sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Caldeirão Poético XIV



A BOCA 

A boca,
onde o fogo 
de um verão
muito antigo cintila,
a boca espera
(que pode uma boca esperar senão outra boca?) 
espera o ardor do vento
para ser ave e cantar.

Levar-te à boca,
beber a água mais funda do teu ser 
se a luz é tanta,
como se pode morrer?


DEFICIÊNCIA "VISUAL"

Um sujeito apaixonado
Parece não enxergar
Com distinção e clareza;
Pois diz ser uma “beleza”
A "feia", que tem no lar.

Ao meu oftalmologista
Pedi uma explicação:
Doutor, me dê uma pista;
Será que tem jeito a "vista"
Do apaixonado em questão?

Respondeu meu oculista,
Que da visão é doutor:
No caso particular,
Não vejo como explicar
Esta "cegueira de amor"!

Aos olhos da medicina
Não vejo uma explicação
Porém dou o meu palpite:
Deve ser uma "neurite"
Nos olhos do coração!


ACORDAR TARDE

tocas as flores murchas que alguém te ofereceu
quando o rio parou de correr e a noite
foi tão luminosa quanto a mota que falhou
a curva - e o serviço postal não funcionou
no dia seguinte

procuras ávido aquilo que o mar não devorou
e passas a língua na cola dos selos lambidos
por assassinos - e a tua mão segurando a faca
cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado
dos amantes ocasionais - nada a fazer

irás sozinho vida dentro
os braços estendidos como se entrasses na água
o corpo num arco de pedra tenso simulando
a casa
onde me abrigo do mortal brilho do meio-dia


PODER

Posso indicar o mar como consolo
a vista como alcance e a companhia
como distração. Mentir amizades
e razões. Dialogar palavras
de desengano.

Posso ficar no silêncio
de escuros quartos. Desdenhar
o esquecimento e omitir
fatos desenhados.

Posso refazer as paredes
e entre tábuas enxergar
o lado de fora.


AMIGO

Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo!

Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.

Amigo é a solidão derrotada!

Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!


S I L Ê N C I O

Quando eu pensei que tudo estava certo...
eis que você, na calma de serpente,
virou meu mundo assim tão de repente
numa miragem plena de um deserto.

Meu pensamento sóbrio, tão presente,
não alertou-me como estava perto
um coração fechado... e bem aberto
à pequenez de um sopro tão latente!

Me refazendo aos poucos, fui olhando
nas passarelas de um mundo nefando
desfiles frágeis, quem olha e não vê.

Hoje agradeço sua insensatez
silenciando o vazio de vez
feliz por mim e triste por você!


ANJO ÉS

Anjo és tu, que esse poder
Jamais o teve mulher,
Jamais o há-de ter em mim.
Anjo és, que me domina
Teu ser o meu ser sem fim;
Minha razão insolente
Ao teu capricho se inclina,
E minha alma forte, ardente,
Que nenhum jugo respeita,
Covardemente sujeita
Anda humilde a teu poder.
Anjo és tu, não és mulher.

Anjo és. Mas que anjo és tu?
Em tua frente anuviada
Não vejo a c'roa nevada
Das alvas rosas do céu.
Em teu seio ardente e nu
Não vejo ondear o véu
Com que o sôfrego pudor
Vela os mistérios d'amor.
Teus olhos têm negra a cor,
cor de noite sem estrela;
A chama é vivaz e é bela,
Mas luz não tem. - Que anjo és tu?
Em nome de quem vieste?
Paz ou guerra me trouxeste
De Jeová ou Belzebu?

Não respondes - e em teus braços
Com frenéticos abraços
Me tens apertado, estreito!...
Isto que me cai no peito
Que foi?... Lágrima? - Escaldou-me...
Queima, abrasa, ulcera... Dou-me,
Dou-me a ti, anjo maldito,
Que este ardor que me devora
É já fogo de precito,
Fogo eterno, que em má hora
Trouxeste de lá... De onde?
Em que mistérios se esconde
Teu fatal, estranho ser!
Anjo és tu ou és mulher?


APENAS VI DO DIA A LUZ BRILHANTE

Apenas vi do dia a luz brilhante
Lá em Setúbal no empório celebrado,
Em sanguíneo caráter foi marcado
Pelos Destinos meu primeiro instante.

