domingo, 12 de julho de 2015

Rubem Braga (Noite de Luar)



O táxi ia rodando devagar pela rua mal iluminada, para que eu pudesse ir vendo os números das casas. Quando vi o 118, mandei parar. Tinha de ir ao 227 e perguntar por dona Maria de Sousa. Era quase certo que não me seguiam; de qualquer modo não convinha parar o táxi diante da casa para não chamar a atenção. Tive, além disso, o cuidado de deixar o carro se afastar sem que o chofer pudesse ver a casa em que eu entrava. Naquele tempo viviamos cercados de precauções, porque o perigo estava em toda a parte. O menor descuido era a prisão, e as noticias que vinham "lá de dentro" eram de fazer tremer.
     Andei pela calçada. Era uma rua sossegada, em um bairro onde antigamente viviam famílias ricas. Agora os ricos viviam em outras partes da cidade e aqueles casarões envelhecidos, com seus parques de grandes arvores, pareciam dormir. Uma vez ou outra passava um auto; depois o luar aumentava o sossego da rua.
     Apertei a campainha. Uma mulher gorda me disse que fosse pelo jardim, ao lado da casa; era uma porta que tinha uma escadinha nos fundos.
     Ao bater, ouvi um rumor lá dentro. Depois senti alguém me espiava pela veneziana, sem dizer nada. Bati outra vez. Ouvi ainda uns rumores dentro do quarto, e, por fim, uma voz nervosa perguntou:
     - Quem é?
     Marina não me havia reconhecido e, com certeza, estava inquieta. Tranquilizei-a:
     - Sou eu, Domingos.
     A porta abriu-se.
     Tinha visto Marina poucas vezes, sempre em companhia do marido, na rua. Nunca havíamos trocado mais de duas ou três palavras ocasionais. Não se podia dizer que fosse bonita, mas era agradável, com seu ar um pouco seco, um pouco nervoso, e seu jeito de vestir-se com certa severidade. Agora estava diante de mim e não pude deixar de sorrir quando a vi metida em um macacão.
     - O macacão do Alberto? Trago notícias dele.
     Dei o recado que um político solto no dia anterior havia trazido. Alberto mandava dizer que estava bem, que há muito tempo já não o interrogavam, e que não tinha nenhuma esperança de sair tão cedo. Era melhor que ela tentasse sair da capital, onde podia ser presa a qualquer momento, e fosse para um pequeno Estado do Nordeste onde morava sua família. A viagem por mar seria impossível. O melhor era ir até Belo Horizonte e seguir para Alagoas pelo São Francisco. Havia uma pessoa que podia arranjar uma parte do dinheiro e um endereço em Belo Horizonte onde talvez conseguisse mais. Era preciso abrir o caixote de livros e queimar um papel que estava dentro das "Poesias" de Olavo Bilac. Dei-lhe um numero para onde devia telefonar.
     - Acha que eles vão deixar o Alberto preso muito tempo?
     Dei-lhe minha opinião com sinceridade. Alberto estava comprometido. Quando o pegou, a policia não sabia grande coisa dele, mas lá dentro sua situação tinha piorado muito. Parece que tinham aparecido umas historias velhas, de São Paulo...
     - E você como vai?
