CAPÍTULO XVIII
O Orgulho da Raça
Passei a semana agitado, menos com as revelações do ano 2228 do que com a impassibilidade de miss Jane.
Eu ardia, positivamente ardia, e traia o meu amor em todos os meus olhares e gestos; mas a enigmática jovem não dava ar de o perceber. No começo a admiti como um puro espírito, uma Cassandra sem nervos nem sangue. Depois duvidei da existência de tais puros espíritos e passei a ver em miss Jane uma "desentendida". Talvez que me julgasse muito inferior a si e adotasse semelhante atitude como o meio mais fácil de guardar as distancias. Mas era-me impossível conciliar isso com a amizade que ela me demonstrava e sobretudo com o ter só a mim no mundo depois de perdido o pai. Se de fato me julgasse inferior ou indigno de sua pessoa, certo que já me teria afastado do castelo. Não havia duvida, miss Jane fazia-se de desentendida...
Firmei-me nessa idéia e concebi um plano de ataque — uma demonstração amorosa que a arrancasse da sua marmórea impassibilidade. Ou tudo ou nada. Ou dava-me o coração ou punha-me no olho da rua.
Restava saber uma coisa só — se no momento da demonstração a timidez não me trairia a vontade...
Quando chegou o domingo, levantei-me mais cedo e fui ao mercado de flores. Comprei as mais belas violetas e a sobraçá-las parti para Friburgo no primeiro trem. Lá me dirigi ao cemitério onde repousavam os restos do professor Benson. Pela segunda vez eu levava flores ao jazigo do pai da maior maravilha do século — miss Jane...
Ao transpor o portão do pequeno cemitério meu coração bateu. Vi de longe um vulto querido a espalhar rosas sobre o túmulo do velho sábio. Aproximei--me com um pressentimento n'alma — "é hoje"...
— Também aqui? disse miss Jane ao avistar-me, estendendo para mim a sua mão gelada pelo frescor matutino.
Vi que era chegado o momento. Armei-me de todas as coragens e comecei:
— Miss Jane, eu...
Mas engasguei. Já estava ela de olhos muito fixos no túmulo, com o ar de quem repete mentalmente o "morrer... dormir... sonhar, quem sabe?" de Shakespeare. Estava puro espírito em excesso...
Ficamos os dois silenciosos por alguns momentos. Depois miss Jane falou, como respondendo a si própria e sempre de olhos cravados no túmulo:
— Nem ele! Nem ele que penetrava o passado e o futuro adiantou um passo na decifração do enigma da vida...
Engoli de vez o meu propósito. Não era o momento. O formoso Hamlet de faces róseas, cabelos afogados em boina de veludo negro e corpo revestido de perfeito tailleur, pairava muito distante de mim.,.
Apesar disso tomei-lhe a mão e apertei-a de novo, suavemente. Miss Jane olhou-me nos olhos com a funda melancolia dos que penetram no mui longe das coisas — e nada vêem do que vai por perto.
Dali seguimos juntos para o castelo, sem que a paisagem nem o ar fino da manhã dissipassem a tristeza dela e a minha decepção. No castelo, por uma hora, só falamos do professor Benson, com longos intervalos de silencio — intervalos de silencio em que eu lamentava a coexistência de puros espíritos em corpos assim tão perturbadores.
Depois do almoço, o primeiro que fiz em sua companhia, a nuvem das saudades passou e retomamos a nossa excursão pelo ano 2228.
– Onde estávamos? principiou ela.
– Em Kerlog, já libertado do pesadelo elvinista, respondi.
– Sim, é isso. As mulheres aderiram ao Homo e tudo mudou, como era natural. A raça branca formava novamente um bloco unido e apto a organizar a resistência.
– Mas a impressão do golpe de Jim? Como o recebeu o país? perguntei suspirando.
– Com estupefação. Pela primeira vez na vida de um povo ocorria um fato que interessava a todos os seus componentes, sem exceção de um só. E como ninguém, a não ser Jim Roy, houvesse esperado por aquele desfecho, fácil é de imaginar o grau de assombro do espírito publico.
A estupefação dos brancos derrotados não era menor que a dos negros vencedores. Haviam estes agido como autômatos; deram o voto a Roy como o dariam a Kerlog, a miss Astor, ou o não dariam a nenhum dos três, se tal fosse a senha recebida. E agora olhavam-se uns para os outros num estonteamento de vitoria em absoluto inédito para eles.
Quanto ás conseqüências possíveis, nem de um lado nem do outro ninguém podia prever coisa nenhuma. Extenso demais era o fenômeno para ser abarcado por uma cabeça e, alem disso, não tinha precedentes na história.
