terça-feira, 18 de outubro de 2011

Varal de Mini-Contos II


Paulo Gonçalves
ENFIM, PEDRO

Armando e Eleanor já estavam casados há muito tempo quando conceberam o primeiro filho. Esperavam ansiosos por um menino. Entediados com o casamento, animaram-se com a idéia de alguém mais pra dividir a relação. Queriam fazer novos planos, refazer os sonhos. Pedro nasceu em dezembro, próximo ao Natal.

Eleanor não suportava mais as manias do marido e acabou dedicando-se exclusivamente à maternidade. Embora se queixasse do acúmulo de tarefas domésticas e de cuidar sozinha do pequeno Pedro, dava graças a Deus por não ter que dividi-lo com ninguém. Sua dedicação garantiu que Pedro se tornasse um garoto saudável e vigoroso, um tanto mal-acostumado. Armando não se importava com as críticas da esposa e muito menos com o fato de não dormirem juntos como antes. À noite, quando chegava em casa, ocupava-se da educação do filho, ditando as regras que deveriam ser seguidas.

Pedro permaneceu em companhia dos pais até onde deu e depois foi morar sozinho. Alugou um apartamento próximo à Faculdade. Cursou psicologia até o terceiro ano, mas desistiu do sonho de sua mãe por motivos óbvios: tinha seus próprios sonhos. Acabou se formando em engenharia da computação, algo mais próximos de seus ideais. Queria conquistar o mundo.

Carlos Herculano Lopes
O PACTO

Pedro e Maria, recém-casados, fizeram um pacto: morreriam juntos. Quarenta anos mais tarde, já velhos e donos das mesmas desilusões, um assentou-se frente ao outro relembrando vivências comuns: filhos e netos, as viagens tão longas, outras que não fizeram, a juventude perdida. E miraram-se longamente enquanto o sol, mais belo naquela tarde, declinava sem pressa. Em seguida trocaram beijos, juras antigas, encheram os copos e fecharam os olhos, como haviam combinado... Muito abatida no outro dia, com um xale negro nas costas e rodeada pelos filhos, todos inconformados com o suicídio do pai, dona Maria, com sulcos profundos nas faces, recebia os cumprimentos.

Publicado em Coração aos Pulos, 2001

Pedro Silva
SERIA EU?

Um dia, pensei encontrar-me. Olhei no espelho. Seria eu? Seria mesmo eu? Olhei para baixo, mirando as mãos e os pés. Parecia eu, mas não tinha certeza. As fotos que poisavam nos móveis da minha casa eram similares à imagem obtida no espelho. Tinha na altura cinco anos. Hoje, meio século depois, continuo sem saber: seria mesmo eu?

Maria Luiza Forneck
E-MAIL

Mari,

A casa está de luto. Vieram buscar buscar a Liss. Choro, diarréia, fungo para tratar, uma ferida na pata que a veterinária não viu e que ela mordia cada vez mais. A Leila me orientou e eu dei leite com mel, que solta barriga. Talvez, mamando o leite da mãe, ela suportasse tal gororoba, mas aqui com o vermífugo que tomou, teve cólica e houve choradeira brava.

É um belo espécime, puro descendente de border collie, enfrentou-me. Eu batia com um papel do chão, mas passado susto, ela retomava os uivos, é claro, fazendo aquela "pose" típica dos border: sentava como um leão, com as patas arriadas para frente, mostrando os dentes, atitude destinada a intimidar ovelhas e gansos, que obedecem, igual a esta que vos escreve. Devido à diarréia, não me arrisquei a leva-la para meu quarto, o que era certo que ela estava pedindo. Inteligente, logo encontrou onde afiar as garras. Namorava a própria imagem refletida na fórmica da cozinha, passando a patinha... uma paixão de nenê!

Já soube do encontro emocionante com a mãe preta: mamou muito, grande festa no pedaço. Imagino o que não contou para a turma sobre a noite que passou aqui... Descobri, lenta que sou, pouco antes de ela partir, o porque de só ter aceitado um pano de lã preto para se recostar, ignorando um colchão colorido e um pano na cor gelo. A Lígia tem doze desses animais e me disse que a guardará até que ela complete noventa dias, caso eu mude de idéia.

Quanto à arte terapia, conversaremos na quarta-feira.

Beijos

Mariana

Mário-Henrique Leiria
CASAMENTO

"Na riqueza e na pobreza, no melhor e no pior, até que a morte vos separe."
Perfeitamente.
Sempre cumpri o que assinei.
Portanto estrangulei-a e fui-me embora.

In "Contos do Gin-Tonic" (1974)

Regina Starosta
PONTO DE REFERÊNCIA

1

Dirijindo, por ruas desconhecidas, me perdi.
Seguindo o ônibus, acabei na margem de um rio.

2

Todo o dia dobrava a esquina da casa azul.
Pintaram a casa de amarelo.
Não achei mais a rua.

Vera Ione Molina
BUSCA

O coração atropelado acordou a mulher, os soluços convulsivos a levaram para a cozinha. Preparou um chá de erva-doce para digerir as tristezas e, nessa digestão, se fortalecer, acrescentou gengibre para ganhar coragem; coisas aprendidas na leitura do romance indiano A Senhora das Especiarias.

O pranto não cedeu e ela correu para a Internet para buscar Jesus. O modem estava com problema de configuração, não poderia receber o Messias.

Ela digitou salvação e se abriram possibilidades fulgurantes, construídas com substantivos abstratos.

Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/veredas/?x=1&lk=1

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