sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Casimiro de Abreu (As Primaveras) Parte 10, final


LIVRO NEGRO

HORAS TRISTES
I

Eu sinto que esta vida já me foge
Qual d’harpa o som final,
E não tenho, como o naúfrago das ondas,
Nas trevas um fanal!
Eu sofro e esta dor que me atormenta
É um suplício atroz!

E p’ra contá-la falta à lira cordas
E aos lábios meus a voz!
Às vezes, no silêncio da minh’alma,
Da noite na mudez,
Eu crio na cabeça mil fantasmas
Que aniquilo outra vez!
Dói-me inda a boca que queimei sedento
Nas esponjas de fel,
E agora sinto no bulhar da mente
A torre de Babel!
Sou triste como o pai que as belas filhas
Viu lânguidas morrer,
E já não pousam no meu rosto pálido
Os risos de prazer!
E contudo, meu Deus! eu sou bem moço,
Deverá só me rir,
E ter fé e ter crença nos amores,
Nas glórias e no porvir!
Eu devera folgar nesta natura
De flores e de luz,
E, mancebo, voltar-me pr’o futuro,
Estrela que seduz!
Agora em vez dos hinos d’esperança,
Dos cantos junvenis,
Tenho a sátira pungente, o riso amargo,
O canto maldiz!
Os outros, - os felizes deste mundo,
Deleitam-se em saraus;
Eu solitário sofro e odeio os homens,
P’ra mim todos são maus!
Eu olho e vejo... - a veiga é de esmeralda,
O céu é todo azul.
Tudo canta e sorri... só na minh’alma
O lodo dum paul!
Mas se ela - a linda filha do meu sonho,
A pálida mulher
Das minhas fantasias, dos seus lábios
Um riso, um só me der;
Se a doce virgem pensativa e bela,
- A pudica vestal
Que eu criei numa noite de delírio
Ao som da saturnal;
Se ela vier enternecida e meiga
Sentar-se junto a mim;
Se eu ouvir sua voz mais doce e terna

Que um doce bandolim;
Se o seu lábio afagar a minha fronte
- Tão férvido vulcão!
E murmurar baixinho ao meu ouvido
As falas da paixão;
Se cair desmaiada nos meus braços
Morrendo de languidez,
De certo remoçado, alegre e louco
Sentira-me talvez!...
Talvez que eu encontrasse as alegrias
Dos tempos que lá vão,
E afogasse na luz da nova aurora
A dor do coração!
Talvez que nos meus lábios desmaiados
Brilhasse o seu sorrir,
E de novo, meu Deus, tivesse crença
Na glória e no porvir!
Talvez minh’alma ressurgisse bela
Aos raios desse sol.
E nas cordas da lira seus gorjeios
Trinasse um rouxinol!
Talvez então que eu me pegasse à vida
Com ânsia e com ardor,
E pudesse aspirando os seus perfumes
Viver do seu amor!
P’ra ela então seria a minha vida,
A glória, os sonhos meus;
E dissera chorando arrependido:
- Bendito seja Deus! -
Abril - 1858

DORES
II

Há dores fundas, agonias lentas,
Dramas pungentes que ninguém consola,
Ou suspeita sequer!
Mágoas maiores do que a dor dum dia,
Do que a morte bebida em taça morna
De lábios de mulher!
Doces falas de amor que o vento espalha,
Juras sentidas de constância eterna
Quebradas ao nascer;
Perfídia e olvido de passados beijos...
São dores essas que o tempo cicatriza
Dos anos no volver.