Aos dois lustros a morte doravante
Me roubou, terna mãe, teu doce agrado;
Segui Marte depois, e em fim meu fado
Dos irmãos e do pai me pôs distante.

Vagando a curva terra, o mar profundo,
Longe da pátria, longe da ventura,
Minhas faces com lágrimas inundo.

E enquanto insana multidão procura
Essas quimeras, esses bens do mundo,
Suspiro pela paz da sepultura.


COM CERTEZA!

Meus amigos de infância e de folguedos, 
já não os vejo há mais de uns oitenta anos;
se foram..., e até deixaram os seus brinquedos...
Será que carregaram os desenganos?

Meus colegas de escola e seus enredos
de amor, de sonhos e de lindos planos
sumiram todos com os seus segredos...
Nem gosto de saber..., me causa danos!

Quem nem chegou à aposentadoria,
também sumiu!  Que coisa! Que agonia!
Quase ninguém ficou..., mas que tristeza!

Sinto  saudades, em Dois de Novembro,
de quase todos eles eu me lembro...
- Mas no Céu nos veremos, com certeza!

Vinicius de Moraes (De Pombos e de Gatos)


Um dos meus grandes encantos em Florença, onde, em 1952, passei cerca de um mês, era ver da janela do meu quinto andar, no Hotel Nazionale, a madrugada toscana romper sobre a Piazza Santa Maria Novella. Habituei-me de tal modo a isso que, nos meus hábitos de noctâmbulo, esticava a noite até o amanhecer, só pelo prazer de ver a luz rósea do sol florentino descobrir e incendiar os mármores da fachada da igreja de Santa Maria Novella, bem como o claustro verde que fica à sua esquerda e as elegantes arcadas do fundo, onde existem as terracotas de Andrea e Giovanni della Robbia. Mas o prazer desse minuto de luz acabaria por resultar monótono, não se lhe seguisse um dos mais extraordinários divertissements a que já me foi dado assistir, misto de balé, cinema e circo romano, sem falar que cheio de ensinamentos sobre a vida e arte de viver perigosamente. 

O caso é que, aos primeiros vestígios de luz, começava-se a ouvir por ali em torno um brando ruflar de asas que, com o despontar do Sol, crescia num espesso burburinho ao qual vinham se unir doces arrulhos. E o ambiente, em suas cores rosa, verde, laranja e terracota, adquiria uma maciez de plumas, e logo asas brancas e trigueiras começavam a tatalar em largos voos e algumas desciam em voos rasantes, e toda uma população de pombos, habitantes daqueles mil escaninhos, como só pode proporcionar à arquitetura antiga, vinha pousar na praça. 

A coisa ficava assim por uns poucos minutos, e em breve apareciam, infalivelmente, no belo logradouro, três padres e cinco gatos. Cabe dizer, em nome da verdade, que os padres chegavam bem menos sorrateiramente que os gatos e, estou certo, com intenções muito menos maléficas, pois se vinham os padres para se aquecer um pouco ao sol e ler seus breviários, os gatos surgiam, esgueirando-se das ruas laterais, para cumprir uma fatalidade do seu destino, que é de comer pombos. E com a malícia que lhes é peculiar, colocavam-se pacientemente em posições estratégicas, sob automóveis encostados ao meio-fio, à espera do momento azado para o bote. 

Deus sabe que, entre gatos e pombos, eu sou francamente pela primeira espécie. Acho os pombos um povo horrivelmente burguês, com o seu ar bem-disposto e contente da vida, sem falar na baixeza de certas características de sua condição, qual seja a de, eventualmente, se entredevorarem quando engaiolados. Mas no caso especial da piazza de Santa Maria Novella, devo confessar que era torcida incondicional dos pombos, e só passei a torcer pelos gatos no final, quando, defrontado com a realidade de sua terrível humilhação, e provável neurose subsequente, achei que não faria nenhuma falta à comunidade o desaparecimento de uma meia dúzia de columbinos, em beneficio do sistema nervoso dos pobres gatos. Pois era quase doloroso ver o fracasso constante de suas desesperadas tentativas de caçar um pombinho que fosse. E garanto que eles empregavam todas as técnicas tradicionais dos gatos, desde a paciente emboscada, até a carreira às cegas, com saltos desordenados para todos os lados. 