     Ela fez um gesto desanimado. Podia continuar naquele quarto com direito a comida, mais oito dias. Não tinha mais dinheiro, nem para cigarros. Ofereci-lhe dos meus:
     - Não sabia que você fumava.
     Não fumava antes. Mas ali, obrigada a ficar dentro do quarto dias e dias, semanas e semanas, começara a fumar. Há mais três meses não saia à rua. Andava apenas pelo velho e pequeno parque, nos fundos da casa, quando não chovia. Havia lido todos os livros que tinha, e estava cansada de ler.
     - Isso aqui é pior do que estar presa. Às vezes tenho vontade de sair, tomar um ônibus, andar por aí, ir a um banho de mar...
     Arriscara-se certa vez a ir a um cinema do bairro e quase morreu de medo. Na volta, um homem a seguiu. Teve a certeza de que ia ser presa. Quando estava perto de casa, o homem, mal encarado, apertou o passo e a deteve, tocando-lhe o braço com a mão. Parou tremula e logo saiu correndo e entrou em casa; jogou-se na cama chorando, em um desabafo nervoso. O homem lhe havia feito uma proposta amorosa...
     Contava essas coisas sentada na cama, um pouco excitada e estava engraçada assim metida no macacão do marido, com uma régua na mão, contando o seu susto. Rimos, mas logo ela se pôs a andar no quarto para um lado e outro, batendo com a régua na coxa.
     - Que é que você acha que devo fazer?
     Acendi um cigarro. Fazia calor. Na parede havia um quadro sem interesse, de um pintor amigo do casal. Ela pensava em procurar alguém que fosse amigo do Governo. Talvez o doutor Antunes conseguisse...
     - Também está preso.
     - O dr. Antunes? Não é possível!
     Vi que estava mal informada do que acontecia e lhe dei varias noticias. Nenhuma era alegre. Sentou-se novamente na cama, batendo com a régua no joelho. Ficamos em silencio. Achei que devia despedir-me, mas ela me deteve:
     - Espere, quero saber de uma coisa...
     Perguntou-me pelos Amaral, era verdade que a mulher se tinha suicidado. Era boato, ou pelo menos parecia. Havia quem dissesse que o casal estava no Paraguai; outros diziam que ele estava preso no Norte do Paraná, em Londrina...
     Surgiram outros nomes. Eu quase não podia dar informações sobre ninguém, e muitos eu não conhecia nem de nome nem de vista. Voltamos a falar de Alberto. Ela havia perdido o nervosismo; falava agora em seu tom habitual, um pouco seco, um pouco distante. Falava do marido e de si mesma como se estivesse examinando um problema alheio, com frieza e lógica. Tinha na gaveta um velho guia Levi, e consultou preços de passagens e horários. Certamente deveria tomar o trem em alguma estação do Estado do Rio, se resolvesse ir para o Norte.
     - Vai?
     - Isso é que estou pensando. Em Alagoas posso ficar na fazenda de minha tia, perto de São Miguel. Ali não haveria nenhum perigo, mas... Voltou a perguntar se não havia mesmo nenhum jeito de fazer alguma coisa pela libertação de Alberto. Talvez aquele ex-deputado amigo dos Amaral, pudesse...
