Eu queria querer-te e amar o amor, construirmos
dulcíssima prisão
E encontrar a mais justa adequação, tudo métrica
e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés, e vê só que cilada o
amor me armou
E te quero e não queres como sou, não te quero e
não queres como és
Ah, bruta flor do querer, ah, bruta flor, bruta flor.
Caetano Veloso
dulcíssima prisão
E encontrar a mais justa adequação, tudo métrica
e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés, e vê só que cilada o
amor me armou
E te quero e não queres como sou, não te quero e
não queres como és
Ah, bruta flor do querer, ah, bruta flor, bruta flor.
Caetano Veloso
Acordei abstrata e acordar abstrata é sempre mau sinal. Um sentimento de nada e de tudo. De cores e de sombras. De formas e de insinuações. Acordei abstrata como um quadro atirado em qualquer canto de uma parede qualquer. E nova, tão nova como a reprodução vulgar de um velho quadro de Kandinski.
Acordei abstrata, esta é a questão. E, acordar abstrata é estar num meio do caminho e ficar deformando tudo, tornando muito mais grave e muito mais solene o que nem é tanto assim, mas. Também rindo meio boba de que, afinal, o que é nem é tanto assim.
É que depois do vinho barato de ontem e da náusea de hoje, percebi o que há muito sei: que não sei jogar e que não vou jogar este teu jogo maluco de quero não quero, porque simplesmente quero e não sei jogar.
Afasto as cobertas com os pés, sento na borda da cama e olho pela janela do quarto do hotel, lá embaixo, um pedaço de mar azul sob um céu azul e um sol quente. Vez que outra, passa um vulto, às vezes um vulto, uma sombra e um cachorro. Olho e não olho. Sinto e não sinto. É a recaída, penso.
O telefone te coloca ao meu alcance, mas o gosto do vinho barato de ontem e o mormaço do dia, e o quadro do Kandinski encostado na parede, e o jogo, sempre o jogo... Já disse que acordei abstrata e acordar abstrata é também um simples não. Um não querer um vazio assim: seco, indolor, um baço assim: meio cego, meio mórbido, cercado pela idéia modorrenta de um dia modorrento numa vida modorrenta.
Da janela do quarto de hotel, neste dia que seria outro, se não tivesse acordado abstrata, penso que acordar abstrata é.
Talvez aceitar.
Voilà! Penso com certo desprezo de mim que, de novo, Helena começa a ceder.
- Mas, se hei de ceder, que seja com elegância e, sobretudo, que seja com muito humor! - Digo com o resto de dignidade que resta em mim.
Sentada na cama, em frente à janela do quarto de hotel, neste dia em que acordei abstrata, desejo, profundamente, desejo, feito vingança mesquinha, desejo que estejas sofrendo a minha ausência, e quero que doa. Ah! Como quero que doa! E acendo um cigarro, na náusea do vinho barato de ontem e, vil, da vileza mais torpe e mais faceira, quero que minha ausência, em ti, doa.
Não! Não é por cobrar nada, não é por pagar nada, é apenas porque, querendo ou não, eu aprendi que com dor se aprende. Queria apenas te mostrar que o momento-agora é inadiável, porque ele é único e sagrado, e que o infinito é cercado de finitude por todos os lados, de pequenas finitudes de que somos feitos, tu, eu, nós, nossas expectativas, nossos sucessos e nossos fracassos.
Queria que pudesses sentir como eu, agora, a brevidade da fumaça do meu cigarro contra a janela do mundo modorrento do quarto de hotel. É assim, eu te diria, a brevidade da fumaça que somos.
Queria te mostrar, como nos vincos de um origami, os nossos ritos imperfeitos, quase imperceptíveis, de passagem, as nossas pequenas e quotidianas perdas, os nossos pequenos e quotidianos ganhos. Era outra quando acordei abstrata. Serei outra quando daqui-a-pouco-agora, abstrata, tomar consciência de que sou também passado.
Não vou mais aceitar quando me disseres que o teu amor é eterno e o meu é passageiro. É que a eternidade é em si. E eu queria que tu pensasses que a eternidade é em si. Que eterno é o momento do vulto que passou ainda há pouco na beira da praia e, depois, eternos o vulto, a sombra e o cachorro. Eterno é eu olhar pela janela, é esta tragada de cigarro, é esta fumaça jogada no nada. Isso é eterno!, porque a eternidade habita cada isso, cada tudo, cada alguém.
Meu amor é eterno e urgente.
O teu?
O teu é coisa escondida atrás da eternidade. Não! O teu é coisa que te esconde atrás da eternidade.
Pois então, eu me digo despeitada e impotente:
- Que a minha ausência te doa! Que a eternidade te queime! Mas. Que o teu amor me procure. - E fecho os olhos e cruzo os dedos e tivesse mesa neste quarto tão pequeno de hotel e eu me meteria embaixo dela, feito criança teimosa, e feito criança teimosa bateria com a cabeça três vezes e pediria e imploraria e choraria que o teu amor me procure que o teu amor me procure que o teu amor me procure e.
