CAPITULO XXIII
A Derrocada de um Titã
Mas sarei, e o que me curou foi um filme que an¬dava a empolgar as multidões — A Fera do Mar, por John Barrymore. Havia nele um beijo como nunca no mundo se dera outro igual. Um beijo shakespeariano, um beijo força-da-natureza.
Eu como de habito assistia á fita pensando em miss Jane e ligando todas as cenas ao meu amor. No mo¬mento do beijo vi-me a beijá-la e tal foi o meu ímpeto que cravei as unhas numa coisa gorda que pousara no braço da minha poltrona.
— Seu bruto! berrou uma voz.
Olhei. Uma velha matrona de bigodes e verruga no nariz fulminava-me com os olhos.
Ergui-me numa tontura e saí. O ar frio da noite serenou-me. Errei longo tempo pelas ruas desertas, até que em certo ponto me pilhei a monologar em voz alta:
— Mas não me escapa! Agarro-a e dou-lhe o beijo de John Barrymore! Quero ver onde vai parar aquela impassibilidade de puro espírito. "Interfiro-a" e quero ver...
Quarta, quinta, sexta, sábado... Uf! como custou a chegar o domingo!
Miss Jane recebeu-me com a serenidade antiga, curada já da sua momentânea fraqueza.
— Um pouco pálido, senhor Ayrton! Esteve doente?
—
– Um fiozinho de nervoso, miss Jane, mas já passou.
—
– Aborrecimentos lá na firma com certeza...
—
– Talvez, miss Jane. Está-me envenenando este negocio de viver os domingos no ano 2228. Não supor¬to mais a burrice, a cegueira, a suficiência destes "sapa¬tões" que atravancam o mundo com os seus horríveis fraques internos e externos.
Miss Jane consolou-me.
—
– Paciência, senhor Ayrton. A vida é cheia de maus pedaços — mas ha bons pedaços para os que sabem esperar...
Passei a língua pelos beiços, já agitado.
—
– Jim Roy, por exemplo... continuou ela.
—
– Ah, sim, o negro... gemi com displicência, como quem se recorda de uma coisa muito distante. Naque¬le momento eu estava muito longe de Jim Roy.
Miss Jane, porém, conseguiu recolocar-me no ano 2228.
— Jim Roy, por exemplo, ia ter o seu bom pedaço. Embora não compreendesse a calma dos brancos e ain¬da tivesse a tinir na cabeça as cruéis palavras de Kerlog ditas naquele encontro, passou a aceitar como fato consumado o seu triunfo. O perigo passara. O perigo era o choque das duas raças, uma embriagada com a vitoria, outra ofendida no seu orgulho. Para isso con¬tribuiu não só o vigor de Kerlog como também o opor¬tunismo da 73.ª invenção de John Dudley. Que mara¬vilhoso derivativo! A fúria desencarapinhante dos negros fe-los se esquecerem completamente da política. Datava de três meses a entrada em cena dos abençoados raios Omega, e pelas estatísticas oficiais 97% da popula¬ção negra estava já omegada. Mais uma semana, e os últimos postos se fechariam por falta de carapinha a ali¬sar. Que magnífico dividendo iria distribuir a Dudley Uncurling Company!
Até Jim se omegara e o seu aspecto impressionava agora mais do que nunca. Tornara-se um admirável tipo de branco artificial, diverso dos brancos nativos, apenas pela grossura dos lábios, saliência zigoma tica e chateza do nariz.
Jim entretanto não se sentia o mesmo. Diminui¬rá o seu vigor. Aqueles impulsos ferozes, a violência selvagem que tantas vezes deflagrava em sua alma for¬çando-o a impor-se a mascara do self-control, estavam morrendo nele. Já não era com ardor belicoso que, derramando o olhar da imaginação sobre o rebanho dos cem milhões de negros, sentia em si a possança de um novo Moisés. Cansaço, talvez, No ardor da luta os músculos operam prodígios de resistência. O abatimen¬to só vem depois da vitoria. Jim sentia o abatimento da vitoria depois de haver gozado até á exasperação o delírio do triunfo.
