quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XXV, final– O Beijo de Barrymore


CAPITULO XXV
O Beijo de Barrymore

O desfecho do drama racial da América comoveu-me profundamente.

Não ter futuro, acabar... Que torturante a sensação dessa massa de cem milhões de criaturas assim amputadas do seu porvir!

Por outro lado, que maravilhoso surto não ia ter na América o homem branco, a expandir-se libérrimo na sua Canaã prodigiosa!

Se somos, se existimos, se apesar de todos os males da vida tanto a ela nos apegamos, é que no intimo do nosso ser a voz da persistência da espécie nos ampara. A meio da vida de cada criatura já é a prole o que lhe dá coragem de a viver até o fim. O celibatário, ser que vale por triste ponto final, sente-se um corpo estranho no tumulto biológico — quasi um amaldiçoado. Que dizer de um povo inteiro assim amputado da sua descendência? A ver-se envelhecer sem um choro de criança que o faça pensar no amanhã? Dia final. Dia já em crepúsculo rápido para uma noite eterna...

Fosse eu um filosofo e teria ali matéria para esmoer o cérebro no imaginar e re-imaginar a infinita maravilha do formidável quadro. Mas não era filosofo. Quem ama não filosofa, apenas suspira — e eu suspirava de comover penedos.

— Jane, Jane, Jane!... como se repetia em minha boca febrenta essa palavra e com que êxtase meus ouvidos a ouviam!

Lembrei-me do romance. Senti que era talvez o caminho mais curto para alcançar o coração da filha do professor Benson. Lancei-me a ele. Comprei uma resma de papel e com furiosa sofreguidão fiz e refiz o primeiro capitulo, entusiasmado com os períodos redondos e cantantes que me saiam da pena. Burilei-o qual um soneto, aprimorei-o de todos os arrebiques da forma, orientado por modelos que me pareceram os melhores. E nunca me hei de esquecer da ânsia com que corri ao castelo com a minha obra em punho! Ia pelo caminho prevendo a surpresa de miss Jane ante aquela forte revelação dum gênio literário que morreria latente se esse meu anjo bom lhe não provocasse o surto.

Encontrei-a na varanda, radiosa na formosura avivada pelo ar fino da manhã. Sem sauda-la, fui logo gritando de longe, com infantil alegria:

— Já fiz o primeiro, miss Jane! O primeiro capitulo! E estou ansioso por ouvir a sua opinião...

– Bravos! exclamou ela. Não esperei que tão rapidamente pusesse mãos á obra.

Abri o meu pacote de tiras em belo cursivo e entreguei-lhas com quem á sua dama entrega a mais preciosa das gemas. Impossível que após sua leitura miss Jane não me desse o seu amor.

Vendo a minha sofreguidão, ali mesmo a jovem as leu, enquanto meus olhos ávidos acompanhavam em seu rosto o efeito da narrativa.

Mas, ai de mim, tudo saiu bem ao contrario do esperado... Miss Jane atenuou quanto pôde a sua critica, delicada e gentil que era; mas não logrou impedir que de volta á cidade eu rasgasse em mil pedaços a minha obra prima e pela janelinha do vagão, melancolicamente, os lançasse ao vento. Azedei a semana inteira e no proximo domingo reapareci no castelo de mãos vazias.

– Não refez então o capitulo? indagou ela logo que entrei.

– Oh, não, miss Jane. Suas palavras abriram-me os olhos. Convenci-me de que não possuo qualidades literárias e não quero insistir, retruquei com ar ressentido.

– Pois tem que insistir, foi a sua resposta. Em nome da nossa amizade o exijo, e pelas qualidades que vi em germe no seu primeiro escrito tenho a certeza de que fará a obra como é mister.

– Confesso, miss Jane, que a sua apreciação do ultimo domingo me desalentou, e ainda permaneço sob essa impressão...

– Que vaidosos os moços! Lembre-se de meu pai. Quantas vezes fazia e refazia a mesma experiência, com uma paciência de beneditino! Por isso venceu. Lembre-se do esforço incessante de Flaubert para atingir a luminosa clareza que só a sábia simplicidade dá. A ênfase, o empolado, o enfeite, o contorcido, o rebuscamento de expressões, tudo isso nada tem com a arte de escrever, porque é artifício e o artifício é a escuta da arte. Puros maneirismos que em nada contribuem para o fim supremo: a clara e facil expressão da ideia.

– Sim, miss Jane, mas sem isso fico sem estilo...

Que finura de sorriso temperado de meiguice aflorou nos lábios da minha amiga!

– Estilo o senhor Ayrton só o terá quando perder em absoluto a preocupação de ter estilo. Que é estilo, afinal?

