VI
A festa e o Major
Chegou a hora da festa. Dando a mão a Narizinho, o príncipe dirigiu-se à sala de baile.
— Como é linda! — exclamaram os fidalgos lá reunidos ao verem-na entrar. — Com certeza é a filha única da fada dos Sete Mares...
O salão parecia um céu bem aberto. Em vez de lâmpadas, viam-se pendurados do teto buquês de raios de sol colhidos pela manhã.
Flores em quantidade, trazidas e arrumadas por beija-flores. Tantas pérolas soltas no chão que até se tornava difícil o andar. Não houve ostra que não trouxesse a sua pérola, para pendurá-la num galhinho de coral ou jogá-la por ali como se fosse cisco. E o que não era pérola era flor, e o que não era flor era nácar, e o que não era nácar era rubi e esmeralda e ouro e diamante. Uma verdadeira tontura de beleza!
O príncipe havia convidado só os seres pequeninos, visto ser também pequenino e muito delicado de corpo. Se um hipopótamo ou baleia aparecesse por lá seria o maior dos desastres.
Narizinho correu os olhos pela assistência. Não podia haver nada mais curioso. Besourinhos de fraque e flores na lapela conversavam com baratinhas de mantilha e miosótis nos cabelos.
Abelhas douradas, verdes e azuis, falavam mal das vespas de cintura fina — achando que era exagero usarem coletes tão apertados. Sardinhas aos centos criticavam os cuidados excessivos que as borboletas de toucados de gaze tinham com o pó das suas asas. Mamangavas de ferrões amarrados para não morderem. E canários cantando, e beija-flores beijando flores, e camarões camaronando, e caranguejos caranguejando, tudo que é pequenino e não morde, pequeninando e não mordendo.
Narizinho e o príncipe dançaram a primeira contradança sob os olhares de admiração da assistência. Pelas regras da corte, quando o príncipe dançava todos tinham de manter-se de boca aberta e olhos bem arregalados. Depois começou a grande quadrilha.
Foi a parte de que Narizinho gostou mais. Quantas cenas engraçadas! Quantas tragédias! Um velho caranguejo que tirara uma gorda taturana para valsar, apertou-a tanto nos braços que a furou com o ferrão. A pobre dama deu um berro ao ver espirrar aquele líquido verde que as taturanas têm dentro de si. Ao mesmo tempo que isso se dava, outro desastre acontecia com um besouro do Instituto Histórico, que tropeçou numa pérola, caiu e desconjuntou-se todo.
O doutor Caramujo foi chamado às pressas para consertar a taturana e o besouro.
— Que bom cirurgião! — exclamou Narizinho, vendo a perícia com que ele arrolhou a taturana e consertou o besouro. E trabalha cientificamente, refletiu a menina, notando que antes de tratar do doente o doutor nunca deixava de fazer o “diagnóstico”. – Amanhã sem falta vou levar Emília ao consultório dele — disse ela ao príncipe.
— E, por falar, onde anda a senhora Emília? — indagou este. — Desde a briga com a dona Carochinha que não a vi mais.
— Nem eu. Acho bom que o senhor príncipe mande procurá-la.
O peixinho gritou para o mordomo que achasse a boneca sem demora.
Enquanto isso o baile prosseguia. Vieram as libélulas, que gozam a fama de ser as mais leves dançarinas do mundo. De fato! Dançam sem tocar os pezinhos no chão — voando o tempo inteiro. A linda valsa das libélulas estava na metade quando o mordomo reapareceu, muito afobado.
— Dona Emília foi assaltada por algum bandido! — gritou ele.
Está lá na gruta dos tesouros, estendida no chão, como morta.
Imediatamente Narizinho pulou do trono e correu em salvação da sua querida bruxa. Encontrou-a caída por terra, com o rosto arranhado, sem dar o menor acordo de si. O doutor Caramujo, chamado com urgência, despertou-a logo com um bom beliscão, depois de fazer o indispensável “diagnóstico”.
— Quem será o monstro que fez isto para a coitada? – exclamou a menina, examinando-lhe a cara e vendo-a com um dos olhos de retrós arrancado. — Não bastava ser um da, vai ficar cega também. Coitadinha da minha Emília!...
— Impossível descobrir o criminoso — declarou o príncipe.
— Não há indícios. Só depois que o doutor Caramujo curá-la da mudez é que poderemos descobrir alguma coisa.
— Havemos de tratar disso amanhã bem cedo – concluiu Narizinho. — Agora é muito tarde. Estou pendendo de sono...
E dando boas noites ao príncipe, retirou-se com Emília para os seus aposentos.
Mas Narizinho não pôde dormir. Mal se deitou, ouviu gemidos no jardim que havia ao lado. Levantou-se. Espiou da janela. Era o sapo que fora vestido de velha coroca.
— Boa noite, Major Agarra! Que gemidos tão tristes são esses? Não está contente com a sua sainha nova?
— Não caçoe, menina, que o caso não é para caçoada — respondeu o pobre sapo com voz chorosa. — O príncipe condenou-me a engolir cem pedrinhas redondas. Já engoli noventa e nove. Não posso mais! Tenha dó de mim, gentil menina, e peça ao príncipe que me perdoe.
Tanta pena do sapo sentiu Narizinho que mesmo em camisola como estava foi correndo ao quarto do príncipe, em cuja porta bateu precipitadamente — toc, toc, toc!...
— Quem é? — indagou de dentro o peixinho, que estava a despir-se de suas escamas para dormir.
— É Narizinho. Quero que perdoe ao pobre do Major Agarra.
— Perdoar de quê? — exclamou o príncipe, que tinha a memória muito fraca.
— Pois não o condenou a engolir cem pedrinhas redondas? Já engoliu noventa e nove e está engasgado com a última. Não entra. Não cabe! Está lá no jardim, de barriga estufada, gemendo e chorando que não me deixa dormir.
O príncipe danou.
— É muito estúpido o Major! Eu falei aquilo de brincadeira. Diga-lhe que desengula as pedrinhas e não me incomode.
Narizinho foi, pulando de contente, dar a boa notícia ao sapo.
— Está perdoado, Major! O príncipe manda ordem para desengolir as pedrinhas e voltar ao serviço.
Por mais esforço que fizesse, o sapo não conseguiu aliviar-se das pedras. Estava empachado.
— Impossível! — gemeu ele. — O único jeito é o doutor Caramujo abrir-me a barriga com a sua faquinha e tirar as pedras uma por uma com o ferrão de caranguejo que lhe serve de pinça.
— Nesse caso, muito boa noite, senhor sapo. Só amanhã poderemos tratar disso. Tenha paciência e cuide de não morrer até lá.
O sapo agradeceu a boa ação da menina, prometendo que se pudesse fugir das garras do príncipe iria morar no sítio de dona Benta para manter a horta limpa de lesmas e lagartas.
Narizinho recolheu-se de novo, e já ia pulando para a cama quando se lembrou do Pequeno Polegar, que deixara escondido na concha.
— Ah, meu Deus! Que cabeça a minha! O coitadinho deve estar cansado de esperar por mim...
E foi correndo à gruta dos tesouros. Mas perdeu a viagem. Polegar havia desaparecido com a concha e tudo...
–––––––
continua…
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
A festa e o Major
Chegou a hora da festa. Dando a mão a Narizinho, o príncipe dirigiu-se à sala de baile.
— Como é linda! — exclamaram os fidalgos lá reunidos ao verem-na entrar. — Com certeza é a filha única da fada dos Sete Mares...
O salão parecia um céu bem aberto. Em vez de lâmpadas, viam-se pendurados do teto buquês de raios de sol colhidos pela manhã.
Flores em quantidade, trazidas e arrumadas por beija-flores. Tantas pérolas soltas no chão que até se tornava difícil o andar. Não houve ostra que não trouxesse a sua pérola, para pendurá-la num galhinho de coral ou jogá-la por ali como se fosse cisco. E o que não era pérola era flor, e o que não era flor era nácar, e o que não era nácar era rubi e esmeralda e ouro e diamante. Uma verdadeira tontura de beleza!
O príncipe havia convidado só os seres pequeninos, visto ser também pequenino e muito delicado de corpo. Se um hipopótamo ou baleia aparecesse por lá seria o maior dos desastres.
Narizinho correu os olhos pela assistência. Não podia haver nada mais curioso. Besourinhos de fraque e flores na lapela conversavam com baratinhas de mantilha e miosótis nos cabelos.
Abelhas douradas, verdes e azuis, falavam mal das vespas de cintura fina — achando que era exagero usarem coletes tão apertados. Sardinhas aos centos criticavam os cuidados excessivos que as borboletas de toucados de gaze tinham com o pó das suas asas. Mamangavas de ferrões amarrados para não morderem. E canários cantando, e beija-flores beijando flores, e camarões camaronando, e caranguejos caranguejando, tudo que é pequenino e não morde, pequeninando e não mordendo.
Narizinho e o príncipe dançaram a primeira contradança sob os olhares de admiração da assistência. Pelas regras da corte, quando o príncipe dançava todos tinham de manter-se de boca aberta e olhos bem arregalados. Depois começou a grande quadrilha.
Foi a parte de que Narizinho gostou mais. Quantas cenas engraçadas! Quantas tragédias! Um velho caranguejo que tirara uma gorda taturana para valsar, apertou-a tanto nos braços que a furou com o ferrão. A pobre dama deu um berro ao ver espirrar aquele líquido verde que as taturanas têm dentro de si. Ao mesmo tempo que isso se dava, outro desastre acontecia com um besouro do Instituto Histórico, que tropeçou numa pérola, caiu e desconjuntou-se todo.
O doutor Caramujo foi chamado às pressas para consertar a taturana e o besouro.
— Que bom cirurgião! — exclamou Narizinho, vendo a perícia com que ele arrolhou a taturana e consertou o besouro. E trabalha cientificamente, refletiu a menina, notando que antes de tratar do doente o doutor nunca deixava de fazer o “diagnóstico”. – Amanhã sem falta vou levar Emília ao consultório dele — disse ela ao príncipe.
— E, por falar, onde anda a senhora Emília? — indagou este. — Desde a briga com a dona Carochinha que não a vi mais.
— Nem eu. Acho bom que o senhor príncipe mande procurá-la.
O peixinho gritou para o mordomo que achasse a boneca sem demora.
Enquanto isso o baile prosseguia. Vieram as libélulas, que gozam a fama de ser as mais leves dançarinas do mundo. De fato! Dançam sem tocar os pezinhos no chão — voando o tempo inteiro. A linda valsa das libélulas estava na metade quando o mordomo reapareceu, muito afobado.
— Dona Emília foi assaltada por algum bandido! — gritou ele.
Está lá na gruta dos tesouros, estendida no chão, como morta.
Imediatamente Narizinho pulou do trono e correu em salvação da sua querida bruxa. Encontrou-a caída por terra, com o rosto arranhado, sem dar o menor acordo de si. O doutor Caramujo, chamado com urgência, despertou-a logo com um bom beliscão, depois de fazer o indispensável “diagnóstico”.
— Quem será o monstro que fez isto para a coitada? – exclamou a menina, examinando-lhe a cara e vendo-a com um dos olhos de retrós arrancado. — Não bastava ser um da, vai ficar cega também. Coitadinha da minha Emília!...
— Impossível descobrir o criminoso — declarou o príncipe.
— Não há indícios. Só depois que o doutor Caramujo curá-la da mudez é que poderemos descobrir alguma coisa.
— Havemos de tratar disso amanhã bem cedo – concluiu Narizinho. — Agora é muito tarde. Estou pendendo de sono...
E dando boas noites ao príncipe, retirou-se com Emília para os seus aposentos.
Mas Narizinho não pôde dormir. Mal se deitou, ouviu gemidos no jardim que havia ao lado. Levantou-se. Espiou da janela. Era o sapo que fora vestido de velha coroca.
— Boa noite, Major Agarra! Que gemidos tão tristes são esses? Não está contente com a sua sainha nova?
— Não caçoe, menina, que o caso não é para caçoada — respondeu o pobre sapo com voz chorosa. — O príncipe condenou-me a engolir cem pedrinhas redondas. Já engoli noventa e nove. Não posso mais! Tenha dó de mim, gentil menina, e peça ao príncipe que me perdoe.
Tanta pena do sapo sentiu Narizinho que mesmo em camisola como estava foi correndo ao quarto do príncipe, em cuja porta bateu precipitadamente — toc, toc, toc!...
— Quem é? — indagou de dentro o peixinho, que estava a despir-se de suas escamas para dormir.
— É Narizinho. Quero que perdoe ao pobre do Major Agarra.
— Perdoar de quê? — exclamou o príncipe, que tinha a memória muito fraca.
— Pois não o condenou a engolir cem pedrinhas redondas? Já engoliu noventa e nove e está engasgado com a última. Não entra. Não cabe! Está lá no jardim, de barriga estufada, gemendo e chorando que não me deixa dormir.
O príncipe danou.
— É muito estúpido o Major! Eu falei aquilo de brincadeira. Diga-lhe que desengula as pedrinhas e não me incomode.
Narizinho foi, pulando de contente, dar a boa notícia ao sapo.
— Está perdoado, Major! O príncipe manda ordem para desengolir as pedrinhas e voltar ao serviço.
Por mais esforço que fizesse, o sapo não conseguiu aliviar-se das pedras. Estava empachado.
— Impossível! — gemeu ele. — O único jeito é o doutor Caramujo abrir-me a barriga com a sua faquinha e tirar as pedras uma por uma com o ferrão de caranguejo que lhe serve de pinça.
— Nesse caso, muito boa noite, senhor sapo. Só amanhã poderemos tratar disso. Tenha paciência e cuide de não morrer até lá.
O sapo agradeceu a boa ação da menina, prometendo que se pudesse fugir das garras do príncipe iria morar no sítio de dona Benta para manter a horta limpa de lesmas e lagartas.
Narizinho recolheu-se de novo, e já ia pulando para a cama quando se lembrou do Pequeno Polegar, que deixara escondido na concha.
— Ah, meu Deus! Que cabeça a minha! O coitadinho deve estar cansado de esperar por mim...
E foi correndo à gruta dos tesouros. Mas perdeu a viagem. Polegar havia desaparecido com a concha e tudo...
–––––––
continua…
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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