quinta-feira, 25 de março de 2021

Alex Xela Lima (Será o Benedito?!)


Nunca imaginei uma coisa daquelas. Foi uma situação bem bizarra. Eu olhava e permanecia incrédulo mesmo testemunhando o fato, justamente, no momento mais especial da noite.

A festa transcorria tranquilamente convidado a convidado, tia a tia, primo a primo, amigo a amigo até chegarmos ao momento do aniversariante soprar a velinha e podermos experimentar o bolo que chamava tanta atenção.

O pequeno Thomas, agora com dois anos, estava nos braços de sua mãe, ladeado por seu pai e sua irmã mais velha. Todos em volta celebravam aquele momento e ficaram intrigados com aquela insistência injustificada e com o desfecho bizarro que gerou vários cochichos entre os presentes.

Calma, já vou lhe contar.

Enquanto os parabéns eram cantados alegremente, uma tia robusta gritou: – Thomas, faça um pedido e apague a velinha! O pequenino olhou para o bolo, mirou a vela, soprou forte e pôs fim à chama. Todos comemoram.

Parecia ter sido um sopro suficiente, mas a chama reacendeu. Com a ajuda da mãe, novo sopro e nova comemoração dos convidados. – Corta o bolo! – gritou a tia robusta. Mas, a danada da vela ressuscitou pela segunda vez. Os convidados sorriram e nova investida contra a chama da vela foi realizada, sem sucesso.

Por uma quarta vez a chama da vela foi alvo de Thomas, agora com a ajuda de seus pais e sua irmã. Dessa vez não houve celebração. Apreensivos e em silêncio, todos fitaram a vela, que relutava em se despedir.

– Que vela teimosa! – exclamou outra tia.

– Deve ser um fantasma – comentou uma criança.

Fato foi que a vela chamou atenção mais do que deveria.

A tia robusta, irritada com a teimosia da vela e farta de esperar pela fatia tão almejada, possessa, despejou refrigerante no alto do bolo, afogando a vela e sua insistente chama que não tornou a brilhar. Um silêncio indagador tomou conta dos olhares dos convidados.
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Menção honrosa no 1º Concurso de Crônicas da Academia Internacional da União Cultural

Fonte:
Facebook da Academia

Álvares de Azevedo (Poemas Escolhidos) – 6 –

XXI


De um ramo desta faia pendurado
Veja o instrumento estar do pastor Fido;
Daquele, que entre os mais era aplaudido,
Se alguma vez nas selvas escutado.

Ser eternamente consagrado
Um ai saudoso, um fúnebre gemido;
Enquanto for no monte repetido
O seu nome, o seu canto levantado.

Se chegas a este sítio, e te persuade
A algum pesar a sua desventura,
Corresponde em afetos de piedade;

Lembra te, caminhante, da ternura
De seu canto suave; e uma saudade
Por obséquio dedica à sepultura.
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XXII

Neste álamo sombrio, aonde a escura
Noite produz a imagem do segredo;
Em que apenas distingue o próprio medo
Do feio assombro a hórrida figura;

Aqui, onde não geme, nem murmura
Zéfiro brando em fúnebre arvoredo,
Sentado sabre o tosco de um penedo
Chorava Fido a sua desventura.

As lágrimas a penha enternecida
Um rio fecundou, donde manava
D’ânsia mortal a cópia derretida:

A natureza em ambos se mudava;
Abalava-se a penha comovida;
Fido, estátua da dor, se congelava.
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XXIII

Tu sonora corrente, fonte pura,
Testemunha fiel da minha pena,
Sabe, que a sempre dura, e ingrata Almena
Contra o meu rendimento se conjura:

Aqui me manda estar nesta espessura,
Ouvindo a triste voz da filomena,  
E bem que este martírio hoje me ordena,
Jamais espero ter melhor ventura.

Veio a dar me somente uma esperança
Nova ideia do ódio; pois sabia,
Que o rigor não me assusta, nem me cansa:

Vendo a tanto crescer minha porfia,
Quis mudar de tormento; e por vingança
Foi buscar no favor a tirania.
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XXIV

Sonha em torrentes d'água, o que abrasado
Na sede ardente está; sonha em riqueza
Aquele, que no horror de uma pobreza
Anda sempre infeliz, sempre vexado:

Assim na agitação de meu cuidado
De um contínuo delírio esta alma presa,
Quando é tudo rigor, tudo aspereza,
Me finjo no prazer de um doce estado.