Se a donzela infiel nos rasga as folhas
Do livro d’alma, magoado e triste
Suspira o coração;
Mas depois outros olhos nos cativam
E loucos vamos em delírios novos
Arder noutra paixão.
Amor é o rio claro das delícias
Que atravessa o deserto, a veiga, o prado,
E o mundo todo o tem!
Que importa ao viajor que a sede abrasa,
Que quer banhar-se nessas águas claras,
Ser aqui ou além?
A veia corre, a fonte não se estanca,
E as verdes margens não se crestam nunca
Na calma dos verões;
Ou quer na primavera, ou quer no inverno,
No doce anseio do bulir das ondas
Palpitam corações.
Não! a dor sem cura, a dor que mata,
É, moço ainda, e perceber na mente
A dúvida a sorrir!
É a perda dura dum futuro inteiro
E o desfolhar sentido das gentis coroas,
Dos sonhos do porvir!
É ver que nos arrancam uma a uma
Das asas do talento as penas de ouro,
Que voam para Deus!
É ver que nos apagam d’alma as crenças
E que profanam o que santo temos
Co’o riso dos ateus!
É assistir ao desabar tremendo,
Num mesmo dia, d’ilusões douradas,
Tão cândidas de fé!
É ver sem dó a vocação torcida
Por quem devera dar-lhe alento e vida
E respeitá-la até!
É viver, flor nascida nas montanhas,
Para aclimar-se, apertada numa estufa
À falta de ar e luz!
É viver tendo n’alma o desalento,
Sem um queixume, a disfarçar as dores
Carregando a cruz!
Oh! ninguém sabe como a dor é funda,
Quanto pranto s’engole a quanta angústia
A alma nos desfaz!
Horas há em que a voz quase blasfema...
E o suicídio nos acena ao longe
Nas longas saturnais!

Definha-se a existência a pouco e pouco,
E o lábio descorado o riso franco
Qual dantes, já não vem;
Um véu nos cobre de mortal tristeza,
E a alma em luto, despida dos encantos,
Amor nem sonhos tem!
Murcha-se o viço do verdor dos anos,
Dorme-se moço e despertamos velho,
Sem fogo para amar!
E a fronte jovem que o pesar sombreia
Vai, reclinada sobre um colo impuro,
Dormir no lupanar!
Ergue-se a taça do festim da orgia,
Gasta-se a vida em noites de luxúria
Nos leitos dos bordéis,
E o veneno se sorve a longos tragos
Nos seios brancos e nos lábios frios
Das lânguidas Frinés!
Esquecimento! - mortalha para dores -
Aqui na terra é a embriaguez do gozo,
A febre do prazer:
A dor se afoga no fervor dos vinhos,
E no regaço das Marcôs modernas
É doce então morrer!
Depois o mundo diz: - Que libertino!
A folgar no delírio dos alcouces
As asas empanou! -
Como de ele, algoz das esperanças,
As crenças infantis e a vida d’alma
Não fosse quem matou!...
Oh! há dores tão fundas como o abismo,
Dramas pungentes que ninguém consola
Ou suspeita sequer!
Dores na sombra, sem carícias d’anjo,
Sem voz de amigo, sem palavras doces,
Sem beijos de mulher!...
Rio - 1858
***

III

Pobre criança que te afliges tanto
Porque sou triste e se chorar me vês,
E que borrifas com teu doce pranto
Meus pobres hinos sem calor, talvez;
Deus te abençoe, querubim formoso,
Branca açucena que o paul brotou!
Teu pranto é gota de celeste gozo
Na úlcera funda que ninguém curou.

Pálido e mudo e do caminho em meio
Sentei-me a sombra sofredor e só!
Do choro a baga umedeceu-me o seio,
Da estrada a gente me cobriu de pó!
Meus tristes cantos comecei chorando,
Santas endechas, doloridos ais...
E a turba andava! Só de vez em quando
Lânguido rosto se volvia atrás!
E a louca turba passou sorrindo
Julgava um hino o que eu chamava um ai!
Alguém murmurava: - Como o canto é lindo! -
Sorri-se um pouco e caminhando vai!
Bendito sejas, querubim de amores,
Branca açucena que o paul brotou!
Teu pranto é gota que mitiga as dores
Da úlcera funda que ninguém curou!
Há na minh’alma alguma cousa vago,
Desejos, ânsias, que explicar não sei:
Talvez - desejos - dalgum lindo lago,
- Ânsias - dum mundo com que já sonhei...
E eu sofro, oh anjo; na cruel vigília
O pensamento inda edobra a dor,
E passa linda do meu sonho a filha,
Soltas as tranças a morrer de amor!
E louco sigo por desertos mares,
Por doces veigas, por um céu de azul;
Pouso com ela nos gentis palmares
À beira d’água, nos vergéis do sul!...
E a vrigem foge... e a visão se perde
Por outros climas, noutro céu de azul;
E eu - desperto do meu sonho verde -
Acordo e choro carregando a cruz!
Pobre poeta! na manhã da vida
Nem flores tenho, nem prazer também!
- Rosto mendigo que não tem guarida -
Tímido espreito quando a noite vem!
Bendita sejas, querubim de amores,
Branca açucena que o paul brotou!
Teu doce pranto me acalenta as dores
Da úlcera funda que ninguém curou!
A minha vida era areal despido
De relva e flor e na estação louçã!
Tu foste o lírio que nasceu, querido,
Entre a neblina de gentil manhã.

Em ondas mortas meu batel dormia,
Chorava o pano à viração sutil,
Mas veio o vento no correr do dia
E, leve, o bote resvalou no anil.
Eu era a flor do escalavrado galho
Que a tempestade no passar quebrou;
Tu foste a gota de bendito orvalho
E a flor pendida a reviver tornou.
Teu rosto puro restitui-me a calma.
Ergue-me as crenças, que já vejo em pé;
E teus olhares me derramam n’alma
Doces consolos e orações de fé.
Não serei triste;
se te ouvir a fala
Tremo e palpito como treme o mar,
E a nota doce que teu lábio exala
Virá sentida ao coração parar.
Suspenso e mudo no mais casto enlevo
Direi meus hinos c’os suspiros teus.
E a ti, meu anjo, a quem a vida devo
Hei de adorar-te como adoro a Deus!
... - 1858

FRAGMENTO

IV

O mundo é uma mentira, a glória - fumo,
A morte - um beijo, e esta vida um sonho
Pesado ou doce, que s’esvai na campa!
O homem nasce, cresce, alegre e crente
Entra no mundo c’o sorrir nos lábios,
Traz os perfumes que lhe dera o berço,
Veste-se belo d’ilusões douradas,
Canta, suspira, crê, sente esperanças,
E um dia o vendaval do desengano
Varre-lhe as flores do jardim da vida
E nu das vestes que lhe dera o berço
Treme de frio ao vento do infortúnio!
Depois - louco sublime - ele se engana,
Tanta enganar-se p’ra curar as mágoas,
Cria fantasmas na cabeça em fogo,
De novo atira o seu batel nas ondas,
Trabalha, luta e se afadiga embalde
Até que a morte lhe desmancha os sonhos
Pobre insensato - quer achar por força
Pérola fina em lodaçal imundo!
- Menino louco que se cansa e mata
Através da borboleta que travessa
Nas moitas do mangal voa e se perde!...
Dezembro - 1858

ANJO
M.


Eu era a flor desfolhada
Dos vendavais ao correr;
Tu foste a gota dourada
E o lírio pode viver.
Poeta, dormia pálido
No meu sepulcro, bem só;
Tu disseste: - Ergue-te, Lázaro! -
E o morto surgiu do pó!
Eu era sombrio e triste...
Contente, minh’alma é;
Eu duvidava... sorriste,
Já no amor tenho fé.
A fronte que ardia em brasas
A seus delírios pôs fim
Sentindo o roçar das asas,
O sopro dum querubim.
Um anjo veio e deu vida
Ao peito de amores nu:
Minh’alma agora remida
Adora o anjo - que és tu!
Julho - 1858

ÚLTIMA FOLHA

Meu Deus! Meu Pai! Se o filho da desgraça
Tem jus um dia ao galardão remoto,
Ouve estas preces e cumpre o voto
- A mim que bebo do absinto a taça!
- “Feliz serás se como eu sofreres,
“Dar-te-ei o céu em recompensa ao pranto”-
Vós o dissestes. - E eu padeço tanto!...
Que novos transes preparar me queres?
Tudo me roubam meus cruéis tiranos:
Amor, família, felicidade, tudo!...
Palmas de glória, meus lauréis do estudo,
Fogo do gênio, aspiração dos anos!...
Mas o teu filho já se não rebela

Por tal castigo, pelas mágoas duras;
- Minh’alma of’reço às provações futuras...
Venha o martírio... mas - perdão p’ra ela!...
A doce virgem se assemelha às flores...
O vento a quebra no seu verde ninho.
- Velai ao menos pelo pobre anjinho,
- Pagai-lhe em gozo o que me dais em dores!
Maio – 6

Fonte:
ABREU, Casimiro de. As Primaveras. São Paulo: Livraria Editora Martins S/A co-edição Instituto Nacional do Livro, 1972. Texto-base digitalizado por Raquel Sallaberry Brião.

Nenhum comentário: