domingo, 16 de outubro de 2011

Varal de Minicontos I


Alice Daniel
FUGA

Olhou pela janela. A lua estava lá.
Olhou para a sua cama. Ele estava lá.
E diziam que a lua pertencia aos amantes...
Por muitos anos continuaria assim: olhando ora para um ora para o outro.
Um dia, pulou a janela...

Flávio Ilha
MUNDO ANIMAL

Os bois

Urros agoniados ecoavam pelo galpão envolto em gotículas carmim. Pernas abertas, marreta entre os dedos, o negro tinha as bombachas encharcadas de sangue. Um depois do outro, os bois se metiam pelo brete; aos resvalões, lutavam pelo pasto úmido da coxilha. Um depois do outro, eram golpeados pela mão firme do negro, olhos congestionados, as mãos roxas, o tórax nu encarnado. Cumpria mecanicamente sua liturgia de horror. No catre, dormia enrodilhado à cadela Polaca.

Marrecos

Vento: lá embaixo a costa ocupada. Via apenas minúsculas erupções de fumaça, como acnes cinzentas. No rosto de Stella havia dessas hecatombes vivas, que se mexiam, nasciam e morriam como qualquer um de nós. Lembrou dela porque saltaria em instantes e provavelmente nunca. Interrompeu o devaneio com uma interjeição imperativa do chefe. Quase sem ar, viu um a um os garotos lançaram-se ao vácuo. Marrecos. Marrecos negros voando em cunha, para a lagoa. Um verão no mar. A estrada. O pai, guiando. Os marrecos. O vento. O horror do mar.

Leonardo Brasiliense
O MORALISTA

- Tem quantos anos?
- Doze.
- Bonitinha!
- Tá.
- Mas se fosse minha filha, eu endireitava a tapa.
- Vai dar sermão, é?
- Não, mas se fosse filha minha...
- Então acaba duma vez, tio, que se eu não voltar logo pra casa, e com dinheiro, aí sim, o pai me cobre de pancada.

Luis Dill
RASTRO

A gota é perfeita, tem até uma coroa como ornamento, o vermelho vivo, bem no centro da lajota branca. O piso do Supermercado imaculado até então, sete e meia da manhã. Um palmo adiante, a repetição da mesma gota, só que, agora, acompanhada por outra, levemente repuxada. A seguir, uma porção delas, inclinadas e mais próximas uma das outras, em linha quase reta. Alguns metros depois uma poça significativa e um esfregão tentando dissolvê-la. Tu não tem jeito mesmo, né?, a faxineira reclamando. Não enche o saco, tia, rosna o rapaz do açougue, a pesada perna do boi às costas.

Marcelo Spalding
ÚLTIMO CAPÍTULO

Helena, Nazaré, Maria e Jade saem do trabalho com pressa, carregam pesadas ancas por calçadas quentes, atravessam ruas e gentes, sobem morros. Ligam a televisão, oito e meia. Último capítulo. O sofá é sujo, os gritos são altos, as paredes, poucas e a vila, grande. O trabalho é trabalho, o mundo é assim. Crucifixos tortos, mandamentos decorados. Mas é o último capítulo e calam as crianças num tapa. Torcem. Gritam. Choram. Enfim, sorriem, emocionadas, corações leves. O final foi feliz. O resto, é ficção.

Fausto Wolff
687ª NOITE

Como eu já disse, morreram vinte e dois prisioneiros de guerra americanos em Hiroshima. O vigésimo terceiro, que sobreviveu, foi linchado pela multidão enfurecida. Os japoneses caminhavam como zumbis procurando seus entes queridos entre as ruínas e nuvens de fumaça cancerígena. Surpreendentemente, os sobreviventes sentiram pouca dor. Um escritor disse que foi como se o grande terror do desconhecido houvesse cancelado o terror do sofrimento. Nus ou com roupas em frangalhos, não sabiam para onde se dirigir, pois todas as placas haviam desaparecido. Era impossível dizer quem era homem e quem era mulher. Os que saíram de casa vestindo roupas brancas apresentavam menos ferimentos do que os demais, uma vez que as cores escuras tendem a absorver a luz termonuclear. Amigos não se reconheciam, pois muitos haviam perdido seus rostos. Outros tinham gravada nas faces as impressões de suas mãos ou de seus narizes. Algumas pessoas perdiam as mãos ao acenarem pedindo ajuda. Saía fumaça dos ferimentos quando imersos em água. Outros cem mil japoneses morreriam graças aos ferimentos e à radiação. Até hoje crianças nascem cancerosas em Hiroshima e Nagazaki. Os filhos das mulheres grávidas durante o ataque nasceram deformados.