Ao despertar a louca fantasia
Do enfermo, do mendigo, se descobre
Do torpe engano seu a imagem fria:

Que importa pois, que a ideia alívios cobre,
Se apesar desta ingrata aleivosia,
Quanto mais rico estou, estou mais pobre.
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XXV

Não de tigres as testas descarnadas,
Não de hircanos leões a pele dura,
Por sacrifício à tua formosura,
Aqui te deixo, ó Lise, penduradas:

Ânsias ardentes, lágrimas cansadas,        
Com que meu rosto enfim se desfigura,          
São, bela ninfa, a vítima mais pura,            
Que as tuas aras guardarão sagradas.   

Outro as flores, e frutos, que te envia,        
Corte nos montes, corte nas florestas;         
Que eu rendo as mágoas, que por ti sentia:   

Mas entre flores, frutos, peles, testas,
Para adornar o altar da tirania,
Que outra vítima queres mais, do que estas?

Fonte:
Álvares de Azevedo. Poesias. Livro publicado em 1853.

Rachel de Queiroz (O jogador de sinuca)


Quem não tem fascinação por Minas Gerais, suas cidades históricas, o mistério de suas velhas igrejas, os milagres do Bom Jesus de Congonhas?

Mas aqui se vai falar acerca de alguém que nem é santo de pedra-sabão nem querubim banhado a ouro, mas criatura como nós, jogador de sinuca na cidade de Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais.

E entre parênteses façamos um pequeno louvor ao nobre jogo de sinuca, que justamente me foi revelado pelo jogador herói desta história, num meio-dia de sol quente, à sombra do salão do Bar Campestre, na dita cidade de Lafaiete.

Vínhamos nós comendo légua e paisagem desde Juiz de Fora e paramos à porta do bar de nome tão convidativo em busca de um refrigerante. Na rua ficara o jipe (então novidade), empoeirado e de ar diligente, sofrendo uma vistoria minuciosa por parte de uma dúzia de moleques. O bar tinha tudo, ou quase tudo: cerveja gelada e telefone para o Rio, pastéis de carne de porco e duas mesas de sinuca novas em folha, com todos os seus acessórios.

Ao chegarmos estavam ambas as mesas vazias. Porém, mal nos sentáramos diante da cerveja e dos pastéis, entram salão adentro dois aficionados, combinando uma partida.

O primeiro deles era um moço alto, cara de menino, fala baixa e terno tropical cinza à moda do tempo, as calças à altura do estômago. Apesar dessas demasias de janota, dava uma impressão de timidez, quase de gaucherie, que fazia a gente sentir vontade de lhe rogar que não se atirasse com tanta inocência às goelas do leão.

E o leão era o outro: de pequeno só tinha o tamanho, as mãos e os pés. No mais era gigante — nos passos, na prosápia, na cabeleira negra ondulada, no perfil de índio americano, na voz grave e arrogante, nos sapatos cor de abóbora com solas de borracha.

Já da porta, desabotoava o jaquetão azul-marinho, como um magarefe ansioso de dar serviço à musculatura, embora musculatura não tivesse, malgrado a sugestão de Hércules que passava aos outros — Hércules magro e miúdo.

Tirando o casaco todo, exibiu a camisa de seda amarela, os suspensórios transparentes de matéria plástica, o cinturão idem; e não só essas utilidades brilhantes e inofensivas exibia, como também um revólver de verdade, metido num coldre de couro estampado, e de cano tão comprido que lhe descia quadril abaixo, quase até a coxa.

Posto em mangas de camisa, atravessou a sala, desafivelou o cinturão, retirou a arma e a depositou na caixa. Nesse gesto, como em tudo, nunca vi ninguém produzir tal impressão de eficiência. E então o cerimonial com que iniciou o jogo — a carteira de cigarros e os fósforos equilibrados à borda da mesa; as mangas da camisa magistralmente arregaçadas; o primeiro cigarro aceso com lentidão e os anéis regulares de fumaça que subiram para o forro; depois a escolha dos tacos: media-os, apalpava-os, tateava-lhes as pontas com a polpa dos dedos — só os faltava lamber. Em tudo traía o profissional ou, no mínimo, um campeão de amadores. Chegava a ser um massacre premeditado a escolha do parceiro, que, do outro lado da mesa, parecia encolher-se, depois de apanhar ao acaso um taco qualquer e o esfregar automaticamente no giz, sem tirar os olhos dos preparativos infernais do contendor.

Bem, claro que já se adivinhou o desenlace do caso: o campeão, o famanaz, acabou apanhando como um judas de capim. Apanhou de tal jeito que, na primeira partida, não fez um ponto, na segunda nenhum também, e a terceira, abandonou-a no meio, quando o escore já estava em 49 a 0.

Contudo, esta história não mereceria ser contada se não fora a atitude da criatura no decorrer daquelas três partidas. Era um fenômeno, era um teatro, era o príncipe Hamlet da Dinamarca exibindo paixões e desdéns.

Do começo jogava a bem-dizer com severidade, disposto a dar uma lição de sinuca clássica ao atrevido rapazelho que, embora o ultrapassasse quase meio metro em altura — tal a força moral do adversário —, parecia por isso mesmo ainda mais fedelho e desamparado. E toda vez em que o garoto, prudente, encestava a sua bola vermelha, marcando um triste ponto, ele dizia alto: “Sorte, hein, menino!”

Que ele só se passava para as bolas de cinco pontos para cima — a azul, a cor-de-rosa, a preta. E falhava, infalivelmente. Parecia um sortilégio: o homem ensaiava as jogadas mais sensacionais; fazia cálculos, dormindo na pontaria, punha o taco vertical, horizontal e oblíquo; punha-o às costas, jogando com os braços para trás; dava a tacada com a mão esquerda, com os olhos fechados, com os olhos abertos. E, fosse de que jeito fosse, o resultado era sempre este: zero. Aliás, não só zero, porque era também menos que zero — sete, cinco, três pontos a menos, inúmeras vezes. Nem também lhe valia o jogar normal — o escore não variava nunca a seu favor.

E pelo meio da primeira partida, já a mais dos 40 a 0, o herói começou a se enfezar. Fumava incendiariamente e uma nuvem de fumo o envolvia como a Jeová no alto do monte. Xingava o taco, o pano e as bolas, explicava ao público assistente que na véspera surrara em cinco partidas consecutivas um sujeito que tinha a fama de campeão em Barbacena — nem empate tinha havido. Agora era aquela sorte mesquinha...

Pegou então do taco, que lhe chegara a vez, apontou modestamente para a bola marrom (só quatro pontos) e o que conseguiu foi meter a própria bola branca no buraco.

Aí, não só nós, por trás dos nossos óculos escuros, como inclusive o homem da caixa, atrás da registradora, soltamos um risinho irreprimível. O grande jogador nos encarou de fito, como se fosse reagir; mas decerto leu nos nossos olhos a covardia e o arrependimento e resolveu nos desprezar, como nos desprezou efetivamente.

E continuou sem dar uma dentro, enquanto o menino das calças altas ia encestando de uma em uma, até que engoliu a preta, a última.

Da segunda partida em diante a gente só sentia uma vontade: levantar, chegar à mesa de sinuca e convidar o herói para ser nosso inimigo, figadal e por toda a vida.

Desvairado, de orgulho ferido, o homem parecia um vulcão querendo explodir, papocando as crostas de lama seca, ploc-ploc, e deitando fumaça venenosa. Que miséria esta fraca pena ser incapaz de descrever espetáculo tão singular, embora repulsivo!

De repente, parece que o atacou um acesso de masoquismo, porque ele arrancou o giz do parceiro, que até então vinha fazendo as marcações no quadro, e passou a registrar as próprias derrotas. Menos dez para si, mais quatorze para o outro, era de mal a pior, só variava para aumentar. Se arranjava um pontinho, logo o perdia numa jogada atrevida e o outro, como sempre, de grão em grão ia encestando.

Começada a terceira partida, o ambiente já ficara dramático. Da porta, um moleque de “sereno” arriscou um assobio. O homem do bar pôs-se a abrir e a fechar as gavetas da registradora, assanhando campainhas nervosas. E até o mocinho, parceiro do herói, começava a descontrolar-se — tanto que, em vez de jogar na bola amarela, que era a da vez, jogou na azul — e acertou. Acertou em seguida a saltada amarela, depois a verde, e só foi errar na marrom.