Tudo em vão. Porque, a cada arremetida, os pombos limitavam-se a dar pequenos voos que criavam verdadeiros túneis para os gatos, que os percorriam em furiosas e inúteis investidas. E o pior é que cada pombo, passado o rojão, pousava como se nada tivesse havido, e continuava na sua estúpida ciscação do chão da praça, na mais total indiferença diante de seu velho inimigo. Coisa que, positivamente, devia deixar os gatos loucos. Haja visto um que um dia eu vi, depois de numerosos ataques frustrados, a morder como um possesso o pneu de um Chevrolet, e por cuja sanidade mental não poria da maneira alguma a mão na Bíblia.

Fonte:

Gerson Cesar Souza (Poemas DiVersos)


DONA DO MEU CORAÇÃO

1. Onde o Brasil é mais Sul,
Onde o vento sopra frio
Onde o céu é mais azul
Onde o Sol encontra o Rio
Onde as noites duram mais
Há uma Cidade formosa
Que é Leal e Valorosa
Porto eterno dos Casais.

Porto Alerta, Porto Certo,
Porto de Início e de Fim
Para o mundo um Porto Aberto
Porto Alegre para mim.

2. Onde a praia virou Rua
E a Usina virou cultura
Onde a história continua
Na tradição que perdura
Há um Porto onde a paixão
Me faz ficar ancorado
Capital do meu Estado
Dona do meu coração.

MELODIA

Os filhos são quais notas musicais
de uma canção que na vida tocamos.
Mas como os sons, depois que os libertamos
não há maneira de prendê-los mais.

E quando vão ao mundo, é que notamos
que nossa “afinação” deixa sinais,
os filhos são espelhos de seus pais,
nos bons e maus exemplos que ora damos.

Por isso o nosso orgulho mais profundo
é ver um filho, nos “palcos” do mundo
viver sua “canção” com harmonia.

Sempre que um filho, em sua caminhada,
escolhe a trilha honesta e afinada
a nossa vida ganha melodia.

FILHO PRÓDIGO

Um dia resolvi ganhar a estrada...
Ardia em mim uma revolta interna,
busquei nas ruas a vida moderna,
andei sem rumo, sem rota traçada...

E em cada noite, no bar, na taberna,
uma amizade falsa era encontrada.
Fui enganado... e ao ficar sem nada
restou-me o rumo da casa paterna.

E ao encontrar, justo ao abrir a porta,
o beijo doce, o abraço que conforta,
fui entendendo, após andar demais:

Mesmo que os filhos vivam a vagar
eles somente vão chamar de “LAR”
a casa onde reside o amor dos pais!

LEGADO

Das coisas que ficaram na distância
Eu lembro bem, que lá na minha infância
Meu pai abria livros para mim...
Com lobos, com porquinhos e com fadas
Eram histórias simples e engraçadas
E todo mundo era feliz no fim!

Os livros eram sempre amarelados
Por serem tanto velhos quanto usados,
Trocados por centavos... Coisa assim...
Porém, em cada livro que eu pegava,
A minha mente livre viajava!
Meu pai abria livros para mim...

Passou o tempo... E a força do destino
Deixou pra trás os livros de menino
Me transformando em um homem maduro.
Porém, agora, entendo o seu legado,
Meu pai, abrindo livros no passado,
Abriu pra mim as PORTAS DO FUTURO.

POEMA PARA MINHA MÃE

Queria dar-te o que é teu por direito:
a poesia bem metrificada
feita com rima rica e rebuscada
e que outra igual, jamais se tenha feito.

Queria dar-te o verso mais perfeito,
criar aquela estrofe iluminada
que fosse bela, simples e inspirada
nesta emoção que mora no meu peito.

Mas sabes, mãe, nenhuma poesia
vai conseguir dizer o que eu queria,
porque este sentimento que é tão meu

somente o coração pode guardar.
E o coração eu não posso te dar...
Não posso dar-te o que sempre foi teu!

CAMINHOS

Eu vivo andando em diversos caminhos
estradas longas, num país gigante.
Eu busco o novo a cada novo instante,
enfrento a dor e destinos mesquinhos.

Se a vida impõe o rumo dos sozinhos,
busco um amigo em cada alma errante,
como uma flor, que encontra o viajante
ao caminhar entre as pedras e espinhos.

Colhendo amigos, planto o meu futuro,
descubro neles o porto seguro
para ancorar as dores da saudade.

Quem tem as malas prontas pra partida
será feliz ao navegar na vida
quando encontrar o cais de uma amizade.

Fonte:
Gérson César Souza. Dons DiVersos. 
Cachoeirinha/RS: Texto Certo.

Antonio Brás Constante (Cheios de tudo)


Existem pessoas tão cheias de si, que até suas caixas de recados são cheias. Tratam os outros com a mesma intolerância fria proferida nos recados de suas máquinas vazias. Gostam de arrotar educação, com fina crueldade, mas discriminam qualquer um que não seja de seu status social. Sua arrogância está estampada em suas faces macias tratadas com creme especial.

Sabem se portar à mesa, porém desconhecem as virtudes da simplicidade excluída na periferia. Dos muitos que eles poderiam auxiliar, dos muitos que poderiam auxiliar, dos muitos que vivem sem lar, dos muitos que vivem sem poder sonhar.

Falam diversas línguas, mas desconhecem a língua universal da humildade. Vestidos como reis, escondem a própria pobreza de seus sentimentos egoístas, que acabam expostos nos seus pontos de vista, na sua fala esnobe, na empáfia de suas vidas.

Pobres animais pensantes! Pobres vítimas de sua soberba sem pudor! Pobres de nós quando encontramos estes seres sem amor! Que tratam a todos com ironia, que maltratam sua própria chance de viver com seus semelhantes em harmonia. Cheios de tudo, donos de um mundo que não é seu. Enaltecem futilidades, muitas vezes vendendo sua dignidade em troca de glamour. Negam-se a beber do cálice da benevolência. Não sabem o que é clemência. Proclamam a si mesmos como doutores, como se um mero título fosse provar que por direito são melhores do que seus irmãos de carne e sangue. Apresentam-se como senhores da decência, maquiando a própria decadência com suas requintadas máscaras de cinismo e podridão.

Existem muitos seres assim, na riqueza e na pobreza. Entre ateus e religiosos. Entre todas as raças do planeta. Trajando uma armadura de espinhos feita de ofuscante orgulho. Abrem caminho para um falso futuro, sonhando com o topo, mas vivendo em um túnel escuro, abraçando a solidão tecida por sua amargura, por acharem que neste mundo são as únicas criaturas.

Fonte:
Constante, Antonio Brás.  Hoje é o seu aniversário! “Prepare-se” : e outras histórias. 
Porto Alegre, RS : AGE, 2009.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Trova 326 - José Feldman (Maringá/PR)

Trova sobre pintura a óleo "A Despedida", de Railson Damasceno (João Pessoa/PB)

Luís Carlos (Poemas Diversos)


A MISSÃO DO POETA

Quem já disse o que sofre? Quem da vida
Pode, acaso, esperar tudo o que sonha?
Não se vê pela face mais risonha
Esgueirar-se uma lágrima incontida?

Quem não leva, por fim, desiludida
A alma, após si seguindo tão tristonha,
Que, em silencioso, de rastos, não suponha
Já ser o enterro prévio de um suicida?

Ai de quem vê nosso destino a fundo:
O homem, a cada passo, diferente,
Mas sempre, em qualquer cousa, moribundo!

Pois, ser poeta é sentir, constantemente,
Esta expiação de compreender o mundo
E este mal de sofrer por toda a gente.

ATO DE FÉ

Musa, que em mim raiais como um clarão sonoro,
Incendendo-me o ser no ardor de um sonho imenso;
E que, corporizando a essência do que penso,
Em poemas converteis as lágrimas que choro;

Não me deis o esplendor de efêmero meteoro;
Condensai-me no estilo a força que eu condenso
Na minha fé - vapor de luminoso incenso -
Quando no ofício da Arte Excelsa me afervoro.

Quero a rima tocar; ver se ao mármore irmana,
Na contextura, e , assim, por pedestal do verso
Tomando-a, ter no verso uma coluna ufana!

E alto, sobre a coluna, ao sol, no Espaço imerso,
Hastear e defender contra a vileza humana
O pavilhão do ideal em face do Universo.

A UMA ÁRVORE

Escuta, árvore amiga, a minha vida
É, de certo, mais triste do que a tua.
Sofres, apenas, quando tumultua
O Vento em galopada desabrida.

No mais, o teu destino é uma subida:
É crescer, sob o Sol e sob a Lua,
Deitando sombra, quando o Sol estua,
Quedando, à luz do luar, adormecida.

Que diferença no meu ser tristonho!
Vives quieta, vivo eu porque me agito.
E, se adormeço, vibro mais no sonho.

Pois não tens, como eu tenho, a arrebatar-te
Dia e noite, a sem-fins, por toda a parte,
O pensamento — boêmio do Infinito.

CLAUSTRO ABANDONADO

Esta ruína que vês, cujo zimbório abriga,
Na severa feição de venerável urna,
Recalcadas paixões de tradição soturna,
É um claustro, que existiu ao sol da idade antiga.

- Entra-lhe a porta e vê: cresce por tudo a urtiga...
Melancoliza o ambiente uma expressão noturna;
Negreja, a cada passo, a boca de uma furna,
Bocejando, ao torpor de secular fadiga.

- Ajoelha, pecador. São túmulos daquelas
Que a glória teologal de penitências tantas
Por fim transfigurou na solidão das celas!

- Ajoelha, pecador. Nestas ferais gargantas,
Sufocaram-se os ais das místicas donzelas
- Monjas, durante a vida; ao fim da vida santas.

CREPÚSCULO

No pudor melancólico do ambiente
O Céu dissolve a sua paz de asilo,
Desvanecendo o azul, serenamente,
Entre uns tons de ametista e de berilo...

Fluidificam-se, ao longe, sutilmente,
As rosas do crepúsculo tranqüilo,
Transparecendo no vitral do poente,
À feição de um seráfico sigilo...

Vaga uma unção litúrgica nas cousas,
Num silêncio de naves e de lousas,
Que enleia a luz e a sombra, a entretecê-las...

E da angústia profunda do horizonte
Vem a noite, trazendo sobre a fronte
A coroa de espinhos das estrelas...

FINADOS

Dois de novembro. Finados.
Quanta flor! Quantas criaturas,
Guarnecendo as sepulturas
Dos ricos e potentados!

E junto deles, fadados
Sempre às mesmas desventuras,
Dormindo em campas obscuras
Os pobres — abandonados!

Mas, como que em julgamento
De súbito, irrompe o vento.
E, às suas arremetidas,

Os mausoléus, tão cobertos
De flores, ficam desertos
E as covas rasas — floridas.

MINHA SOMBRA

Esta minha implacável companheira,
Que em si me reproduz a vã figura,
Numa expressão de morte prematura,
Caminhando comigo a vida inteira;

Sempre muda, se fez a mensageira
Dos silêncios da minha desventura;
Convertendo-me o corpo em nódoa escura,
À força de ser muda é verdadeira.

Em vão procuro aprofundar-lhe o arcano.
Sombra... Visão de uma outra vida ausente.
Toco-a. Dissolve-a o meu contato humano.

Mas, se esqueço quem sou, surge-me à frente
E, quanto mais ao sol me aprumo e ufano,
Mais ao chão me reduz humildemente.

REFLEXOS

Velho tronco derrubado,
Mas inda a reflorescer,
Lá tens, pelo mesmo fado,
As condições do meu ser.

Tudo o que sempre hei sonhado
Fez-se dor e era prazer:
O coração sem cuidado,
Bate, bate até doer.

Tombado agora por terra,
Tua seiva ainda descerra
Uns restos de floração,

Como eu, nos versos que faço,
Tombado já de cansaço,
Floresço em recordação.

Luís Carlos (1880 – 1932)


Luís Carlos da Fonseca Monteiro de Barros (conhecido por Luís Carlos) nasceu no Rio de Janeiro/RJ, em 1880, e faleceu na mesma cidade em 1932.

Era filho do médico Dr. Eugênio Augusto de Miranda Monteiro de Barros e de D. Francisca Carolina Werna da Fonseca Monteiro de Barros. Formou-se na Escola Politécnica, em engenharia civil. Casado, transferiu-se para Minas Gerais e depois se mudou para São Paulo, onde exerceu a profissão nos quadros do serviço público, como funcionário da Estrada de Ferro Central do Brasil, na Zona Norte, que ele chegou a chefiar. Foi removido, galgando de posto, para o Rio de Janeiro, onde fixou residência. Em 1921, foi nomeado consultor técnico do Ministério da Viação. Muito conceituado em sua profissão, nem por isso abandonou o seu pendor natural para as letras. Sob o funcionário exemplar, existia o poeta, de que pouca gente, só os mais íntimos tinham conhecimento. Formou um grupo de intelectuais, com quem fundou a Hora Literária. Começou a estampar nos jornais e revistas os seus versos, numa época em que o Parnasianismo dominava amplamente a poética brasileira e seus modelos filiavam-se à técnica de Olavo Bilac e Alberto de Oliveira. Ele pertencia à última geração parnasiana, à geração dos discípulos de Emílio de Meneses e de Francisca Júlia. Contudo, em Luís Carlos, há um toque de romantismo que foge ao estilo parnasiano puro e simples.

Na sessão da Academia de 1917, à qual ele assistiu como visitante, Augusto de Lima fez a leitura de alguns de seus poemas. A imprensa do Rio de Janeiro passou a publicar-lhe sonetos esparsos, que o tornaram conhecido nas letras da metrópole.

Estreou em livro já aos quarenta anos. “Colunas”, publicado em 1920, foi aclamado com entusiasmo. Os amigos insistiam para que se candidatasse à Academia Brasileira de Letras. Tentou por duas vezes. A Academia recebeu-o e consagrou-o.

A poesia de Luís Carlos representa uma fase distinta, na estética dos nossos poetas. Não é o Parnasianismo já quase esgotado por enfadonhas e inúmeras repetições, nem é também a poesia inteiramente subjetiva que constitui a corrente mais vultosa da atualidade. O que notamos como essencial nos seus versos é a técnica das comparações e das imagens que associam os dois elementos, subjetivo e objetivo, quase sempre com grande e feliz originalidade.

Ocupou a cadeira 18 da Academia Brasileira de Letras, em 1926.

Publicações:
– Colunas.
– Encruzilhada.
– Astros e abismos.
– Rosal de ritmos, resumo histórico sobre a evolução da poesia brasileira.
– Amplidão.

Fonte:
Academia Brasileira de Letras

domingo, 28 de outubro de 2018

Luiz Damo (Glosas) I





CARRO

MOTE:
Se um carro cair da pista
embora pavimentada,
culpamos o motorista
por desconhecer a estrada.

GLOSA:
Se um carro cair da pista
gera triste consequência.
Coitado do motorista!
Dizem: lhe faltou prudência...

A estrada desconhecida
embora pavimentada,
deve ser sempre seguida
com cautela redobrada.

Na parada não prevista
sem nenhum acostamento,
culpamos o motorista
se houver atropelamento.

No volante, atentamente,
durante a dura jornada,
mais prudência, exatamente,
por desconhecer a estrada.
__________________

CONHECIMENTO

MOTE:
Através do pensamento
este mundo percorremos,
debaixo do firmamento
vivo, nós o manteremos.

GLOSA:
Através do pensamento
nós devemos começar,
se um maior conhecimento
desejarmos alcançar.

Como aves em liberdade,
este mundo percorremos,
sobre as asas da verdade
novos rumos tomaremos.

Daremos prosseguimento
superando alguns entraves,
debaixo do firmamento
onde só transitam aves.

Velho mundo reservado
frente os olhos o teremos,
em nosso ser preservado
vivo, nós o manteremos.
__________________

DEUS

MOTE:
Autor dum grande projeto,
Deus, este mundo criou,
para deixa-lo completo
um pouco a nós reservou.

GLOSA:
Autor dum grande projeto,
que homem algum nunca fez,
um lar de paz, tão repleto,
ou céu brilhante, talvez.

Sem trabalho e sem torturas
Deus, este mundo criou,
diz, porém as Escrituras,
que seis dias trabalhou.

Caminho justo e correto
traçou para a humanidade,
para deixa-lo completo
também deu-lhe a liberdade.

Fez água, terra, horizonte,
co’a vida Ele nos brindou,
mas para formar a ponte,
um pouco a nós reservou.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul.
Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

Irmãos Grimm (O Velho Sultão)


Um camponês possuía um cachorro muito fiel, chamado Sultão, que tinha ficado velho e perdera todos os dentes, de modo que não podia apanhar mais nada. Um dia, estava o camponês com sua mulher à porta de casa e dizia:

- Amanhã vou matar o velho Sultão, pois já não serve para nada.

A mulher, que tinha pena do animal tão fiel, disse:

- Ele nos serviu, honestamente, durante muitos anos! Bem poderíamos sustentá-lo caridosamente.

- Qual o quê! - volveu o homem - Tu estás louca! Não tem mais um dente sequer na boca e não há ladrão que o tema. É hora que se vá. Se nos serviu, em compensação teve também ótimos petiscos.

O pobre cão, que estava deitado ao sol, aí perto, ouviu tudo e ficou triste ante a perspectiva de que o dia seguinte seria o seu último dia. Tinha ele um bom amigo, o lobo. À noite, foi às escondidas visitá-lo na floresta e com ele lamentou o destino que o aguardava.

- Escuta, compadre, - disse-lhe o lobo - não desanimes, eu te ajudarei a livrar-te desta. Tenho uma ideia. Amanhã cedo teu patrão e a mulher vão apanhar feno e levam consigo o filhinho, porque em casa não fica ninguém para olhar por ele. Enquanto trabalham, deixam sempre a criança à sombra, atrás da cerca. Deita-te perto dele como se montasses guarda, eu então sairei da floresta e o roubarei. Tu me corres logo ao encalço, como se quisesses salvá-lo. Eu o deixarei cair e tu o levarás aos pais que, certos de o teres salvo, ficar-te-ão muito gratos e nenhum mal te farão. Pelo contrário, voltarás a ser estimado e não te deixarão faltar mais nada.

O projeto agradou ao cão, que o executou tal e qual. Vendo o lobo correndo pelo campo com a criança na boca, o homem pôs-se a gritar, mas, daí a pouco, quando o velho Sultão o trouxe de volta, disse, muito feliz, acariciando-o:

- Não terás um só pelo torcido, e te sustentarei enquanto viveres.

Depois disse à mulher:

- Vai já para casa e prepara um bom mingau para o velho Sultão, a fim de que não precise mastigar, e traze o meu travesseiro, vou da-lo para que durma nele.

Desde esse momento, o velho Sultão passou tão regaladamente que não poderia desejar melhor. Pouco de pois, o lobo foi visitá-lo e alegrou-se ao ver que tudo lhe correra às mil maravilhas.

- Porém, compadre, - disse o lobo - fecharás um olho se eu por acaso furtar uma bela ovelha de teu patrão. Hoje em dia é difícil cavar a vida!

- Não contes com isso, - respondeu o cão - permanecerei sempre fiel ao meu patrão, portanto, não farei concessões.

O lobo julgou que o cão não falava seriamente e, durante a noite, aproximou-se sorrateiramente para furtar a ovelha. Mas o camponês, ao qual o fiel Sultão havia revelado as intenções do lobo, ficou espreitando-o e penteou-lhe o pelo com o relho. O lobo foi obrigado a safar-se, mas gritou ao cão:

- Espera, amigo falso, hás de me pagar!

Na manhã seguinte, o lobo enviou o javali a fim de convidar o cão à floresta para resolver a questão. O velho Sultão não conseguiu encontrar outro padrinho senão um pobre gato com três pernas só. Quando saíram juntos, o pobre gato caminhava coxeando e, pela dor, erguia alto a cauda.

O lobo e o seu padrinho já se encontravam no local, mas quando viram chegar o adversário julgaram que vinha armado de espada, que era a cauda do gato. Enquanto o pobre animalzinho saltitava com três pernas, o lobo e seu padrinho pensavam que, toda vez que se abaixava e levantava, apanhava uma pedra para atirar neles. Então os dois ficaram com medo, o javali escondeu-se entre a folhagem e o lobo trepou numa árvore.

Aproximando-se, o cão e o gato surpreenderam-se de não encontrar ninguém. Mas o javali não pudera esconder-se completamente e as orelhas apareciam por cima da folhagem. Enquanto o gato olhava à sua volta com desconfiança, o javali agitou as orelhas. O gato então, confundindo-o com um rato, lançou-se sobre ele mordendo-o com força. Então o javali deu um salto e fugiu berrando:

- Ali, em cima da árvore, está o culpado!

O cão e o gato ergueram os olhos e avistaram o lobo, que se envergonhou de ter demonstrado tanto medo e aceitou o tratado de paz com o cão.

Fonte: