terça-feira, 11 de outubro de 2011

Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco (Eduardo White: A «Grande Viagem,» na e Para Além da Língua...)


Para o Poeta Fernando Couto, cujos versos e os olhos deslumbrados também navegam e fazem a língua navegar.

«O navio na língua. O navio e a língua. (...) O navio está num caminho e a língua está para além dele. Olho pelas redondas vigílias da máquina tudo isto e descubro que a língua tem essa sede de viajar caminhos. Não de sê-los mas de conhecê-los, de os sonhar, de os evocar.»

Assim se inicia Dormir com Deus e um navio na língua, sexto livro de poesia do moçambicano Eduardo White. Singrando a memória e a escrita, o eu-lírico embarca na nave e na língua, zarpando em uma viagem introspectiva e metapoética pelos meandros de si, da história e de sua poesia. A imagem do navio, metaforicamente, traz a idéia da "travessia difícil", do convite à «grande viagem»(2) , rumo ao Eros primordial, centro irradiador da vida, e aos sentidos sacralizados da criação. «Ancorado na saliva», esse navio se faz evocação, espuma seminal, voz, imaginação. Viabiliza, dessa forma, a trajetória interior do poeta que se move por entre reminiscências do outrora e sombras que «entardecem o presente de seu país»(3), por entre a magia cósmica das palavras e os eróticos rumores da língua.

«E a língua, essa, poderá rumorejar?» (4) A poesia de White demonstra, na prática, que sim e Roland Barthes, teoricamente, confirma: «o rumor denota um ruído limite, um ruído impossível, o ruído daquilo que, funcionando na perfeição, não tem ruído; rumorejar é fazer ouvir a própria evaporação do ruído; o tênue, o confuso, o fremente são recebidos como os sinais de uma anulação sonora.» (5) O rumor da língua é frêmito, «fulguração da desordem» (6) que só a linguagem poética é capaz de produzir, pois, se afastando dos significados desgastados pelo uso ordinário e denotativo, alcança sentidos outros, inusitados.

E fugindo do retórico e do lugar comum que é supor que tudo isto se pensa, resultar-me nas perguntas e nas respostas que jamais fiz com a finalidade única de as pensar.(7)

Ousadia constante, «assombro amilagrado» (8) , o ato poético não almeja respostas prontas e fechadas: só se quer canto e rumor. Este, portanto, «é o ruído da fruição plural» (9) , a musicalidade própria da poesia, cujo discurso filigranado, prenhe de metáforas dissonantes, leva a língua, suavemente, a deslizar leve como um navio em sonho pelos mares de sentidos «nunca dantes navegados».

Para Barthes, «o rumor da língua forma uma utopia: a de uma música do sentido «(10). Segundo o referido teórico, somente em "seu estado utópico, a língua pode ser alargada, desnaturada»(11), atingindo a plenitude polissêmica do verbo poético.

Em White, cada palavra, cada metáfora e cada imagem criam tremores de sentidos, que, amplificados, possibilitam à língua um sonoro e musical rumorejar, resultante do embate de suas encapeladas vagas de encontro às quilhas que vão sulcando as oceânicas trilhas percorridas através dos séculos: um navio na língua, a língua e o navio... Metapoeticamente, o eu-lírico de Dormir com Deus e um navio na língua reflete sobre o próprio itinerário, absorvendo sons, ruídos e sonoridades que emanam de sua criação: A música aprofunda-nos, eleva-nos para dentro, para os ilimites que somos e não nos apercebemos. Azul e quente, amarela e doce, verde e fresca. A música a arder toda como se vinda de tudo. Da língua na música e da música da língua.(12)

É uma poiesis que mergulha na melodia própria da linguagem lírica, traçando um percurso de interiorização capaz de penetrar os abismos do ser, ao mesmo tempo que se eleva em direção a longínquas heranças da língua, «flor inicial», ampliada por infinitas trocas e diálogos: «Esse é o longe de onde vos fala a minha língua. O lugar onde a amo e a sonho para todos os outros lugares.» (13)

O poeta está só. Inicialmente, se encontra sentado à mesa de um restaurante chinês, voltado aos silenciosos traços de um Oriente que tanto marcou sua pátria e a língua portuguesa nessas margens índicas de onde se interroga, angustiado, e em sobressalto, acerca de seu próprio ofício e de sua escrita. Mas a angústia que o toma, entretanto, não interdita inteiramente a erótica que lhe anima o caminho. Intui que é necessária a inquietação para o prosseguimento da travessia. Sabe que «sonhar exige uma língua» e esta, metaforicamente transformada em navio, o transporta pelos desvãos dos tempos, trazendo-lhes memórias antigas, insuflando-o à imaginação de distantes futuros:

Agora até posso deitar-me sob ela. Refestelar-me na possibilidade de ali estar sem utilidade nenhuma. Ouvir-lhe a música, pedir-lhe absurdos. Ler um livro como um exercício e resultar, depois, no exercício de ter lido. Sentir os sonhos que se sonharam nela, as vagas que quebrou até chegar a mim. A minha língua com especiarias dentro e tecidos e bijuterias. Os sabores etílicos dos vinhos. O arroz da China. As missangas coloridas dos dromedários. O cheiro triste e ácido dos porões negreiros, os seus fatídicos destinos, o reluzente dos aços das espadas e dos elmos, a profunda nostalgia dos poetas e dos versos deportados. Esta é minha língua e não tenho outra. E sinto-me feliz de falá-la e de estar de pé no que isso significa.(14)

Um erotismo, permeado de remotos odores, sabores e cores, perpassa suas recordações e a história de seu país emerge como um híbrido mosaico de intercâmbios múltiplos que deixaram na pele do idioma e da sociedade moçambicana vestígios de diversas culturas. O poeta sorve a bebida e a memória. Entristece-se com a lembrança dos «fatídicos destinos» da diáspora negra. Delicia-se com certas minúcias e delicadezas chinesas que, esparsamente, Moçambique guardou como reminiscências do antigo comércio de porcelanas em seu litoral índico, «janela aberta ao Oriente»... Outras presenças, ao ritmo da vitrola, «girando em sua caixa convexa»(15) , se entrecruzam em seu imaginário. Ao ouvir uma canção cubana de Pablo Milanês, nostalgicamente, o eu-lírico relembra os tempos da sonhada liberdade defendida por líderes socialistas, entre os quais Fidel e Mandela. Procura, então, evocar, pelo exercício da linguagem criadora, o «outro lado da vida», «o outro lado das palavras», o outro lado da língua o além ilimitado da própria poesia, onde, sempre, «cada reverso esconde uma nova descoberta» (16) . Distraído, contempla a foto de um relógio em uma revista. A imagem do cronômetro desafivela-lhe reflexões, mas o tempo em que está inserido é outro. Como poeta, compreende que «o tempo ontológico da poesia está fora e liberto do tempo do relógio, embora possa habitá-lo e penetrá-lo nos momentos de epifania». (17)

O leve tecido da escritura poética se cruza, então, com a imagem de uma aranha no teto. A fragilidade da teia se confunde com a da diáfana caligrafia dos sonhos engendrados. Senhora da fiação e da tecelagem, a aranha se revela uma alegoria do próprio tecer poético. Criadora cósmica, aracne representa a interioridade, sendo, em muitas lendas africanas, a tecelã por excelência, a intermediária entre os deuses e os homens. Comparando-se a ela, no poder de trepar e escorregar pelos próprios fios tecidos, o poeta se vale da língua que rumoreja, galgando metafóricos sentidos por intermédio de um jogo erótico com a linguagem:

A minha língua dá-me esta visão meio enloucada que me faz supor subir as paredes da casa e buscar os seus cantos mais altos, os pensamentos que aí pousaram para os habitarem, talvez, até, os ouvidos empedrados do betão, sonoros para dentro de si e mudos para onde se exteriorizam. (...) A casa tem aranhas das quais não me quero separar que são as do texto que flutuam e as da própria vida que me procura. (18)

O texto e a teia. O poeta e a aranha. Tecidos aéreos de sonho e poesia que aprisionam e libertam. No emaranhado de reflexões, a consciência do real; no deslumbramento da criação, a sede de liberdade. Num dos mais belos trechos de Dormir com Deus e um navio na língua, ouve-se o grito social do poeta que, simultaneamente, se extasia com a beleza estética e se choca com a miséria circundante:

Atordoam-se as palavras todas e voam sobre a língua. (...) Minhas palavras luzidias, frescas, algas lentas que de rompante são pelas minhas mãos o ar onde se querem existidas. Palavras que lavram a beleza da língua e me despem quando as visto. Aqui ocorre-me pensar que vivo no país da nudez, da miséria absoluta, das crianças com suas grandes barrigas cheias de vazio, esquálidas, frágeis e tristes (...) Que palavras haveriam de dizer este quadro trágico, estes meninos sepultos por sobre o chão mas a viver para que a esperança os acredite e os ame e os furte ao desespero, estes anjos absurdos, este disforme séquito dos párias e dos canalhas, da luxúria e da trivialidade a arrotar pelos palácios. Não, não haveria nunca poesia na minha língua que pudesse ser demasiadamente bela sem chorar o grito e a revolta(19)

Ante à trágica condição dos meninos famintos de Moçambique, o sujeito lírico se desnuda e, atordoado, se questiona: «Que razões moverão a liberdade a cantar isto? Porque a liberdade aspira-se enquanto conceito e assusta como pura e profunda realidade?«(20) A consciência de ter como presente o mórbido espetáculo da fome faz o poeta sangrar. Errando, agora, solitário, em outro espaço o do quarto em que escreve , assume «a voz da tristeza» a recobrir-lhe as próprias memórias. A inquietação inerente ao poético converte-se em desencanto e dor. Porém, se indaga: «a escrita e o escritor como podem crescer (se não for) de tal modo?» (21) Intertextualizando-se com Fernando Pessoa, reafirma que o «pensar embacia tudo». Todavia, está ciente de que a poesia amadurece o ser e quanto mais dói, maior lucidez gera. Com a clareza de que «estar lúcido não é ver luzes, é ter» , passa, então, a empreender a «grande viagem» na e para além da língua. Vai à procura da cintilação divina e decide dormir com Deus. Porém, sabe que precisa se despojar de todos os luxos, alcançar a delicadeza de uma sexualidade indizível, abraçar o mais humano de si, provando a humildade «do milagre real de ser pequeno». (23) Semelhante mensagem de despojamento e humanidade traz a letra da canção brasileira Se Eu Quiser Falar com Deus, do compositor Gilberto Gil: I

