentro de um céu aberto. Passavam os dias ao espelho, muito derretidas, penteando-se e despenteando-se gozosamente. O seu enlevo ao correrem as mãos pelas macias comas omegadas levava-as a esquecer o longuíssimo passado da humilhante carapinha. Brancas, afinal! Libertas afinal do odioso estigma!
Neste ponto da narrativa um raio de luz chofrou-me o cérebro.
— Adivinho tudo agora, miss Jane! gritei batendo na testa. Adivinho a verdadeira solução do problema negro na América! Nem expatriação, nem divisão do país. Apenas branqueamento do negro, igualificação com o branco! decifrei eu, contentíssimo com a minha
tacada.
Mas vi logo que errara de novo. No sorriso com que ela esfriou o meu entusiasmo percebi uma pontinha de piedade pela minha argúcia — pela minha pobre argúcia... Mas era tão boa miss Jane que não teve animo de humilhar-me, como devia. Disse apenas, delicadamente:
— Quasi, quasi adivinhou! Está pertinho...
Como um caramujo cutucado, encolhi-me na poltrona donde me erguera no assomo de ardor divinatorio, e para disfarçar a rata estranhei aquele desvio do assunto principal:
— Mas a que vem esse incidente dos raios Omega no nosso romance, miss Jane?
A moça respondeu de lado:
— Joga xadrez, senhor Ayrton?
Eu só jogava no bicho, mas menti, corando de leve:
– Assim, assim.
Pois nesse caso deve saber que nas partidas bem jogadas um humilde movimento de peão tem tanta importancia para o xeque-mate como um espetaculoso movimento de rainha. Considere este capitulo capilar um movimento de peão e ouça agora o que vou dizer de miss Astor.
— Movimento de rainha... rosnei.
Miss Jane aprovou com um olhar a minha agudeza.
— E de rainha amorosa!completou.
— Amor em 2228? Ainda haverá semelhante coisa em tempo tão recuado?
— O amor é eterno, senhor Ayrton e além de eterno invariável. O que Dafnis sussurrou ao ouvido de Cloé lá nos fundos da Grécia de Longus, sussurraria miss Elvin a um "gorila pelado" de 2228, se porventura descresse do sabino e aderisse ao Homo, como suas companheiras o fizeram.
Pus em miss Jane os meus olhos de carneiro flechado e suspirei. Seria capaz de "sussurrar" ao meu ouvido uma criatura que assim tão cientificamente falava do amor?
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continua… XXII– Amor! Amor!
Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.
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