Só no dia seguinte é que o acesso de estupefação coletiva principiou a decair. As células do imenso organismo social foram saindo daquele penoso estado de anestesia para entrar na fase inversa da exaltação. O velho desprezo racial do branco pelo negro transformava-se em cólera, e o recalcado ódio do negro pelo branco, arreganhando os dentes, entreabria um monstruoso sorriso de revanche.
Lentamente despertava a massa negra do longo letargo de submissão e tremia de narinas ao vento, como o tigre solto na jungle. Toda a barbárie atávica, todos os apetites em recalque, rancores impotentes, injustiças padecidas, todas as vergastadas que laceraram a sua pobre carne até o advento de Lincoln, e depois de Lincoln todas as humilhações da desigualdade de tratamento — essa legião de fantasmas irrompeu da alma negra como serpes de sob a laje que mão imprudente levanta. E a raça maior que o da mesquinha liberdade física, passou a sonhar o grande sonho branco da dominação...
Tomado de receios ante a imensidade daquele despertar, Jim Roy auscultava os frêmitos do seu povo e media a tarefa ingente que lhe pesava sobre os ombros. Se não conseguisse manter açaimado o monstro e submisso á sua voz de comando, a momentânea vitoria breve se transformaria num horrendo cataclismo. Jim Roy amava a América. Nós alicerces do colossal edifício o cimento ligador dos blocos fôra amassado com o suor dos seus ancestrais. A América surgira do esforço braçal de um, dirigido pelo esforço mental de outro, e pois tanto lhe falava a ele ao sangue como ao do mais orgulhoso neto dos pioneiros louros.
De instante a instante recebia comunicações dos seus agentes dando conta do estado d'alma da massa. A pantera negra distendia os músculos entorpecidos, com os olhos a se rajarem de sangue...
Jim tremeu. Sabia conter os nervos da fera, dominar-lhe todos os ímpetos instintivos. Além disso via o seu já imenso prestigio de líder acrescentado com o de Presidente eleito — mas estaria em seu poder sofrear o maremoto africano? Não faria dele um dique impotente a borrasca a desenhar-se?
Jim sentia no ar as ondas de fluidos explosivos, um perfeito ambiente de pólvora. O solo latejava pulsações vulcânicas. Jim tremeu diante de sua obra — e sem vacilar foi ao encontro de Kerlog. O momento impunha a conjugação da sua força com a do líder branco.
Defrontaram-se os dois chefes como duas forças da natureza, contrarias nos seus destinos, inimigas pela voz do sangue, mas irmanadas no momento por um nobre objetivo comum.
No primeiro ímpeto Kerlog apostrofou o chefe negro.
— "Vê tua obra, Jim! A América transformada num vulcão e ameaçada de morte!"
O negro cravou no líder branco os olhos frios, por um instante animados de estranho fulgor.
— "Não minha, Presidente Kerlog! Não é minha esta obra. É sua, é dos seus, é de Washington, é de Lincoln. Os brancos mentiram na lei básica. E ou confessam que mentiram ou reconhecem que a situação é perfeitamente normal. Que aconteceu, Presidente Kerlog? Houve um pleito e as urnas libérrimas conferiram a vitoria a um cidadão elegível. Acha o Presidente Kerlog que o Pacto Constitucional sofreu lesão?
Naquele peito a peito Jim Roy dominava o adversário.
— "Mas não se trata disso, continuou ele. O momento não é para recriminações — e em matéria de recriminações o Presidente Kerlog bem sabe que jamais um branco venceria um negro... O fato está consumado; e como chefes supremos das duas raças a nós só incumbe atender á salvação comum. Se não contivermos de rédeas presas os dois monstros — o monstro da ebriedade negra e o monstro do orgulho branco, a chacina vai ser espantosa..."
— "Ninguém sabe disso melhor que eu, retrucou o chefe da nação. Nos estados do Sul já lavra o incêndio ..."
O negro deu um salto.
— "Jim o apagará! Jim manterá presa em cadeia de aço a pantera africana. Ele a domina com os olhos como o soba a dominava no kraal donde a cupidez dos brancos a tirou. Jim é rei!"
Era tal a firmeza com que o grande líder negro emitia aquelas palavras que o tom de superioridade do branco se demudou em admiração. Kerlog viu que tinha diante de si, não um feliz aventureiro político, mas uma dessas incoercíveis expressões raciais a que chamamos condutores de povos. Pela primeira vez enfrentava um homem que era algo mais que um homem. E do fundo do coração Kerlog lamentou que a incompatibilidade racial o separasse de tamanho vulto.
Jim prosseguiu:
— "Mas só o farei se por sua vez o Presidente Kerlog açaimar o orgulho branco. Eu domino os meus com o olhar e a palavra. O Presidente Kerlog domina com a força do estado. Em nossas mãos está pois a paz da América."
O líder branco baixou a cabeça. Meditava.
— "Pois salvemos a América, Jim! disse erguendo-se. Açaima tu a pantera negra que meterei luvas nas unhas da águia branca."
Um leal aperto de mão selou aquele pacto de gigantes.
— "Mas a pantera que conte com o revide da águia! continuou o líder branco depois que as mãos se desapertaram. A águia é cruel..."
Jim Roy retesou-se de todos os músculos como a fera que se põe em guarda.
— "Ameaça-nos como sempre? Ameaça-nos até 110 momento em que a América ou rompe a sua Constituição e afoga-se num mar de sangue ou submete-se ao meu comando?"
Kerlog olhou-o firme nos olhos e murmurou com nitidez de lamina:
— "Não ameaço. Previno lealmente. Vejo em ti uma força demasiado grande para que eu a enfrente com palavras. Estamos face a face não dois homens, sim duas almas raciais arrostadas num duelo decisivo. Não fala neste momento o Presidente Kerlog. Fala o
branco de crueldade fria, o mesmo que vos arrancou do kraal, o mesmo que vos torturou nos brigues, o mesmo que vos espezinhou nos algodoais. Como ha razões de estado, Jim, há razões de raça. Razões sobre-humanas, frias como o gelo, cruéis como o tigre, duras como o diamante, implacáveis como o fogo. O sangue não raciocina, como os filósofos. O sangue sidera, qual o raio. Como homem admiro-te, Jim. Vejo em ti o irmão e sinto o gênio. Mas como branco só vejo em ti o inimigo a esmagar..."
O largo peito de Jim Roy arfava. A fera ancestral nele alapada transpareceu no fremir das ventas grossas.
— "E não trepidará o branco em esmagar a América se for condição para esmagar o negro?" rugiu.
Kerlog retrucou calmamente como se pela sua boca falasse o próprio deus do Orgulho:
— "Acima da América está o Sangue".
Jim baixou a cabeça. Viu aberto á sua frente o eterno abismo. O sangue branco tinha a dureza do diamante. Armado de mais cérebro, dos vales dos Ganges partira para a ousada aventura conquistadora e vencera sempre e não cedera nunca. Era o nobre, o duro, o eterno senhor cujo raio fulmina. Era o criador. Do rude instinto de matar do troglodita extraíra a sua grande arte, a Guerra. Forjara a espada, dominara o gás que explode, violara o profundo das águas e a amplidão dos ares. E com esse feixe de armas incoercíveis rodeara como de baionetas o diamante do seu Orgulho.
Tudo isso, num clarão, viu Jim Roy naquele homem que sereno o arrostava. E o que ainda havia de escravo no sangue do grande negro vacilou. Jim sentiu--se como retina ferida pelo sol. Mas sem demora reagiu. Ergueu-se e mais firme que nunca disse com dureza de rocha na voz:
– "Seja! E porque assim é, dei o supremo golpe. A América é tão sua como minha. Tenho-a nas mãos. Vou dividi-la.”
– "A justiça está contigo, Jim. Manda a justiça dividir a América. Mas o Sangue está acima da justiça. O Sangue tem a sua justiça. E para a justiça do Sangue Branco é um crime dividir a América."
Jim novamente baixou a cabeça e emudeceu. Pela segunda vez sentia-se como a retina ofuscada pelo sol.
O Presidente Kerlog aproximou-se dele e, com as mãos nos seus ombros largos, disse:
— "Vejo-te grande como Lincoln, Jim, e é com lágrimas nos olhos que contemplo a tua figura imensa, mas inútil... Adeus. Atendamos ao instante, açaimemos as nossas raças — mas não fique entre nós sombra de mentira. O teu ideal é nobilíssimo, mas á solução de justiça com que sonhas só poderemos responder com
a eterna resposta do nosso orgulho: Guerra!"
E os dois seres humanos subsistentes no imo dos dois lideres raciais abraçaram-se com lágrimas...
Miss Jane fez uma pausa, atenta á minha comoção. Aquele duelo de gigantes agitara fundo o meu ser. Tive a impressão de que jamais a história oferecera lance mais grandioso — nem mais cruel. Vi claros inúmeros pontos até ali obscuros na marcha da caravana que do fundo das idades vem vindo a entredegolar-se com sanhudos ódios. Vi um sonho de Ariel esfumado nas alturas — a Justiça Humana; e vi na terra, onipotente, a Justiça do Sangue — um raio cego...
— E depois? perguntei. Voltou a paz á América?
— Sim, respondeu miss Jane. Os dois lideres entraram a agir de pronto. A ação de um foi tão rápida e segura como a do outro. A pantera negra recolheu as garras e a águia branca enluvou as unhas.
Mas o beluário negro sentia-se ferido. As palavras que a raça branca pusera na boca de Kerlog cravaram-se-lhe no coração como as zagaias dos seus avós no peito dos leões africanos — mortalmente...
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continua… XIX– Burrada
Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.
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