quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Cruz e Souza (O Livro Derradeiro) Parte III


IDÉIA-MÃE

Laborare
Dignus est operarius mercede sua.
(Af. Lat.)

Ergueis ousadamente o templo das idéias
Assim como uns heróis, por sobre os vossos ombros
E ides através de um negro mar d’escombros,
Traçando pelo ar as loiras epopéias.

A luz tem para vós os filtros magnéticos
Que andam pela flor e brincam pela estrela.
E vós amais a luz, gostais sempre de vê-la
Em amplo cintilar -- nuns êxtases patéticos.

É esse o aspirar do séc'lo que deslumbra,
Que rasga da ciência a tétrica penumbra
E gera Vítor Hugo, Haeckel e Littré.

É esse o grande -- Fiat -- que rola no infinito!...
É esse o palpitar, homérico e bendito,
De todo o ser que vive, estuda, pensa e lê!!...

O SEU BONÉ

À atriz Adelina Castro

É um boné ideal, de feltros e de plumas,
Que ela usa agora, assim como um turbante
Turco, aveludado, doce como algumas
Nuvens matinais que rolam no levante.

Lembro quando ao vê-lo a rubra marselhesa,
Lembro sensações e cousas de prodígio
E penso que ele tem a máscula grandeza
Desse sedutor, vital barrete frígio!...

Às vezes meu olhar medindo-lhe o contorno
E a flácida plumagem que serve-lhe d’adorno,
-- satânico, voraz, esplêndido de fé!

Exclama num idílio cândido e singelo,
Por entre as convulsões artísticas do Belo; --
Oh! tem coração e alma, esse boné!...
(Corte, out. 1883)

SONETO

A Moreira de Vasconcelos

Na luta dos impossíveis,
do espirito e da matéria,
tu és a águia sidérea
dos pensamentos terríveis!
(Do Autor)

É um pensar flamejador, dardânico
Uma explosão de rápidas idéias,
Que como um mar de estranhas odisséias
Saem-lhe do crânio escultural, titânico!...

Parece haver um cataclismo enorme
Lá dentro, em ânsia, a rebentar, fremente!...
Parece haver a convulsão potente,
Dos rubros astros num fragor disforme!...

Hão de ruir na transfusão dos mundos
Os monumentos colossais profundos,
As cousas vãs da brasileira história!

Mas o seu vulto, sobre a luz alçado,
Oh! há de erguer-se de arrebóis c’roado,
Como Atalaia nos umbrais da glória!!...
(Desterro, 13 jan. 1883)

OISEAUX DE PASSAGE

Les rêves, les grands rêves que moi toujours adore,
Les rêves couleur rose, les rêves éclatants;
Ainsi que les colombes un autre ciel cherchants
J’ai vu les ailes ouvertes, si belles que l’aurore.

Autour de la nature, autour de la profonde
Et merveilleuse mère des fleurs, des harmonies,
Les rêves éblouissants, remplis d’amour et vie,
Trouvaient de l’espoir le plus doré des mondes.

Hélas!... -- mais maintenant, par des chagrins, secrets,
L’amour, les étoiles et tout ce qu’il nous est
Chéri -- le beau soleil, la lune et les nuages;

Tout fut plongé d'abord’ plongé dans le mystère,
Avec de mon coeur la douce lumière,
Les rêves de mon âme -- uns* oiseaux de passage!...
* sic.

COLAR DE PÉROLAS

Ao feliz consórcio dos estimáveis colegas, D. Jesuína Leal e Francisco de Castro.

A F’licidade é um colar de pérolas,
Pérolas caras, de valor pujante,
Belas estrofes de Petrarca e Dante
Mais cintilantes que as manhãs mais cérulas.

Para que enfim esse colar bendito,
Perdure sempre, inteiramente egrégio,
Como uma tela do pintor Correggio,
Sem resvalar no lodaçal maldito:

Faz-se preciso umas paixões bem retas,
Cheias de uns tons de muito sol -- completas...
Faz-se preciso que do amor na febre,

Nos grandes lances de vigor preclaro,
Desse colar esplendoroso e raro,
Nem uma pérola, uma só se quebre!...

SATANISMO

Não me olhes assim, branca Arethusa,
Peregrina inspiração dos meus cantares;
Não me deixes a razão vagar confusa
Ao relâmpago ideal de teus olhares.

Não me olhes, oh! não, porquanto eu penso
Envolvido no luar das minhas cismas,
Que o olhar que me dardejas -- doido, imenso
Tem a rápida explosão dos aneurismas.

Não me olhes. Oh! não, que o próprio inferno
Problemático, fatal, cálido, eterno,
Nos teus olhos, mulher, se foi cravar!...

Não me olhes, oh! não, que m'entolece
Tanta luz, tanto sol -- e até parece
Que tens músicas cruéis dentro do olhar!...

METAMORFOSE

A Carlos Ferreira

O sol em fogo pelo ocaso explode
Nesse estertor, que os crânios assoberba.
Vivo, o clarão, nuns frocos exacerba
Dos ideais a original nevrose.

Da natureza os anafis mouriscos
Ante o cariz da atmosfera muda,
Soam queixosos, numa nota aguda,
Da luz que esvai-se aos derradeiros discos.

O pensamento que flameja e luta
Nos ares rasga aprofundado sulco...
A sombra desce nos lisins da gruta;

E a lua nova -- a peregrina Onfale,
Como em um plaustro luminoso, hiulco,
Surge através dos pinheirais do vale.

AURÉOLA EQUATORIAL

A Teodoreto Souto

Fundi em bronze a estrofe augusta dos prodígios,
Poetas do Equador, artísticos Barnaves;
Que o facho -- Abolição -- rasgando as nuvens graves
De raios e bulcões -- triunfa nos litígios!

-- O rei Mamoud, o Sol, vibrou p'raquelas bandas
do Norte -- a grande luz -- elétrico, explodindo,
Assim como quem vai, intrépido, subindo
À luz da idade nova -- em claras propagandas.

-- Os pássaros titãs nos seus conciliábulos,
-- Chilreiam, vão cantando em místicos vocábulos,
Alargam-se os pulmões nevrálgicos das zonas;

Abri alas, abri! -- Que em túnica de assombros,
Irá passar por vós, com a Liberdade aos ombros,
Como um colosso enorme o impávido Amazonas!

[ANDA-ME A ALMA]

Anda-me a alma inteira de tal sorte,
Meus gozos, meu pesar, nos dela unidos
Que os dela são também os meus sentidos,
Que o meu é também dela o mesmo norte.

Unidos corpo a corpo -- um elo forte
Nos prende eternamente -- e nos ouvidos
Sentimos sons iguais. Vemos floridos
Os sons do porvir, em azul coorte...

O mesmo diapasão musicaliza
Os seres de nos dois -- um sol irisa
Os nossos corações -- dá luz, constela...

Anda esta vida, espiritualizada
Por este amor -- anda-me assim -- ligada
A minha sombra com a sombra dela.

[QUANDO EU PARTIR]

Quando eu partir, que eterna e que infinita
Há de crescer-me a dor de tu ficares;
Quanto pesar e mesmo que pesares,
Que comoção dentro desta alma aflita.

Por nossa vida toda sol, bonita,
Que sentimento, grande como os mares,
Que sombra e luto pelos teus olhares
Onde o carinho mais feliz palpita...

Nesse teu rosto da maior bondade
Quanta saudade mais, que atroz saudade...
Quanta tristeza por nós ambos, quanta,

Quando eu tiver já de uma vez partido,
Ó meu amor, ó meu muito querido
Amor, meu bem, meu tudo, ó minha santa!

Fonte:
Cruz e Sousa, Poesia Completa, org. de Zahidé Muzart, Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura / Fundação Banco do Brasil, 1993.

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