     Balancei a cabeça. A policia não estava soltando ninguém. Prendera gente demais, inocentes e culpados, e enquanto não interrogava todo mundo, não apurava as coisas, não queria soltar ninguém. Uma ou outra pessoa conseguia sair quando tinha proteção muito forte e estava completamente inocente . Alberto já fora preso antes, era um elemento "marcado"... A única esperança estava numa mudança que diziam que ia haver no Ministério. Mas estavam sempre dizendo essas coisas, e ninguém saia do Governo. Dava a impressão de que ia ser assim eternamente...
     - Que coisa!
     Voltou a falar de Alberto, contou detalhes de sua prisão. Ela havia escapado por milagre. Mas estava ali, sozinha, sem poder sair de casa... Começou quase a lamentar-se e, subitamente, pareceu de novo tranquila. Os cabelos despenteados e o macacão lhe davam um ar ao mesmo tempo gracioso e cordial de rapazola. Devia ter uns trinta anos. Agora sua voz parecia ter cinquenta.
     - A situação é esta: se não fosse por causa do Alberto eu poderia ter fugido para o Sul. Mas perdi a oportunidade. Mais tarde, na hora de alugar este quarto, estive quase me resolvendo outra vez a fugir. Mas queria esperar Alberto... Está visto que posso ficar esperando a vida inteira. O senhor acha que há possibilidade...
     Era engraçado que me chamasse de "senhor", quando começara me tratando de "você". Mas logo na frase seguinte, com uma pequena hesitação na voz, voltou a me chamar de "você".
     Levantei-me e procurei com a vista um cinzeiro para pôr o cigarro. Não havia. Abri uma banda da janela para jogá-lo no jardim.
     - Posso deixar a janela aberta? Está quente... Sentada na cama ela ficou em silencio. Resolvi ir-me embora e fiquei pensando se devia lhe dar dez mil reis que tinha no bolso. Eu voltaria de bonde. Tirei a nota do bolso. Ela aceitou secamente, e me deu um aperto de mão rápido. Sua voz era tranquila, quase fria:
     - Obrigada. Se tiver alguma novidade estes dias, apareça outra vez. Meu nome aqui é Maria de Sousa.
     - Sei. Tem telefone?
     - Não. Ah, um momento! Pode pôr uma carta no correio para mim? Tirou uma carta da gaveta, envelope e começou a escrever o endereço. Junto à janela lá fora eu via as grandes arvores gordas, beijadas pelo luar enquanto ouvia o ranger da pena no papel.
     Comentei ao acaso:
     - Bonito luar...
     Ela acabara de escrever o endereço e respondeu dando um olhar rápido a janela:
     - É
     Foi um "é" tão seco que me arrependi do que havia dito, como se tivesse dito alguma coisa inconveniente. Depois de fechar o envelope ela veio para junto da janela, onde eu estava. Para ver melhor lá de fora abri o outro lado da janela e a lua apareceu, redonda, branca, entre as copas das arvores. Foi apenas um instante. Ela fechou os dois lados da janela com brutalidade:
     - Não faça isso! Estúpido! Não vê que eu não posso com isso? Que estou sozinha há quase um ano desde que Alberto foi preso? Ficou um momento diante de mim pálida, os lábios trêmulos; eu não sabia o que dizer.
     - Vá-se embora! Lançou-se na cama, escondeu a cabeça nas mãos e começou a chorar. Os soluços agitavam seu corpo magro e nervoso sob o macacão azul.

Rubem Braga (1913 - 1990)



Rubem Braga, considerado por muitos o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis, nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, ES, a 12 de janeiro de 1913. Iniciou seus estudos naquela cidade, porém, quando fazia o ginásio, revoltou-se com um professor de matemática que o chamou de burro e pediu ao pai para sair da escola. Sua família o enviou para Niterói, onde moravam alguns parentes, para estudar no Colégio Salesiano. Iniciou a faculdade de Direito no Rio de Janeiro, mas se formou em Belo Horizonte, MG, em 1932, depois de ter participado, como repórter dos Diários Associados, da cobertura da Revolução Constitucionalista, em Minas Gerais — no front da Mantiqueira conheceu Juscelino Kubitschek de Oliveira e Adhemar de Barros.
        Na capital mineira se casou, em 1936, com Zora Seljan Braga, de quem posteriormente se desquitou, mãe de seu único filho Roberto Braga.
        Foi correspondente de guerra do Diário Carioca na Itália, onde escreveu o livro "Com a FEB na Itália", em 1945. De volta ao Brasil morou em Recife, Porto Alegre e São Paulo, antes de se estabelecer definitivamente no Rio de Janeiro, primeiro numa pensão do Catete, onde foi companheiro de Graciliano Ramos; depois, em Copacabana, e por em Ipanema.
        Sua vida no Brasil, no Estado Novo, não foi mais fácil do que a dos tempos de guerra. Foi preso algumas vezes, e em diversas ocasiões andou se escondendo da repressão.
        Seu primeiro livro, "O Conde e o Passarinho", foi publicado em 1936, quando o autor tinha 22 anos, pela Editora José Olympio. Na crônica-título, escreveu: "A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser conde." De fato, quase tanto como pelos seus livros, o cronista ficou famoso pelo seu temperamento introspectivo e por gostar da solidão. Como escritor, Rubem Braga teve a característica singular de ser o único autor nacional de primeira linha a se tornar célebre exclusivamente através da crônica, um gênero que não é recomendável a quem almeja a posteridade. Certa vez, solicitado pelo amigo Fernando Sabino a fazer uma descrição de si mesmo, declarou: "Sempre escrevi para ser publicado no dia seguinte. Como o marido que tem que dormir com a esposa: pode estar achando gostoso, mas é uma obrigação. Sou uma máquina de escrever com algum uso, mas em bom estado de funcionamento."
        Foi com Fernando Sabino e Otto Lara Resende que Rubem Braga fundou, em 1968, a editora Sabiá responsável pelo lançamento no Brasil de escritores como Gabriel Garcia Márquez, Pablo Neruda e Jorge Luis Borges.
        Segundo o crítico Afrânio Coutinho, a marca registrada dos textos de Rubem Braga ?a "crônica poética, na qual alia um estilo próprio a um intenso lirismo, provocado pelos acontecimentos cotidianos, pelas paisagens, pelos estados de alma, pelas pessoas, pela natureza."
        Como jornalista, Braga exerceu as funções de repórter, redator, editorialista e cronista em jornais e revistas do Rio, de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife. Foi correspondente de "O Globo" em Paris, em 1947, e do "Correio da Manhã; em 1950. Amigo de Café Filho (vice-presidente e depois presidente do Brasil) foi nomeado Chefe do Escritório Comercial do Brasil em Santiago, no Chile, em 1953. Em 1961, com os amigos Jânio Quadros na Presidência e Affonso Arinos no Itamaraty, tornou-se Embaixador do Brasil no Marrocos. Mas Braga nunca se afastou do jornalismo. Fez reportagens sobre assuntos culturais, econômicos e políticos na Argentina, nos Estados Unidos, em Cuba, e em outros países. Quando faleceu, era funcionário da TV Globo. Seu amigo Edvaldo Pacote, que o levou para lá disse: "O Rubem era um turrão, com uma veia extraordinária de humor. Uma pessoa fechada, ao mesmo tempo poeta e poético. Era preciso ser muito seu amigo para que ele entreabrisse uma porta de sua alma. Ele só era menos contido com as mulheres. Quando não estava apaixonado por uma em particular, estava apaixonado por todas. Eu o levei para a Globo... Ele escrevia todos os textos que exigiam mais sensibilidade e qualidade, e fazia isto mantendo um grande apelo popular."     
        Fez várias viagens ao exterior, com função diplomática em Rabat, capital do Marrocos, atuando também como correspondente de jornais brasileiros. Após seu regresso, exerceu o jornalismo em várias cidades do país, fixando domicílio no Rio de Janeiro, onde escreveu crônicas e críticas literárias para o Jornal Hoje, da Rede Globo de Televisão. Sua vida como jornalista registra a colaboração em inúmeros periódicos, além da participação em várias antologias, entre elas a Antologia dos Poetas Contemporâneos.
        Faleceu no Rio de Janeiro, em 19 de dezembro de 1990.

terça-feira, 7 de julho de 2015

Movimento União Cultural (Participe)



Participe do Movimento União Cultural

O MOVIMENTO UNIÃO CULTURAL é um grupo de pessoas que visa a união dos diversos ramos da atividade humana, sejam profissionais, artísticos, culturais, filosóficos, etc., e a troca de informações culturais, tradições, informações gerais, entre pessoas de diversas localidades, de culturas distintas. O Movimento não possui fins lucrativos, nem quaisquer cobranças de mensalidades, e é ausente de sectarismo religioso e mantém neutralidade quanto a partidarismo político, sendo seus principais objetivos cultivar a cultura, a filantropia e a fraternidade, como meio de se alcançar a paz, a luz e a harmonia para a humanidade.

OS PRINCIPIOS DO MOVIMENTO UNIÃO CULTURAL
- a necessidade de AGIR por um mundo melhor;
- o cultivo da AMIZADE;
- o AMOR ao próximo e a humanidade;
- a CARIDADE material e moral;
- o exercício da CIDADANIA;
- o COMPANHEIRISMO no Movimento;
- a COMPREENSÃO do mundo;
- a busca incessante do CONHECIMENTO;
- a CONVIVÊNCIA salutar na comunidade;
- a CORDIALIDADE no dia-a-dia;
- o CULTIVO da família;
- a DEDICAÇÃO ao nosso trabalho;
- a ESPERANÇA de um mundo melhor;
- o uso do conceito de fair play nos ESPORTES;
- o ESTUDO da cultura local;
- a FRATERNIDADE em nosso meio;
- a GENEROSIDADE a quem nos rodeia;
- a HUMILDADE perante a ignorância;
- a IGUALDADE de tratamento entre os membros;
- o anseio pela JUSTIÇA;
- a LIBERDADE de pensamento;
- o total respeito ao LIVRE ARBÍTRIO;
- a procura da LUZ do saber;
- o treino constante da PACIÊNCIA;
- a PAZ universal;
- a PERSISTÊNCIA em nossos ideais;
- a PRESTEZA à sociedade;
- a PRUDÊNCIA nas decisões;
- o RESPEITO a natureza e a vida em geral;
- a TEMPERANÇA em nossos atos;
- a TOLERÂNCIA para com as divergências;
- a UNIÃO entre os povos;
- a VALORIZAÇÃO de todas as profissões;

As origens do Movimento remontam a 1º de outubro de 1989, quando foi realizado um primeiro evento sociocultural na Praça do Jardim Califórnia, na cidade de Taubaté, Estado de São Paulo, Brasil. Muitas ações já foram realizadas e/ou criadas, como: apostilas, associações, aulas, blog´s, campanhas, campeonatos, coletâneas, comissões, concursos literários e artísticos, cursos, discursos, edições de boletins, encontros, exposições, federações, grupos sociais e culturais, livretos, livros, meeting´s, oficinas, palestras, passeios, programas de televisão, projetos, saraus, sites, softwares, taças, torneios desportivos, treinamentos, ectc.

Funções:
- Promover a cultura e cultivar a paz em todos os sentidos possíveis;
- Participar das discussões do GRUPO DE TRABALHO do Movimento, no facebook;
- Divulgar as ações, campanhas e princípios do Movimento;
- Indicar pessoas para participar do Movimento;
- Inteirar-se sobre o Movimento, dirimindo as eventuais dúvidas que tiverem;
- Participar, quando e se possível, das ações presenciais;
- Participar das ações através da internet.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Folclore Sem Fronteiras (África: Oxóssi)




Marly Rondan

Oxóssi

Percorre a floresta escura.
Sob a luz do luar… caça!
Traz pra Terra a fartura.
Põe mel em nossa cabaça.

Protege a nossa floresta.
Revela novos perigos…
Transforma esta vida em festa
e os Orixás em amigos.

Oferendas vou levar.
Refresco de cambuci,
tucuxi vindo do Mar…

Guerreiro e bom caçador,
Pai Oxossi, sua Benção!
Receba o nosso louvor…

OXÓSSI

         Okê!
         Olofin era um rei africano da terra de Ifé, lugar de origem de todos os iorubas.
         Cada ano, na época da colheita, Olofin comemorava, em seu reino, a Festa dos Inhames.
         Ninguém no país podia comer dos novos inhames antes da festa.
         Chegado o dia, o rei instalava-e no pátio.do seu palácio.
         Suas mulheres sentavam-se à sua direita, seus ministros sentavam-se à sua esquerda, seus escravos sentavam-se atrás dele, agitando leques e espanta-moscas, e os tambores soavam para saudá-lo.
         As pessoas reunidas comiam inhame pilado e bebiam vinho de palma.
         Elas comemoravam e brincavam.
         De repente, um enorme pássaro voou sobre a festa.
         O pássaro voava à direita e voava à esquerda ... Até que veio pousar sobre o teto do palácio.
         A estranha ave fora enviada pelas feiticeiras, furiosas porque não foram também convidadas para a festa.
         O pássaro causava espanto a todos! Era tão grande que o rei pensou ser uma nuvem cobrindo a cidade. Sua asa direita cobria o lado esquerdo do palácio, sua asa esquerda cobria o lado direito do palácio, as penas do seu rabo varriam o quintal e sua cabeça, o portal da entrada.
         As pessoas assustadas comentavam:
         "Ah! Que esquisita surpresa?"
         "Eh! De onde veio este desmancha-prazer?"
         "lh! O que veio fazer aqui?"
         "Oh! Bicho feio de dar dó!"
         "Uh! Sinistro que nem urubu!"
         "Como nos livraremos dele?"
         "Vamos, rápido, chamar os caçadores mais hábeis do reino."
         De ldô, trouxeram Oxotogun, o "Caçador das vinte flechas".
         O rei lhe ordenou matar o pássaro com suas vinte flechas.
         Oxotogun afirmou:
         "Que me cortem a cabeça se eu não o matar!"
         E lançou suas vinte flechas, mas nenhuma atingiu o enorme pássaro.
         O rei mandou prendê-lo.
         De Morê, chegou Oxotogí, o "Caçador das quarenta flechas".
         O rei lhe ordenou matar o pássaro com suas quarenta flechas.
         Oxotogí afirmou:
         "Que me condenem à morte, se eu não o matar!"
         E lançou suas quarenta flechas, mas nenhuma atingiu o pássaro.
         O rei mandou prendê-lo.
         De Ilarê, apresentou-se Oxotadotá, o "Caçador das cinquenta flechas". Oxotodotá afirmou:
         "Que exterminem toda a minha fanulia, se eu não o matar".
         Lançou suas cinquenta flechas e nenhuma atingiu o pássaro.
         O rei mandou prendê-lo.
         De Iremã, chegou, finalmente, Oxotokanxoxô, o "Caçador de uma flecha só". O rei lhe ordenou matar o pássaro com sua única flecha.
         Oxotokanxoxô afirmou:
         "Que me cortem em pedaços se eu não o matar!"
         Ouvindo isto, a mãe de Oxotokanxoxô, que não tinha outros filhos, foi rápido consultar um babalaô, o adivinho, e saber o que fazer para ajudar seu único filho.
         "Ah! - disse-lhe o babalaô.
         "Seu filho está a um passo da morte ou da riqueza. Faça uma oferenda e a morte tomar-se-á riqueza."
         E ensinou-lhe como fazer uma oferenda que agradasse às feiticeiras.
         A mãe sacrificou, então, uma galinha, abrindo-lhe o peito, e foi, rápido, colocar na estrada, gritando três vezes:
         "Que o peito do pássaro aceite este presente!"
         Foi no momento exato que Oxotokanxoxô atirava sua única flecha.
         O feitiço pronunciado pela mãe do caçador chegou ao grande pássaro. Ele quis receber a oferenda e relaxou o encanto que o protegera até então. A flecha de Oxotokanxoxô o atingiu em pleno peito. O pássaro caiu pesadamente, se debateu e morreu.
         A notícia espalhou-se:
         "Foi Oxotokanxoxô, o "Caçador de uma flecha só", que matou o pássaro!
         O Rei lhe fez uma promessa, se ele o conseguisse! Ele ganhará a metade da sua fortuna! Todas as riquezas do reino serão divididas ao meio, e uma metade será dada a Oxotokanxoxô!
         " Os três caçadores foram soltos da prisão e, como recompensa, Oxotogun, o "Caçador das vinte flechas", ofereceu a Oxotokanxoxô vinte sacos de búzios; Oxotogí, o "Caçador das quarenta flechas", ofereceu-lhe quarenta sacos; Oxotadotá, o "Caçador das cinquenta flechas", ofereceu-lhe cinquenta. E todos cantaram para Oxotokanxoxô.
         O babalaô, também, juntou-se a eles, cantando e batendo em seu agogô:
         "Oxowusi! Oxowusi!! Oxowusi!!!
         "O caçador Oxo é popular!"
         E assim é que Oxotokanxoxô foi chamado Oxowusi.
         Oxowusi! Oxowui!! Oxowusi!!!

Fontes:
Marly Rondan Pinto. Poesias para evocar os Orixás. São Paulo: Sol, 2011.
Pierre Catumbi Verger. Lendas Africanas dos Orixás. Salvador: Corrupio, 1997.