Pensas que vais me encontrar largada num quarto qualquer de um hotel qualquer, dormindo de meias verdes quaisquer e de abrigo cinza qualquer?
Não!
Vou estar l-i-n-d-a quando chegares. vou ficar em dúvida sobre a cor da camisola, talvez vermelha, talvez preta, e vou deixar os cabelos presos à nuca, repartidos do lado para dar um ar de mocinha, ainda que depassée, e, vagabunda fina, vou perfumar o pescoço, os seios, os pulsos, as coxas e o sexo com Paloma Picasso. E vou usar um batom bordô bordel. E vou estar vampiresca, carnavalesca, rocambolesca e rindo muito e rindo alto, bêbada de um vinho barato e cheirando a cigarro barato, só para te assustar.
Tens medo de mi-iiiiiiiiiiiiiiiiimmmmmmmmmmmmm!!! Ah! Mas que maior medo terias se me visses assim: tão abstrata. Beeeeeeeeeemmmmmmmmmmm feito que tens medo de mim! Bem feito! Bem feito que tens medo de mim e me recusas.
Olha, mas olha me vendo: é que sou ar e não és mais do que raiz. É que sou fogo e não és mais do que chão pisado. É que sou penhasco e és apenas fenda. É que sou fronteira e tu, continuação. Ad infinitum: empobrecedora e repetitiva continuação empobrecedora e repetitiva continuação empobrecedora e.
Tens medo de mim?
Eu tenho pena de ti, que olhas e não vês. Que vives e não sentes. Que mentes e acreditas. Que amas e não sabes.
Tens pena de mim?
Eu tenho medo de ti, feito Carolina na janela, a deixar que a minha vida e que a tua vida passem e caiam no vácuo do nada.
Está bem...
É que acordei abstrata e, quando acordo abstrata, num quarto de hotel, com uma reprodução vulgar de um quadro de Kandinski atirada ao chão, quando acordo abstrata num quarto barato de um hotel barato, gosto amargo na boca, quero minha cabeça no teu colo, tua boca nos meus cabelos, teu abraço me fazendo berço, teu silêncio me dizendo que estás aqui, que sempre estiveste, que sempre estarás, quero tua maior mentira: a que sou eu.
- Voilà! Helena em processo de sujeição - me digo irônica e dolorida. De puro medo de te magoar, fico sempre tão delicadamente imóvel e leve que penso ser capaz de pousar no peito de uma borboleta branca. - Voilà, apenas voilà! - quando não há mais palavras possíveis: - Voilà!
Abstrata, neste dia modorrento, numa janela de mar, de sol e de vultos, descubro que, a despeito de tudo, quero a paz suave e generosa de um pouso feito acolhida numa borboleta branca. Fecho os olhos, vejo, cheiro, toco, ouço, quero ficar assim:
E porque quero, pego o telefone que te coloca ao meu alcance, e ligo. Ouço o sinal de ocupado. Tento de novo, de novo, de novo.
Fonte:
http://www.janetutikian.com/?pg=4108
Acordei abstrata, esta é a questão. E, acordar abstrata é estar num meio do caminho e ficar deformando tudo, tornando muito mais grave e muito mais solene o que nem é tanto assim, mas. Também rindo meio boba de que, afinal, o que é nem é tanto assim.
É que depois do vinho barato de ontem e da náusea de hoje, percebi o que há muito sei: que não sei jogar e que não vou jogar este teu jogo maluco de quero não quero, porque simplesmente quero e não sei jogar.
Afasto as cobertas com os pés, sento na borda da cama e olho pela janela do quarto do hotel, lá embaixo, um pedaço de mar azul sob um céu azul e um sol quente. Vez que outra, passa um vulto, às vezes um vulto, uma sombra e um cachorro. Olho e não olho. Sinto e não sinto. É a recaída, penso.
O telefone te coloca ao meu alcance, mas o gosto do vinho barato de ontem e o mormaço do dia, e o quadro do Kandinski encostado na parede, e o jogo, sempre o jogo... Já disse que acordei abstrata e acordar abstrata é também um simples não. Um não querer um vazio assim: seco, indolor, um baço assim: meio cego, meio mórbido, cercado pela idéia modorrenta de um dia modorrento numa vida modorrenta.
Da janela do quarto de hotel, neste dia que seria outro, se não tivesse acordado abstrata, penso que acordar abstrata é.
Talvez aceitar.
Voilà! Penso com certo desprezo de mim que, de novo, Helena começa a ceder.
- Mas, se hei de ceder, que seja com elegância e, sobretudo, que seja com muito humor! - Digo com o resto de dignidade que resta em mim.
Sentada na cama, em frente à janela do quarto de hotel, neste dia em que acordei abstrata, desejo, profundamente, desejo, feito vingança mesquinha, desejo que estejas sofrendo a minha ausência, e quero que doa. Ah! Como quero que doa! E acendo um cigarro, na náusea do vinho barato de ontem e, vil, da vileza mais torpe e mais faceira, quero que minha ausência, em ti, doa.
