quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XV – Vésperas do Pleito


CAPITULO XV
Vésperas do Pleito


No próximo domingo voei mais cedo ao castelo, ansioso pela continuação das revelações de miss Jane.

Encontrei-a triste.

— Aconteceu-lhe alguma coisa? inquiri inquieto.

— Nada! respondeu-me num suspiro. Saudades de meu pai apenas. Estive ontem no cemitério e minha dor reavivou-se. Como ainda sinto pungente o desfalque sofrido pela sinfonia do universo com a perda de sua nota mais bela!...

A tristeza de minha amiga contagiou-me de tal modo que quando dei por mim uma lágrima me descia pelo rosto.

Miss Jane, comovida, apertou-me a mão. Irmanavamo-nos dia a dia, á medida que as nossas afinidades se iam revelando. Afinidades mentais e de sentimento. Apesar da aparente divergência das nossas ideias, eu sentia que no fundo pensávamos da mesma forma. Quem ali nos visse a conversar da vida futura, juraria sermos amigos velhos ou parentes muito próximos — e outra não era a minha impressão. Parecia-me conhece-la de séculos, e nunca ter convivido com outra pessoa. A menor sombra que passasse pela sua alma logo se refletia na minha. Suas alegrias eram as minhas e minhas as suas tristezas.

Como me punha feliz aquela doce convivência...

Mas a nuvem passou afinal e pude ve-la de novo entregue aos acontecimentos do ano 2228.

— Na véspera da 88.a eleição presidencial, prosseguiu miss Jane, o país apresentava o grave aspecto desses instantes de imobilidade precursores de tormenta. Como que a armazenar forças para uma explosão trágica, todos os homens permaneciam silenciosos, num estado de repouso muito semelhante a cansaço por antecipação. Só nos arraiais femininos era intenso o rebuliço. Estavam as sabinas seguras da vitoria e lá com as diretoras do movimento já repartiam os despojos da batalha.

Devo dizer que a presidência de uma elvinista não inquietava grandemente os homens de espirito filosófico. Sabiam muito bem como o poder modifica as ideias dos que lhes galgam as cumeadas. E havia até curiosidade pela vitoria sabina por parte dos homens de temperamento artístico — dos que só encaram o mundo através de prismas estéticos. Já a massa masculina enxergava na vitoria de miss Astor o fim do tradicional predomínio do homem na terra.

– Eram ainda as eleições ao nosso sistema de hoje?

– As eleições do século 23 em nada lembravam as de hoje, consistentes na reunião dos votantes em pontos prefixados e no registro dos votos. Tudo mudara. Os eleitores não saíam de casa — radiavam simplesmente os seus votos com destino á estação central receptora de Washington. Um aparelho engenhosissimo os recebia e apurava automática e instantaneamente, imprimindo os totais definitivos na fachada do Capitólio.

De há muito se havia eliminado as hipóteses de fraude, não só porque a seleção elevara fortemente o nivel moral do povo, como ainda porque a mecanização dos trâmites entregava todo o processo eleitoral ás ondas hertzianas e á eletricidade, elementos estranhos á política e da mais perfeita incorruptibilidade.

Mas só os habitantes de Washington gozavam do privilegio de ler no Capitólio os números decisivos. O resto da população americana tambem os lia e na mesma hora, mas em suas próprias casas.

Certo que estava da vitoria, o partido feminino delirava no antegozo de um prazer inédito: bater o macho em seu reduto supremo — a Presidência da Republica!

Na antevéspera das eleições miss Elvin organizou em Washington uma passeata memorável.

– Ainda havia disso? perguntei.

– Já não havia disso, respondeu miss Jane. Miss Elvin apenas ressuscitou a velha praxe a titulo de curiosidade estética. Como vemos hoje exposições de arte retrospectiva, teve ela a ideia de organizar coisa semelhante — uma passeata á nossa moda, com discursos em
rançoso estilo retórico, nos quais se expusessem á luz do dia caducas imagens há muito aposentadas. Reuniu um lote de dez mil correligionárias para um desfile diante do Capitólio. Cada qual traria uma bandeirola ou cartaz onde se caricaturassem de maneira cruel os homens ou se inscrevessem legendas insultantes — Abaixo o macaco glabro! Morram os raptores! Viva o sabino! Basta de gorilas evoluídos!