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós dos sapatos
Da gravata, dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus

II

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração

III

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas para segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar(24)

É também nu, sentado a sós dentro de seu sonho, que o sujeito poético de Dormir com Deus e um navio na língua, após «abrir as aspas de sua angústia» e «estender as asas das alegrias», se prepara para deitar com Deus, expondo seu lado mais humilde, mais humano. «Deus é um lugar para estremecer, mapa do arrepio». Deus é «perturbadora desordem», «subversiva febre» a queimar as entranhas do poeta. É fulguração de infindas significâncias que ultrapassam os convencionais limites dos significados, é o rumorejar da linguagem da poesia no coração dos homens. É o mistério da arte e da criação instaurado no âmago do ser. Deus é a língua infinita, é a respiração emotiva do desconhecido. É a fruição plural do rumor da língua. É o além, a margem suplementar dos sentidos, a «grande viagem» do verbo e do texto em direção ao Nada:

E tendo a noite como única certeza, rebolo-me no sono e pouso a cabeça na imensidão humana do colo Dele. (...) O colo de Deus não é quente. É fundo e único, é uma vontade, um músculo inacabado e expressa-se com dignidade quando nele rimos ou choramos. Cresço para dentro reatado a mim mesmo, ao conhecimento do desconhecimento, à honra da ingenuidade porque não existem caminhos aqui para a ignorância, para o desconfiado, para o ambicionado e tão somente para a profundidade inteira e indivisível do Nada.(25)

Em Dormir com Deus e um navio na língua, a memória poética reintegra o tempo humano e histórico à eternidade cósmica da criação artística. O sonho acordado dos devaneios poéticos se situa entre o sono e a vigília, espaço limítrofe entre imaginação e realidade. É «o volante brilhante a conduzir o poeta para os caminhos de si mesmo»(26) .O percurso trilhado, contudo, fica em aberto: fora realmente vivenciado ou apenas escrito por um «eu de papel»? «Só Deus julgará isso»(27) , porque foi dormindo com Ele que o sujeito lírico se despiu das defesas e máscaras e, semi-adormecido, conseguiu vislumbrar o que totalmente deperto seria incapaz de enxergar. Neste entrelugar, ingressou no tempo Aion, na atemporalidade da arte, no Alfa, realizando a epifânica redescoberta da própria humanidade que, desvencilhada da materialidade mundana, logrou tangenciar os territórios do divino.

Configurando esse ilimitado alcançado pelo discurso lírico de Dormir com Deus e um navio na língua, os versos se dilatam e transgridem os contornos tradicionais do poema e da retórica, esgarçando as fronteiras entre poesia e prosa, entre Poesia e Filosofia. A viagem do navio na língua se transforma, assim, na travessia do próprio texto, desvelando-se como um exercício (meta)poético que, além de se tecer como pura poesia, discute semiológica e filosoficamente os caminhos da língua, da história, da linguagem, da criação literária e do próprio Homem.
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Notas
(1) WHITE, Eduardo. Dormir com deus e um navio na língua. Braga: Ed. Labirinto, 2001. p. 9.
(2) CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. RJ: José Olympio, 1999. p. 632.
(3) WHITE, E.(2001), p. 29.
(4) BARTHES, Roland. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1984. p.76.
(5) Idem, . p.75.
(6) SECCHIN, Antônio Carlos. Poesia e desordem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 18.
(7) WHITE, E.(2001), p. 28.
(8) Idem, p. 24.
(9) BARTHES, R. (1984). p.76.
(10) Idem, p. 76.
(11) Idem, p. 76.
(12) WHITE, E.(2001), p. 27.
(13) Idem, p. 14.
(14) Idem, p. 13.
(15) Idem, p. 15.
(16) Idem, p. 16.
(17) BOSI, A. In: NOVAES, A . Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 29.
(18) WHITE, E.(2001), p. 20.
(19) Idem, p. 21.
(20) Idem, p. 21.
(21) Idem, p. 21.[Grifo do autor]
(22) Idem, p. 24.
(23) Idem, p. 31.
(24) GIL, G. Se Eu Quiser Falar com Deus. (25) WHITE, E.(2001), p. 46 e p.47. [Grifos nossos]
(26) Idem, p. 49.
(27) Idem, p. 49.


Fonte:
Críticas e Ensaios

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