Ia realizar um ideal. O problema negro da Ame¬rica teria com ele no governo a única solução justa.
— "A America ê nossa" monologava. "O branco não quer vida em comum? Dividamo-la. Jim dividirá a America!"
Avaliava muito bem os obstáculos tremendos que haviam de embaraçar a sua ação. Mas com pulso forte saberia quebrar todas as resistências. E que gloria para a raça negra caber a ela o gesto decisivo na eter¬na questão! E que vitoria o ve-la atestar ao mundo uma capacidade evolutiva e de realizações igual á do branco! Moço ainda que fosse, havia de dar-se inteiro á nova republica negra e encaminhá-la aos mais glorio¬sos destinos.
E Jim sonhava o maior sonho que ainda se sonhou no continente.
Na véspera do dia da posse estava ele á noite em sua residência particular, solitário como sempre e imer¬so como sempre no seu grande sonho, quando alguém bateu.
O líder negro despertou e franziu a testa. Não esperava ninguém, não marcara encontro com pessoa alguma...
—
– "Está ai um homem branco natural", veio dizer-lhe um criado.
—
– "Que entre", respondeu Jim, ainda com as rugas do "quem será?" na testa.
Breve pausa. Súbito, a porta do gabinete abre-se e...
— "O Presidente Kerlog!..." exclamou Jim, surpreso da inesperada visita.
O líder branco, pálido como no dia da Convenção, entrou. Aproximou-se vagarosamente do líder negro e pos-lhe a mão sobre o ombro num gesto de piedade comovida.
— "Sim, o Presidente Kerlog, o branco que vem assassinar-te, Jim..."
Aquelas estranhas palavras desnortearam o líder negro, cujos sobrolhos se franziram interrogativamente. Por mais esforço que fizesse não penetrava o sentido da estranha saudação. Mas sorriu e disse:
— "A raça branca não poderia prestar maior home¬nagem á raça negra do que elegendo para carrasco de Jim Roy tão nobre chefe. Que arma escolhe para a missão que traz, Presidente Kerlog? Veneno dos Borgias ou lamina de aço?"
O tom faceto de Jim Roy não desanuviou o ar si¬nistro do líder branco, antes o fez ainda mais doloroso.
— "Minha linguagem não é figurada, Jim. Venho de fato assassinar-te, repito".
Jim continuou a sorrir.
— "E eu repito: com o punhal de Brutus ou com o veneno dos Borgias?"
Kerlog encarou-o com infinita piedade e disse:
— "Arma pior, Jim. Trago na boca a palavra que mata..."
O sorriso que pairava nos lábios do negro começou a desaparecer.
— "Ninguém admira mais", prosseguiu Kerlog, "ninguém respeita mais o líder negro do que eu. Ouso até afirmar que dentro da America branca só eu o justifico e compreendo de maneira absoluta. Vejo nele um avatar de Lincoln, o sonhador de um sonho imenso de jus¬tiça. O homem que ha em Kerlog rende ao homem que ha em Jim todas as homenagens. Mas o branco que ha em Kerlog vem friamente assassinar com a palavra que mata o negro que ha em Jim Roy..."
Tonto pelo imprevisto rumo que ia tomando o due¬lo, o líder negro nada replicou. Limitou-se a verrumar com os olhos o seu antagonista como para extorquir--lhe o pensamento oculto. A pausa que se fez foi lúgubre. Mas Jim logo readquiriu a sua habitual firmeza e disse com ironia dolorosa:
—
– "Não creio que o Presidente Kerlog possua a pa¬lavra que mata. O peito de Jim tem couraças por den¬tro. Quatro séculos de martírio nas torturas físicas da escravidão e nas torturas morais do pária enfibram a alma de quem resume cem milhões de irmãos. O peito de Jim traz couraças de rinoceronte por dentro. Cou¬raças á prova das palavras que matam..."
—
– "Trazia..." emendou mansamente o líder louro. O Jim de hoje não é mais o titã que o Presidente Ker¬log recebeu na Casa Branca. Quando o corisco fulmi¬na a sequóia, a arvore solitária continua de pé, porém outra.
O negro pressentiu a verdade daquilo. Recordou-se de que já não era o mesmo. Mas como Kerlog o adi¬vinhava? Como penetrava assim no seu imo? Ele não confessara a ninguém a súbita queda da sua força vital, e nada a definia melhor do que a imagem do líder branco: arvore siderada onde a seiva já não circula...
Jim, entretanto, reagiu; retesou-se de todas as suas energias em declínio e disse com glacial firmeza:
— "Não importa, Presidente Kerlog. A Casa Bran¬ca restituirá amanhã a Jim Roy a força que o cansaço da vitoria lhe roubou."
Kerlog pousou a mão sobre o ombro do líder negro e disse com profunda piedade:
— "Não subirás os degraus da Casa Branca, Jim..."
O negro deu um salto de pantera acuada e ex¬plodiu:
— "Por que? Acaso conspiram os brancos contra a Constituição? Querem o crime?"
Seu peito arfava.
— "Nada disso", retrucou suavemente Kerlog. "Não penetrarás na Casa Branca porque lá não cabe Sansão de cabelos cortados. Tua presidência seria inútil. Tudo é inútil quando o futuro já não existe.
O tom misterioso de Kerlog impacientava o negro, que sentia algo de terrível prestes a revelar-se.
— "Diga tudo, Presidente Kerlog, diga essa palavra que mata!" gritou ele irritado.
O líder branco deixou cair novas palavras de mistério e tortura, cortantes como o fio das navalhas.
— "Tua raça foi vítima do que chamarás a traição do branco e do que chamarei as razões do branco."
O negro esboçou um rictus de ódio.
—
– "Traição!... E é o Presidente Kerlog quem jus¬tifica a traição!..."
—
– "Não justifico, Jim, consigno-a. Não ha traição quando a senha é Vencer."
Jim sorriu com desprezo.
—
– "A moral branca..."
—
– "Não ha moral entre raças, como não ha moral entre povos. Ha vitoria ou derrota. Tua raça morreu, Jim..."
O negro imobilizou-se. Suas narinas entraram a afiar. Suas feições se decompunham horrorosamente.
— "Tua raça morreu, Jim". — repetiu Kerlog. "Com a frieza implacável do Sangue que nada vê acima de si, o branco pôs um ponto final no negro da America."
Jim quedou-se um instante imóvel, como que adi¬vinhando.
—
– "Os raios Omega!" exclamou afinal num clarão, agarrando os braços de Kerlog com os dedos crispados.
—
– "Sim", confirmou Kerlog. "Os raios de John Dudley possuem virtude dupla... Ao mesmo tempo em que alisam os cabelos..."
Os olhos de Jim saltaram das orbitas. Seu trans¬torno de feições era tamanho que o líder branco vaci¬lou de piedade. A raça cruel, porém, reagiu nele. E, surda, quase imperceptível, aflorou em seus lábios a palavra fatal:
— "... esterilizam o homem."
Nem Shakespeare descreveria o aspecto do líder negro no momento em que a palavra assassina lhe des¬pedaçou o coração. Um terremoto d'alma aluiu por terra o titã. Fe-lo tombar sobre a poltrona, com esga¬res de idiota, encolhido como a criança inerme que vê serpente. Breves crispações de músculos passearam-lhes pelas faces. Dobrou o corpo sobre a secretária. Imobilizou-se.
O líder branco aproximou-se daquela massa de titã extinto, afagou-lhe a pobre cabeça omegada e disse com voz rompida de soluços:
— "Perdoa-me, Jim..."
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continua… XXIV– Crepúsculo
Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.
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