Essa manifestação realizou-se á noite — e por falar em noite... como imagina que eram as noites desse tempo, senhor Ayrton?

– Como as de hoje, ora essa! Talvez com menos grilos, respondi.

– Pois saiba que nenhum espetáculo futuro me surpreendeu tanto como as noites das cidades americanas. A noite urbana que temos hoje não passa da noite natural picada de focos luminosos — um jogo, portanto, de sombra e luz. O que lá vi não recordava essa alternativa. Sofrera completa mudança a iluminação artificial — tamanha como a do transporte depois da vinda do rádio. Inventara-se a luz fria. Por dentro e fora eram pintadas as casas de uma tinta de luar, que dava ás cidades o aspecto de emersas de um banho de fósforo. Paredes, muros, telhados, todas as superfícies emanavam um palor uniforme de sonho. Mas o escuro é tão necessário ao homem como o luminoso, de modo que todas as casas possuíam cômodos não revestidos de luar ou apenas aquarelados de leve. Que deliciosas penumbras vi no Oblivion Park, em Eropolis!…

– Quê? Havia Eropolis, a cidade do Amor?

– Sim. Uma cidade das Mil e Uma Noites erguida no mais belo recanto dos Adirondacks e exclusivamente dedicada ao Amor. Para lá iam os enamorados, os casados em lua de mel, nela só permanecendo durante o período da ebriedade amorosa. O senhor Ayrton com certeza já amou e sabe como o amor desabrocha as criaturas em flores e perfumes. Pois imagine um éden criado pela fantasia de todos os grandes amorosos — Dante, Petrarca, Romeu, Leandro, de colaboração com todas as grandes amorosas, Julieta, Hero... Imagine a rainha Mab a provocar sonhos nesses inebriados, e Ariel a realiza-los com o carinho que punha nas comissões de Prospero. O bafo de Caliban nem de leve embaciava os mármores de Eropolis — a maravilha suprema das artes humanas ao serviço do Amor.

Nada lembrava ali o organismo que é uma cidade comum — mixto de órgãos nobres e vísceras de funções humilhantes. Em vez de ruas geométricas, meandros irregulares, ganglionados magicamente de pelouses e moitas nupciais. Sumiam-se nelas os amorosos passeantes e em tais ninhos de doçura trocavam o beijo que elabora o porvir. Tudo fora planejado em Eropolis com o intento de dar ás criaturas as mais finas sensações estéticas, de modo que os seres ali concebidos já se plasmassem em beleza e harmonia desde o contacto inicial dos gametos. Os filhos de Eropolis passaram a constituir uma elite na América — a nova aristocracia dos filhos do Amor e da Beleza.

Suspirei. Vi-me em Eropolis de mãos dadas a miss Jane, olhos nos seus olhos e em tal enlevo amoroso que todas as maravilhas da nova ilha de Calipso eram como se não existissem para mim…

– Mas deixemos em paz a cidade do Amor, disse minha amiga fechando o delicioso parenteses. Trepada a uma estátua fronteira ao Capitólio espera-nos a irrequieta miss Elvin com o seu discurso flamante, perfeitamente vieux jeu.

– "Eis", dizia ela apontando para o Capitólio com ademanes dos nossos oradores mitingueiros, "eis o símbolo da Bastilha masculina que será amanhã tomada de assalto! É a casa-mestra da força, a odiosa cabina das manivelas que dirigem tudo. Ali têm habitado os
piores monstros da humanidade. Moraram ali Gengis-Kan, Cesar, Luis 14, Frederico da Prussia, Pedro o Grande, Cromwell, todos os gorilas cesáreos que através dos séculos vêm trazendo preso ao seu carro de triunfo um ser de espécie diferente, arrancado ao companheiro natural por um gesto de violência e rapina!" e por aí além...

O presidente Kerlog ouviu pelo seu receptor de bolso a curiosa arenga e disse com muita filosofia ao ministro da Equidade:

– "Parece grotesco tudo quanto ela diz, no entanto a história mostra que nós homens temos sido arrastados por fábulas ainda mais grosseiras".

– "Isso só prova", retrucou Berald Shaw, "que miss Elvin está errada. Homens e mulheres somos positivamente da mesma espécie..."