Então o herói pegou do taco como se empunhasse uma lança de guerra; afiou-o no giz, cuspiu no dedo, fechou um olho, fez pontaria na bola preta, que era a sua favorita e, pela segunda vez, suicidou-se, atirando a bola branca no buraco.

Um silêncio de mau agouro nos envolveu; ele cuspiu no ladrilho e correu o olhar desvairado pela assistência. Depois, no seu passo forte, encaminhou-se à caixa e pediu o revólver.

O adversário, muito branco, apagava no quadro-negro os últimos sete pontos que o parceiro perdera, como se quisesse considerar o dito por não dito.

Mas o herói dava-lhe as costas. Lentamente enfiou o coldre com a arma no seu cinturão de plástico. Depois se dirigiu ao cabide, de olhar sombrio, enfiou a manga da mão direita, errou a esquerda, enquanto todos o contemplávamos fascinados; por fim, saiu para o sol da rua, pisando duro, sem se despedir de ninguém, como um conquistador.

Fonte:
Rachel de Queiroz. A casa do morro branco. RJ: José Olympio, 2012.

quarta-feira, 24 de março de 2021

Contos e Lendas do Mundo (A pérola)


Ela havia nascido no fundo do mar, a partir de um alegre e doloroso encontro entre um grão de areia e uma pequena ostra.

Quando ela apareceu, as suas companheiras ficaram muito felizes. Até mesmo a rainha do mar ficou admirada com aquela pérola rara e maravilhosa, e a circundou de cuidados particulares.

Todos os dias, ao amanhecer, a ostra, já crescida, se abria e a pérola se deixava acariciar pelo Sol, refletindo seus raios ao redor, para a alegria de todos.

Mas o inverno chegou. Os dias passavam e o Sol não aparecia mais. Ficava escondido atrás das nuvens.

A pérola esperava que a luz do Sol voltasse, mas enquanto isso não acontecia, o seu brilho diminuía cada vez mais. Mesmo assim, incrustada no banco de corais no fundo do mar, ela procurava alegrar os peixes que vagueavam ao seu redor. Porém, quanto mais o tempo passava, mais ela se sentia invadida pela escuridão.

A rainha do mar sabia de tudo o que estava acontecendo e lhe mandou um mensageiro.

A pérola, que já sentia a morte chegando, foi colocada em uma baía de águas baixas e límpidas, onde dezenas de pequenas pérolas estavam crescendo. O Sol resplandecia naquelas águas, mas a pérola rara não conseguia mais vê-lo.

Era como se os longos meses sem o Sol lhe tivessem tirado a visão.

Mesmo assim ela estava feliz por estar naquela baía, porque soubera que havia sido a rainha do mar a mandá-la para aquelas águas.

Embora não conseguindo ver a luz do Sol, ela não era insensível ao calor dos reflexos - se bem que ainda fracos - que as pequenas pérolas lhe mandavam.

Para ela, que havia irradiado os raios de Sol, não era nenhum sacrifício retribuir a atenção das perolazinhas, refletindo os pequenos raios de luz que recebia.

Essa troca era como um bálsamo para ela e lhe dava um pouco de paz.

As pequenas pérolas, que a viam como predileta entre todas, queriam aprender a refletir os raios de Sol como ela fazia.

A pérola amava as perolazinhas e não queria decepcioná-las, confidenciando-lhes que estava cega.

Por isso não disse nada e fez por elas o que sempre tinham feito quando a ostra se abria.

E as perolazinhas viam luz... Luz... Luz... mesmo se a pérola só sentia escuridão... Escuridão... Escuridão.

Só à noite, quando ninguém a via, a pérola rara derramava uma lágrima no segredo da ostra.

Uma noite, o mensageiro, enviado pela rainha do mar, chegou àquela baía e foi bater na porta da ostra. Quando ela se abriu, grande foi a surpresa de todos.

Do centro da ostra, onde a pérola repousava, brotava uma luz intensa, semelhante àquela do Sol.

O amor lhe tinha ensinado a transformar a escuridão em luz.

Cecília Meireles (Antologia Poética) IV

A ÚLTIMA CANTIGA


Num dia que não se adivinha,
meus olhos assim estarão:
e há de dizer-me: «Era a expressão
que ela ultimamente tinha.»

Sem que se mova a minha mão
nem se incline a minha cabeça
nem a minha boca estremeça,
— toda serei recordação.

Meus pensamentos sem tristeza
de novo se debruçarão
entre o acabado coração
e o horizonte da língua presa.

Tu, que foste a minha paixão,
virás a mim, pelo meu gosto,
e de muito além do meu rosto
meus olhos te percorrerão.

Nem por distante ou distraído
escaparás à invocação
que, de amor e de mansidão,
te eleva o meu sonho perdido.

Mas não verás tua existência
nesse mundo sem sol nem chão,
por onde se derramarão
os mares da minha incoerência.

Ainda que sendo tarde e em vão,
perguntarei por que motivo
tudo quanto eu quis de mais vivo
tinha por cima escrito: “Não”.

E ondas seguidas de saudade,
sempre na tua direção,
caminharão, caminharão,
sem nenhuma finalidade.
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CANÇÃO

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
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CONVENIÊNCIA

Convém que o sonho tenha margens de nuvens rápidas
e os pássaros não se expliquem, e os velhos andem pelo sol,
e os amantes chorem, beijando-se, por algum infanticídio

Convém tudo isso, e muito mais, e muito mais...
E por esse motivo aqui vou, como os papéis abertos
que caem das janelas dos sobrados, tontamente...

Depois das ruas, e dos trens, e dos navios,
encontrarei casualmente a sala que afinal buscava,
e o meu retrato, na parede, olhará para os olhos que levo.

E encolherei meu corpo nalguma cama dura e fria.
(Os grilos da infância estarão cantando dentro da erva...)
E eu pensarei: “Que bom! nem é preciso respirar!...”
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SERENATA

Repara na canção tardia
que timidamente se eleva,
num arrulho de fonte fria.

O orvalho treme sobre a treva
e o sonho da noite procura
a voz que o vento abraça e leva.

Repara na canção tardia
que oferece a um mundo desfeito
sua flor de melancolia.

É tão triste, mas tão perfeito,
o movimento em que murmura,
como o do coração no peito.

Repara na canção tardia
que por sobre o teu nome, apenas,
desenha a sua melodia.

E nessas letras tão pequenas
o universo inteiro perdura.
E o tempo suspira na altura

por eternidades serenas.

Fonte:
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.

Isaac Asimov (O Sorriso roubado)


Recentemente, disse para o meu amigo George, que estava comigo no bar tomando uma cerveja (ele estava tomando uma cerveja; eu estava tomando um refrigerante):

- Como vai o seu diabinho?

George se gaba de ter um demônio de dois centímetros de altura que faz tudo que ele pede. Jamais consigo fazê-lo admitir que está mentindo. Nem eu nem mais ninguém,

Ele olhou para mim e disse, em tom conspiratório:

- Ah, sim, você é aquele que sabe a respeito! Espero que não tenha contado a mais ninguém!

- Claro que não! Já basta eu achar que você é maluco. Não quero que pensem o mesmo de mim!

(Na verdade, ele já falou sobre o demônio, na minha frente, com pelo menos uma dúzia de pessoas, de modo que não haveria nenhuma razão para eu guardar segredo, mas achei melhor não dizer isso a ele.)

- Eu não aceitaria essa sua triste incapacidade de acreditar no que não pode compreender (e você não compreende tantas coisas assim), mesmo que me oferecessem em troca um quilo de plutônio. E o que vai restar de você, se o meu demônio um dia descobrir que você o chamou de diabinho, não valerá ura átomo de plutônio.

- Já sabe qual é o seu nome verdadeiro? – perguntei, sem me deixar abalar.

- O nome dele não pode ser pronunciado por lábios humanos. A tradução, pelo que ele me deu a entender, é alguma coisa como: “Sou o Rei dos Reis; admirem minha obra e fiquem de queixo caído…”. Na verdade, acho que ele está mentindo – acrescentou George, olhando pensativamente para o copo de cerveja. – Ele é um fichinha no seu mundo. É por isso que se mostra tão ansioso para fazer as minhas vontades. Em nosso mundo, com nossa tecnologia primitiva, ele pode se mostrar.

- Ele tem se mostrado ultimamente?

- Na verdade, sim – disse George, dando um profundo suspiro e levantando os olhos azuis e tristes que se fixaram nos meus. O bigode grisalho levou algum tempo para voltar ao lugar depois daquela exalação forçada.

Tudo começou com Rosie O’Donnell [disse George], que, além de ser amiga de uma das minhas sobrinhas, é uma coisinha adorável.

Ela tem olhos azuis, quase tão vivos quanto os meus; cabelos ruivos, longos e brilhantes; um narizinho delicioso, semeado de sardas da forma aprovada por todos que escrevem romances; um pescoço gracioso, ura corpo esbelto que não é opulento de forma desproporcional, mas simplesmente delicioso em suas promessas de êxtase.

Naturalmente, tudo isso tinha para mim um interesse apenas intelectual, já que cheguei à idade da discrição faz muitos anos, e hoje me entrego aos prazeres da carne apenas quando as mulheres insistem, o que, para dizer a verdade, não ocorre com muita frequência.

Além do mais, Rosie havia desposado recentemente (e, por alguma razão, adorava de forma irritante) um irlandês corpulento que não fazia nenhum esforço para esconder o fato de que era uma pessoa muito forte e possivelmente mal-humorada. Embora eu não tivesse dúvida de que poderia enfrentá-lo em minha mocidade, a triste realidade é que a minha mocidade já havia ficado para trás… um pouquinho para trás.

Assim, foi com uma certa relutância que aceitei a tendência de Rosie de me confundir com uma amiga intima do mesmo sexo e faixa etária e me fazer objeto de suas confidencias infantis.

Não que eu a culpe, compreenda. Minha dignidade natural, e o fato de que minha figura altiva faz as pessoas se lembrarem de um imperador romano, automaticamente atraem as jovens mais belas para minha pessoa. Entretanto, eu nunca havia permitido que as coisas fossem longe demais. Sempre me conservava a uma distância respeitável de Rosie, pois não queria que alguma intriga chegasse aos ouvidos do indubitavelmente forte e possivelmente mal-humorado Kevin O’Donnell.

- Oh, George – disse Rosie um dia, batendo palmas com aquelas lindas mãozinhas -o meu Kevin é mesmo um amor… sabe o que ele faz?

- Acho que você não devia… – comecei, cautelosamente, sem saber que tipo de revelação indiscreta ela estava para me fazer.

Rosie não estava nem me ouvindo.

- Ele franze o nariz, pisca o olho e sorri de um jeito tão gostoso… é como se o mundo inteiro se iluminasse. Oh, se ao menos eu tivesse um retrato dele quando faz isso! Já tentei tirar um, mas não saiu direito.

- Por que não se contenta com o original, minha cara?

A moça hesitou por um momento e depois disse, com um rubor cativante nas faces:

- Acontece que ele não é sempre assim. Kevin tem um emprego muito duro no aeroporto e às vezes chega em casa exausto. Nesses dias, se aborrece com qualquer coisa. Chega a implicar comigo. Se pelo menos eu tivesse uma fotografia dele, como realmente é, isso me serviria de consolo. Seria tão bom… – lamentou-se, com os olhos úmidos.

Devo admitir que senti vontade de lhe contar a respeito de Azazel (é assim que eu o chamo, porque me recuso a usar aquela que, segundo ele, é a tradução do seu nome verdadeiro) e lhe explicar o que ele poderia fazer por Rosie.

Entretanto, como sabe muito bem, sou uma pessoa extremamente discreta. Até agora, não consigo entender como foi que você descobriu que sou amigo de um demônio.

Além disso, foi fácil para mim resistir ao impulso, pois sou um homem prático, realista, avesso a sentimentalismos piegas. Admito que meu coração tem um fraco por mocinhas indefesas, contanto que sejam radiantemente belas (no bom sentido, é claro… quase sempre). E me ocorreu que, na verdade, eu podia muito bem ajudá-la sem mencionar Azazel. Não que ela fosse duvidar de mim, é claro, porque sou um homem cujas palavras merecem crédito, a não ser de tipos psicóticos como você.

Levei o problema a Azazel, que não se mostrou nem um pouco satisfeito.

- Você só me pede coisas abstratas – queixou-se.

- Nada disso! – protestei. – O que estou lhe pedindo é uma simples fotografia. Tudo que tem a fazer é materializá-la.

- Oh, isso é tudo que tenho a fazer? Se é tão simples assim, por que você não faz? Imagino que conheça o princípio de equivalência entre massa e energia.

- Só uma fotografia!

- É, mas com uma expressão que você é incapaz de definir ou descrever.

- Nunca o vi olhar para mim do jeito como olha para a esposa, é claro. Mas tenho uma fé infinita na sua capacidade.

Eu estava certo de que conseguiria dobrá-lo com um pouco de adulação. Azazel disse, de cara feia:

- Você vai ter de tirar a fotografia.

- Mas eu não vou conseguir a expressão…

- Não será necessário. Posso cuidar disso, mas será muito mais fácil se dispuser de um objeto material para focalizar a abstração. Uma fotografia, em suma. Uma fotografia, ainda que muito mal tirada, como provavelmente a que você vai me dar. E só me comprometo a fazer uma cópia. Não vou me arriscar a sofrer uma distensão do músculo subjuntivo só para atender a você ou a qualquer outro cabeça de alfinete deste planeta.

Sabe como é… acho que Azazel diz essas coisas para se sentir importante e valorizar o que faz por mim.

Encontrei-me com os O’Donnell no domingo seguinte, quando voltavam da missa. (Na verdade, estava à espera deles.) Não se incomodaram que eu tirasse um retrato deles em seus trajes dominicais. Rosie parecia muito alegre; Kevin, um pouco taciturno. Depois, da maneira mais casual possível, tirei uma fotografia do rosto do rapaz. Ele não estava sorrindo, nem franzindo o nariz, ou fazendo o que quer que fazia que Rosie achava tão atraente, mas achei que não tinha importância. Eu não sabia nem mesmo se a câmera estava focalizada corretamente. Afinal, não tenho muita experiência como fotógrafo.

Em seguida, visitei um amigo que adora fotografia. Ele revelou as duas fotos e fez uma ampliação do rosto de Kevin,

Na verdade, ele me atendeu de má vontade, resmungando que estava muito ocupado, mas não lhe dei atenção. Afinal, que importância poderiam ter suas tolas atividades em comparação com as questões transcendentais que me afligiam? Sempre fico surpreso com o número de pessoas que não compreendem esta simples verdade.

Depois de fazer a ampliação, porém, meu amigo mudou inteiramente de atitude. Ficou olhando para ela e disse, em um tom que só posso caracterizar como ofensivo;

- Não me diga que você conseguiu tirar uma foto como esta!

- Por que não? – disse eu, estendendo a mão para pegá-la.

Ele, porém, não parecia disposto a entregar a fotografia.

- Você vai querer mais cópias – declarou.

- Não, não vou – disse, olhando por cima do ombro.

Era uma fotografia extremamente nítida, em cores vivas.

Kevin O’Donnell estava sorrindo, embora eu não me lembrasse daquele sorriso no momento em que tirara a foto. Parecia alegre e simpático, mas para mim não fazia a menor diferença. Talvez uma mulher, ou um fotógrafo como o meu amigo (que, para ser franco, não era nenhum modelo de masculinidade) pudesse ver mais alguma coisa na foto.

- Então só mais uma… para mim – disse ele.

- Não – repeti, com firmeza, ao mesmo tempo que lhe arrancava o retrato das mãos. – £ o negativo, por favor. Pode ficar com a outra fotografia… a do casal.

- Essa não me interessa – disse, em tom petulante.

Quando saí, ele parecia muito desapontado.

Coloquei a fotografia em um porta-retratos, coloquei o porta-retratos sobre a lareira e recuei para apreciar. O rosto do rapaz tinha, realmente, uma expressão bastante jovial. Azazel tinha feito um bom trabalho.

                Fiquei imaginando qual seria a reação de Rosie. Telefonei para ela e pedi-lhe para passar na minha casa. Acontece que ela tinha algumas compras a fazer, mas se eu pudesse esperá-la mais ou menos uma hora… uma hora…

Eu podia e esperei. Eu havia embrulhado a foto para presente e entreguei-a a ela sem dizer uma palavra.