– Estilo é... ia eu responder de pronto, mas logo engasguei, e assim ficaria se ela muito naturalmente não mo definisse de gentil maneira.

— ... é o modo de ser de cada um. Estilo é como o rosto: cada qual possui o que Deus lhe deu. Procurar ter um certo estilo vale tanto como procurar ter uma certa cara. Sai mascara fatalmente — essa horrível coisa que é a mascara...

— Mas o meu modo natural de ser não tem encantos, miss Jane, é bruto, grosseiro, inábil, ingênuo. Quer então que escreva desta maneira?

— Pois certamente! Seja como é, e tudo quanto lhe parece defeito surgirá como qualidades, visto que será reflexo da coisa única que tem valor num artista — a personalidade.

Refleti comigo uns instantes e disse por fim:

— Está bem, miss Jane. Vou tentar mais uma vez. Vou escrever como sair, sem preocupação de espécie nenhuma — nem de gramática, e verá que horror...

— Isso! exclamou ela encantada. Acertou. Isso é que é escrever bem. Refaça o primeiro capitulo com esse critério e traga-mo no proximo domingo. Serei franca como o fui na tentativa anterior, e se me parecer que de fato não tem as qualidades precisas, di-lo-ei francamente e não pensaremos mais nisso.

De regresso ao meu quartinho humilde, nessa mesma noite dei começo á obra. O meu amuo, consequente á vaidade literária ofendida, ainda não passara de todo, e resolvi escrever mal, de um jato, com a intenção deliberada de desapontar miss Jane. Ela me condenaria a segunda tentativa, punhamos um ponto final na literatura e passaríamos a cuidar de outra coisa. Escrevi até madrugada, sem rasuras, sem escolha de palavras, como se estivesse a correr no meu saudoso Ford ao acaso das estradas sem fim. Ao soarem três horas atirei com a caneta e fui dormir o sono mais pesado da minha vida. No dia seguinte fui ve-la.

— Aqui está, miss Jane, o horror que me saiu da pena. Escrevi de acordo com a sua receita e nem coragem tive de reler. Condene-me de uma vez e passemos a cuidar de outra coisa.

Miss Jane tomou as tiras e logo ao fim da primeira abriu a expressão que na tentativa anterior eu tanto ansiava por ver. E nesse estado de êxtase sôfrego permaneceu até o fim.

— Ótimo! exclamou. O senhor Ayrton acaba de revelar-se um verdadeiro escritor — impetuoso, irregular, incorreto, ingênuo, mas expressivo, original e forte. Há aqui verdadeiros achados de expressão. Faça o livro inteiro neste tom que eu lhe garanto a vitoria.

Olhei para a minha amiga quasi com rancor, tão certo estava eu da ironia de suas palavras.

— Tem coragem de ser assim impiedosa com o pobre Ayrton? murmurei em tom magoado.

Ela olhou-me nos olhos fixamente, sem dizer palavra, e nos seus lindos olhos azuis vi refletida com tamanha nitidez a pureza de sua alma que logo me envergonhei do meu ímpeto, filho exclusivo da ignorância.

— Não, meu amigo! disse-me por fim. Sou incapaz de ironia. O que acabo de dizer é a fiel expressão do meu pensamento. Estas páginas estão cheias de defeitos, mas dos defeitos naturais ao primeiro jato de toda obra sincera e espontânea. São as rebarbas que com a lima o fundidor suprime. Mas se noto defeitos que a lima tira, não noto nenhum vicio literário, e por isso considero ótimo o começo do seu romance. Faça-o todo nesse tom e fará a obra que imagino. O trabalho de rebarba deixe-o comigo. Sou mulher e paciente. Deixe-me o menos e faça o mais. Seja o fundidor apenas, o obreiro que cria o grande bloco e não perde tempo com detalhes subalternos.

Calaram fundo no meu coração aquelas palavras. Vi nelas um interesse mais de amorosa do que de simples amiga — de amorosa que o é sem o saber. Imergida que sempre vivera em suas visões do futuro, e sempre presa da mais intensa atividade cerebral, miss Jane ignorava-se.

Olhei-a com o coração nos olhos. O "puro espírito" viu em mim a taça cheia em excesso, cuja espuma se derrama — e perturbou-se. Seus olhos baixaram-se. Seu peito ofegou.

Era o céu. Atirei-me como quem se atira á vida, e esmaguei-lhe nos lábios o beijo sem fim de John Barrymore. E qual o raio que acende em chamas o tronco impassível, meu beijo arrancou da gelada filha do professor Benson a ardente mulher que eu sonhara.

— Minha, afinal!...
FIM

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

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