E enquanto a passeata de miss Elvin barulhentamente prosseguia no seu percurso, voltaram os ministros á conferência, retomando-lhe o fio no ponto em que a arenga da sabina os interrompera.

– "Dentro de 48 horas tudo estará resolvido, disse o Presidente, e conto com a reeleição. Apesar de não haver obtido de Jim Roy promessa formal, estou absolutamente certo de que ele nos dará os votos negros. Deve neste momento estar apreensivo, o pobre Jim, com
o discurso de miss Elvin. Se ela nos trata a nós brancos de gorilas, que expressões reservará para os pretos de Jim?”

– "Mas miss Astor tambem conta com os votos negros", disse o ministro da Seleção Artificial.

– "Engano. Miss Astor espera de Jim uma traição. Ora, a traição para miss Astor significa não votar em seu nome. Logo, está convencida de que Jim Roy nos dará os votos negros.”

– "E nesse caso derrogaremos a lei seletiva?”

– "Sem duvida. O pigmento reclama contra o rigor excessivo da Lei Owen. Isso aliás pouco importa, porque antes dos maus efeitos da derrogação dessa lei já teremos solvido o problema. Os ultimos estudos tecnicos da exportação dos negros para a Amazonia já se acham conclusos. Jim é hábil e domina como déspota a massa negra. Havemos de nos entender. Havemos de impor-lhe por bem ou por mal a solução branca. No momento o caso se resume em obtermos dele o concurso eleitoral, pois quem lá pode saber que rumo tomarão os acontecimentos caso vençam as elvinistas? É impossível protelar por mais tempo com paliativos ilusórios a solução do binômio racial. Ou expatriamos os negros já, ou dentro de meio século seremos forçados a aceitar a solução negra, asfixiados que estaremos pela maré montante do pigmento.”

– "Destruído, aliás…

– "Oh, antes o não fosse! A mim chega a me repugnar o aspecto desses negros de pele branquicenta e cabelos carapinha. Dão-me a ideia de descascados ...”

– E miss Astor? perguntei. Continuava perplexa?

Miss Jane respondeu:

— A poucos passos da Casa Branca tambem miss Astor conferenciava com varias sumidades do seu partido.

— "Estás ministra, minha cara Dorothy Glynor, se vencermos..." dizia ela a uma linda criatura candidata ao Ministerio da Educação Social.

– "Se?..." fez. Dorothy Glynor. "Pois ainda admite duvidas depois da entente com Jim Roy?”

– "Tudo me leva a crer que Jim Roy não perderá a oportunidade de ajudar-nos a apear o macho branco inimigo tradicional da sua raça. A lógica me conduz a esse raciocínio, mas acima da lógica há em mim uma voz interna, uma ressonância que raro falha — e essa voz me diz que Jim vai trair...”

– "A nós?”

– "Não sei. Sinto no ar a traição, e sinto-a tão forte que ando presa de um estranho mal estar. É com esforço que procuro conter os meus nervos. O entusiasmo com que me apresento em campo não passa de mera atitude. O que há em mim — e cada vez mais angustiante — é uma profunda depressão nervosa..."

Miss Evelyn Astor estava á sua mesa de trabalho, em permanente comunicação com todos os distritos do país. Recebia de minuto em minuto informações animadoras, mas ouvia-as quasi desatenta. O imenso entusiasmo reinante nos arraiais femininos — entusiasmo que ela mesma acendera com suas famosas irradiações — só não contagiava a sua autora. Miss Astor metia os olhos do pressentimento pela fachada do Capitólio e não lia lá o seu nome...

Bem outra se apresentava a situação nos arraiais de Jim Roy. A população negra permanecia numa espécie de calma fatalista, aguardando com insidiosa quietude de pântano a senha que o grande lider ficara de irradiar uma hora antes do pleito. Até esse momento a formidável massa de cinquenta e tantos milhões de votantes conservar-se-ia neutra. Tinham compreendido as imensas vantagens da coesão e delegação de todas as vontades numa só, além de que depositavam em Jim Roy uma fé que nem Moisés merecera do povo hebraico. Qualquer coisa de majestade havia naquele oceano submisso — escravo de novo, escravo como sempre, mas desta vez escravo por heróico e livre consentimento.
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continua… XVI – O Titã Apresenta-se

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

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