In WOLFF, Fausto. A milésima segunda noite. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

Luiz Rufatto
O VELHO CONTÍNUO

O velho contínuo, amarelo o branco dos olhos, abriu a torneira, encharcou as mãos grossas, ensaboou-as, e, esfregando-as vagarosamente, desatou a falar, não com o conhecido da pia ao lado, não com o motoboy que se equilibrava no mictório, mas para quem, de todos os que se espremiam no banheiro fétido, se dispusesse a ouvi-lo

a patroa ligou há pouco... está um tiroteio danado lá na rua de casa... ela estava falando encolhidinha atrás do sofá que encostou na parede pra não ficar zumbindo bala perdida na cabeça dela... ligou preocupada, coitada... falou pra eu não aparecer lá hoje de terno-e-gravata... alguém pode me confundir... achar que sou delegado... eu pensei cá com meus botões, que besteira! eu tenho lá cara de delegado? mas, coitada, eu entendo! eu lá tenho cara de delegado? mas, coitada, eu entendo... ela está certa... que que eu vou fazer? vou pendurar o paletó na cadeira... enfio a gravata no bolso... largo aí... que mal faz? não vai sumir... amanhã torno a vestir... não custa nada agradar à patroa... ela está velha, coitada... e a gente...

Então o velho contínuo percebeu o desperdício de água, enxaguou as mãos, fechou constrangido a torneira, enxugou-se com a toalha de papel, saiu do banheiro, olhou chãos, o rio morto, os carros indiferentes, os prédios futuristas, a cortina escura do horizonte, a velha, coitada.

In RUFATTO, Luiz. Eles eram muitos cavalos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001

Raduan Nassar
AÍ PELAS TRÊS DA TARDE

Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom-senso do mundo, aplicando-se em idéias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares à sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo ‘ciao’ ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o pudor (o seu pudor, bem entendido), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome depois com sua nudez no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobram a boca com a mãe enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado), e se achegue depois, com cuidade e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa com que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.

De 1972. In NASSAR, Raduan. Menina a Caminho. São Paulo: Cia das Letras, 1997.

João Gilberto Noll
LÍNGUAS

Sua voz não parece mais legível. Ontem pediu um copo d’água à filha. Ela lhe trouxe a foto de uma mulher meio esquiva. Tirada quando ele trabalhava de garçom na Califórnia. Vieram-lhe fiapos de mexicana. Ainda conseguia se lembrar da noite em que, entre o inglês, o espanhol e o português, as palavras começaram a lhe faltar. A mexicana disse que o mesmo ocorria com um irmão. Que eram tantas as palavras, de tão diferentes fontes e sabores, que concentravam em si tamanha quantidade de matizes e sentidos, que alguns como eles dois já não conseguiam guardá-las. Que estes, ao chegaram numa idade, só sabiam apresentar um arrazoado de sons impenetráveis à volúpia comum do entendimento. “E assim é”, ela suspirou mirando os pés descalços.

In NOLL, João Gilberto. Mínimos, Múltiplos, Comuns. Rio de Janeiro: Francis, 2003.

Laís Chaffe
SAIA JUSTA

O casal passeia com o bebê.
- É a cara do pai - bajula a vizinha.
- A senhora o conhece? - pergunta o homem.

Daniel Rocha
CONTOS BÊBADOS

1

Não conseguiu juntar as palavras, não conseguiu juntar os pedaços de sua vida, o que fez? Tomou mais um gole.

2

Tudo bem que a caneta não parasse na mão bêbada, mas precisavam roubar sua melhor frase?

Ana Mello
FUGA

Ônibus rápido.
Na janela tudo passa - árvores, rio, nuvens.
Não passa a saudade, não volta a cidade.
Nem o amor da Maria.

Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/veredas/?x=1&lk=1

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