Não! Não é por cobrar nada, não é por pagar nada, é apenas porque, querendo ou não, eu aprendi que com dor se aprende. Queria apenas te mostrar que o momento-agora é inadiável, porque ele é único e sagrado, e que o infinito é cercado de finitude por todos os lados, de pequenas finitudes de que somos feitos, tu, eu, nós, nossas expectativas, nossos sucessos e nossos fracassos.
Queria que pudesses sentir como eu, agora, a brevidade da fumaça do meu cigarro contra a janela do mundo modorrento do quarto de hotel. É assim, eu te diria, a brevidade da fumaça que somos.
Queria te mostrar, como nos vincos de um origami, os nossos ritos imperfeitos, quase imperceptíveis, de passagem, as nossas pequenas e quotidianas perdas, os nossos pequenos e quotidianos ganhos. Era outra quando acordei abstrata. Serei outra quando daqui-a-pouco-agora, abstrata, tomar consciência de que sou também passado.
Não vou mais aceitar quando me disseres que o teu amor é eterno e o meu é passageiro. É que a eternidade é em si. E eu queria que tu pensasses que a eternidade é em si. Que eterno é o momento do vulto que passou ainda há pouco na beira da praia e, depois, eternos o vulto, a sombra e o cachorro. Eterno é eu olhar pela janela, é esta tragada de cigarro, é esta fumaça jogada no nada. Isso é eterno!, porque a eternidade habita cada isso, cada tudo, cada alguém.
Meu amor é eterno e urgente.
O teu?
O teu é coisa escondida atrás da eternidade. Não! O teu é coisa que te esconde atrás da eternidade.
Pois então, eu me digo despeitada e impotente:
- Que a minha ausência te doa! Que a eternidade te queime! Mas. Que o teu amor me procure. - E fecho os olhos e cruzo os dedos e tivesse mesa neste quarto tão pequeno de hotel e eu me meteria embaixo dela, feito criança teimosa, e feito criança teimosa bateria com a cabeça três vezes e pediria e imploraria e choraria que o teu amor me procure que o teu amor me procure que o teu amor me procure e.
Pensas que vais me encontrar largada num quarto qualquer de um hotel qualquer, dormindo de meias verdes quaisquer e de abrigo cinza qualquer?
Não!
Vou estar l-i-n-d-a quando chegares. vou ficar em dúvida sobre a cor da camisola, talvez vermelha, talvez preta, e vou deixar os cabelos presos à nuca, repartidos do lado para dar um ar de mocinha, ainda que depassée, e, vagabunda fina, vou perfumar o pescoço, os seios, os pulsos, as coxas e o sexo com Paloma Picasso. E vou usar um batom bordô bordel. E vou estar vampiresca, carnavalesca, rocambolesca e rindo muito e rindo alto, bêbada de um vinho barato e cheirando a cigarro barato, só para te assustar.
Tens medo de mi-iiiiiiiiiiiiiiiiimmmmmmmmmmmmm!!! Ah! Mas que maior medo terias se me visses assim: tão abstrata. Beeeeeeeeeemmmmmmmmmmm feito que tens medo de mim! Bem feito! Bem feito que tens medo de mim e me recusas.
Olha, mas olha me vendo: é que sou ar e não és mais do que raiz. É que sou fogo e não és mais do que chão pisado. É que sou penhasco e és apenas fenda. É que sou fronteira e tu, continuação. Ad infinitum: empobrecedora e repetitiva continuação empobrecedora e repetitiva continuação empobrecedora e.
Tens medo de mim?
Eu tenho pena de ti, que olhas e não vês. Que vives e não sentes. Que mentes e acreditas. Que amas e não sabes.
Tens pena de mim?
Eu tenho medo de ti, feito Carolina na janela, a deixar que a minha vida e que a tua vida passem e caiam no vácuo do nada.
Está bem...
É que acordei abstrata e, quando acordo abstrata, num quarto de hotel, com uma reprodução vulgar de um quadro de Kandinski atirada ao chão, quando acordo abstrata num quarto barato de um hotel barato, gosto amargo na boca, quero minha cabeça no teu colo, tua boca nos meus cabelos, teu abraço me fazendo berço, teu silêncio me dizendo que estás aqui, que sempre estiveste, que sempre estarás, quero tua maior mentira: a que sou eu.
- Voilà! Helena em processo de sujeição - me digo irônica e dolorida. De puro medo de te magoar, fico sempre tão delicadamente imóvel e leve que penso ser capaz de pousar no peito de uma borboleta branca. - Voilà, apenas voilà! - quando não há mais palavras possíveis: - Voilà!
Abstrata, neste dia modorrento, numa janela de mar, de sol e de vultos, descubro que, a despeito de tudo, quero a paz suave e generosa de um pouso feito acolhida numa borboleta branca. Fecho os olhos, vejo, cheiro, toco, ouço, quero ficar assim:
apenas sentindo:
eupousadaemti,tupousadoemmim.
eupousadaemti,tupousadoemmim.
E porque quero, pego o telefone que te coloca ao meu alcance, e ligo. Ouço o sinal de ocupado. Tento de novo, de novo, de novo.
Fonte:
http://www.janetutikian.com/?pg=4108
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