- Ei! – exclamou, enquanto abria o embrulho. – Que ideia foi essa? Não é meu aniversário nem… – Mas nessa hora ela viu o que era e interrompeu o que estava dizendo. Arregalou os olhos e começou a respirar mais depressa. Afinal, murmurou: – Minha nossa! – Olhou para mim – Você tirou esse retrato no domingo?

Fiz que sim com a cabeça.

- Está simplesmente perfeito. Oh, Kevin saiu tão bem! Era essa a expressão que eu queria captar! Por favor, posso ficar com ele?

- Claro. É todo seu – disse, com simplicidade.

Ela se pendurou no meu pescoço e me beijou nos lábios. Para uma pessoa como eu, que detesta sentimentalismos, é claro que foi constrangedor; além disso, mais tarde tive de enxugar o bigode. Mas eu sabia que era a maneira que Rosie encontrara para demonstrar sua gratidão, de modo que nada fiz para impedi-la.

Depois disso, passei uma semana sem vê-la.

Uma semana depois, encontrei-me com Rosie na porta do açougue. Teria sido uma indelicadeza de minha parte não me oferecer para carregar suas compras. Naturalmente, imaginei se isso significaria outro beijo de agradecimento e tomei a decisão de não recusar para não ofender a pobrezinha. Entretanto, ela parecia um pouco triste.

- Como vai a fotografia? – perguntei, com medo de haver desbotado.

Ela imediatamente se animou.

- Perfeita! Coloquei-a em cima da cômoda, em um ângulo tal que posso vê-la quando estou sentada à mesa para jantar. Seus olhos me veem de soslaio, de um jeito maroto,  o nariz está franzido com aquele jeitinho que só o Kevin é capaz de fazer. Parece que está vivo! Minhas amigas não tiram os olhos dele. Acho que vou escondê-la quando elas me visitarem, antes que alguma delas a roube.

- Você deve tomar cuidado é para que não roubem o seu marido – disse eu, brincando.

A expressão de tristeza voltou aos olhos de Rosie. Ela sacudiu a cabeça e disse:

- Acho que não há perigo. Resolvi tentar outra abordagem.

- O que Kevin achou da foto?

- Ele não disse uma palavra. Nem uma palavra. Nem mesmo sei se a viu.

- Por que não lhe mostra o retrato e pergunta o que acha?

Ela se manteve em silêncio enquanto eu me arrastava a seu lado por meio quarteirão, carregando aquela enorme sacola de compras e imaginando se, além de pegar no pesado, ela também estava esperando que eu lhe desse um beijo.

- Na verdade – disse Rosie, de repente -, ele está passando por uma fase de muita tensão no trabalho, por isso, acho que não seria uma boa ideia. Ele chega em casa tarde e mal fala comigo. Mas não tem importância. Você sabe como são os homens – acrescentou, tentando sorrir sem muito sucesso.

Tínhamos chegado ao edifício onde ela morava e passei-lhe a sacola. Ela me disse, ao se despedir:

- Mais uma vez, muito obrigada pela fotografia! É linda!

Entrou no edifício. Não havia pedido um beijo, e eu estava tão distraído que só me dei conta do fato quando estava a meio caminho de casa e me pareceu tolice voltar lá simplesmente para não desapontá-la.

Mais dez dias se passaram. Uma manhã, ela me telefonou. Será que eu podia ir almoçar na sua casa? Eu disse para ela que não ficaria bem. O que os vizinhos iriam pensar?

- Ora, que bobagem! Você é tão velho que… quero dizer, você é um velho amigo. Ninguém jamais pensaria… além do mais, preciso dos seus conselhos.

Quando ela disse isso, tive a impressão de que estava soluçando.

Bem, você sabe que sou um cavalheiro, de modo que na hora do almoço lá estava eu naquele pequeno e aprazível apartamento. Rosie havia preparado sanduíches de queijo e presunto e fatias de torta de maçã, e a fotografia estava em cima da cômoda, exatamente como ela dissera.

Rosie me apertou a mão e não fez nenhuma menção de me beijar, o que teria me deixado aliviado se não estivesse tão preocupado com sua aparência. Ela estava positivamente transtornada. Comi metade de um sanduíche esperando que dissesse alguma coisa. Quando vi que não eslava disposta a falar, decidi perguntar-lhe diretamente o que a deixara tão aborrecida.

- