sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XX– A Convenção Branca


CAPÍTULO XX
A Convenção Branca

Desta vez não tive paciência de esperar novo domingo. Havia um feriado no meio da semana e aproveitei-o para voar ao castelo antes do almoço. Delicioso almoço! Figurei-me durante ele já marido da gentil hospedeira e dono do castelo. Cheguei a olhar com olhos de proprietário através das vidraças, por onde se viam terras e mais terras ótimas para a cultura. Mas foi momentâneo o meu deslize. Do fundo d'alma eu só queria ser dono do coraçãozinho que palpitava no seio da castelã.

Tomamos café na varanda e em seguida miss Jane retomou o fio da história.

— A elevação do índice eugenico-mental do povo da América no ano do choque das raças já era notabilíssima; o modo como agiu a Convenção Branca o demonstrou mais uma vez. Falar em convenção é lembrar a Convenção Francesa, aquele tumulto utópico que fez retórica ás toneladas e decepou cabeças aos montões, como se a produção de frases e a redução de vidas pudesse aumentar o trigo dos celeiros, causa real de todos os males da França.

A Convenção Branca de 2228 nem por sombras lembraria o redemoinho alto-falante de 1789.

Já na composição desse corpo representativo nada se fez como outrora. Os convencionais não penetraram nele pela força dos azares eleitorais e sim por um processo novo de delegação. Todos os ramos da atividade americana tinham á sua testa, naturalmente levados a esse posto pelo grau de eficiencia mental demonstrado, homens que mereceriam o nome de chefes naturais, ou lideres natos. Como hoje é Henry Ford o lider nato da industria americana em virtude da higidez universalmente reconhecida das suas ideias e realizações, assim naquele tempo cada ramo de atividade possuia um lider natural, mantido nessa situação por consenso unânime. Funcionavam tais chefes naturais como órgãos especialíssimos, ápices, vértices, cimos, estações centrais, bulbos raquideanos da classe. Ninguém lhes discutia as ideias de decisões, súmulas sempre da mais alta sabedoria possível no momento — e o chefe cujas ideias passavam a ser discutidas via-se logo automaticamente apeado dessa posição.

De modo que foi facílimo convocar a Convenção Branca. Alem de já estarem naturalmente indicados, os convencionais se resumiam em seis criaturas, respectivamente lideres da industria, do comercio, das finanças, da arte, das ciências e das letras. Eram eles os senhores George Abbot, morador em Detroit e chefe da industria das bonecas falantes, o supremo encanto das crianças americanas; John Perkins, morador em Hudson, onde mantinha um pequeno comercio de peles de lontra branca; Harmsworth, diretor do Banco Universal; John Leland, criador da Puericultura Estética; John Dudley, pai da cor numero 8 e autor de 72 invenções; e finalmente Dorian Davis, poeta de um soneto único sobre o qual se achava a América dividida em dois imensos grupos — os que tinham como defeituoso o quarto verso e os que o tinham como uma forma de beleza só perceptível no futuro.

O Presidente Kerlog não encontrou dificuldades em reunir a Convenção. Radiou uma sucinta mensagem na qual pedia a cada uma das classes sociais a indicação do seu representante para o exame do impasse criado pela vitoria dos negros. Uma hora depois o aparelho receptor do Capitólio registrava os seis nomes previstos, só não havendo unanimidade quanto á indicação do representante das letras. Os que consideravam defeituoso o quarto verso do soneto de Davis preferiram votar em branco.

Dois dias mais tarde congregavam-se na Casa Branca os seis expoentes supremos da raça, sob a presidência do senhor Kerlog.

Solenidade de protocolo, nenhuma. Eram homens simples no trajar e nos modos, criaturas nada relembrativas dos figurões que se reúnem hoje em conferências internacionais, vestidos de soleníssimas sobrecasacas e com solenerrimos tubos de chaminé reluzentes nas cabeças, como se a plumagem dos perus influísse alguma coisa nas ideias dos perus.

Sentaram-se os seis expoentes e ouviram a breve exposição de motivos do chefe do estado. Declarou este que ocupava apenas um posto politico e se via numa emergência racial. Nada fizera, nem faria, antes que a suprema delegação da raça definisse com rigor o caso e lhe estabelecesse um rumo. Como governo, executaria em seguida o veredictum altíssimo. Pedia, pois, aos presentes que lhe dessem as "razões da raça".

Os convencionais ouviram-no com amável atenção e passaram a conversar de outros assuntos, como se estivessem num garden-party.

— "A minha ultima boneca", disse George Abbot, "alem de falar, cose, varre e lava roupa", na perfeição. Tenho uma netinha de seis anos que está positivamente encantada.. .

Ao lado dele Harmsworth confessava que ainda não lera o soneto maravilhoso.

— "Falta de tempo?" indagou Davis.

— "Não. Há em minha casa uma harmonia perfeita sobre o assunto e receio perturba-la adotando um ponto de vista discordante..."

Já Leland debatia com Dudley a possibilidade da cor numero 9 e propunha um lindo nome para essa possível filha futura do espectro solar.

Á encasacada e encartolada gente de hoje parecerá estranho que homens de tal envergadura e em momento tão angustioso, assim puerilmente se recreassem num congresso presidido pelo chefe da nação. É que os nossos medalhões, envenenados pela retórica e pelo atitudismo não alcançam certas formas da ultra beleza, nem compreendem certos segredos de ultra psicologia.

Justamente porque era gravíssima a decisão que iam tomar, e na realidade decisiva para os destinos do genero humano, procuravam manter a serenidade de espirito com repousantes trocas de ideias gentis, enquanto nas profundas dos respectivos cérebros a sentença suprema se elaborava.

Passados quinze minutos nesta recreação espiritual, John Leland ergueu-se e disse com grande calma, depois de grafar num papel meia dúzia de sinais:

— "Senhor Presidente, minha ideia está formada e eu a consigno nesta moção, que tenho a honra de submeter a votos. Vou le-la".

Fez-se no recinto um augusto silencio. Se ainda houvesse moscas no ano 2228 poder-se-ia ouvir alguma voar na sala. Todos sentiam que a Raça Branca ia falar a palavra ultima, a palavra de sentença do mais alto tribunal que ainda se reuniu no mundo.

Leu Leland a sua moção, sucinta e nitida como era de esperar. Sua voz soou como um dobre a finados. Apesar da firmeza de animo dos convencionais, sentia--se que estavam todos de alma tensa como corda de violino em ponto de romper-se. Fugira-lhes das faces o sangue; até o senhor Kerlog, sempre rosado, parecia um vulto de cera.

Quando o ultimo eco da moção Leland morreu naquele ambiente de tumba, todas as cabeças se inclinaram para o peito e todos os olhos se fecharam. A Raça Branca elaborava o seu voto decisivo...

Alguns minutos transcorreram assim. Ao cabo o Presidente Kerlog murmurou:

— "Está a votos a moção Leland".

O primeiro que se ergueu foi Dudley.

– "Voto com Leland", disse ele e sentou-se. Ergueu-se em seguida Harmsworth e disse:

– "Voto com Leland".

O terceiro foi Abbot, que murmurou sem levantar-se da cadeira:

— "Idem".

Os outros limitaram-se a dar igual voto com uma simples indicação de cabeça.

Estava lavrada a sentença de ponto final do negro na América? Sem verborréia, sem inútil dispêndio de retórica, sem citação dos gros bonnets da etnologia e da sociologia, a Suprema Convenção da Raça Branca traçara o diagnostico e dera o remédio exato.

O Presidente Kerlog pronunciou mais meia dúzia de palavras e... pronto! concluiu miss Jane.

Confesso que fiquei desapontando. Quando miss Jane abordou aquele assunto preparei-me para ouvir coisas tremendas. Uma Convenção! A Convenção da Raça Branca! Nunca no mundo se reunira congresso mais alto e proposto a fins mais terríveis. Esperei portanto qualquer coisa de tão eloquente como um jato de seis Mirabeaus, multiplicados por seis Dantons. Em vez disso, um homem que apresenta uma breve moção e mais cinco sujeitos ultra pacíficos que a aprovam friamente — alguns até com a cabeça, sem se erguerem das suas poltronas. Era demais!

– Só isso, miss Jane? exclamei com cara de espectador roubado.

– Só, respondeu ela, muito divertida com o meu logro. Que mais queria?

Mính'alma de latino espalhafatoso não se conformava com a falta de espalhafato.

– Eu queria uma tempestade com raios e trovões. Queria um Jeová tonitroando na sarça ardente. Ou, pelo menos, eloquencia, que diabo!

– Haverá maior eloquencia do que a da precisão absoluta?

Não me convenci. Não ia comigo tanta frieza. Meu sangue quente pedia barulho, berros, murros na mesa, desaforos... Resignei-me, porém, e minha curiosidade tomou pé.

– Mas, afinal de contas, que é que dizia a moção Leland? indaguei.

– Ignoro, respondeu miss Jane. Foi secreta. Só o Presidente, os seis convencionais e depois os tecnicos do estado tiveram conhecimento dos seus termos.

Miss Jane sorria. Ocultava-me qualquer coisa, com certeza para me surpreender no fim. Não insisti e, resignado, disse-lhe:

— Continue, miss Jane...

Miss Jane continuou.
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continua… XXI– Uma Dor de Cabeça Histórica

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

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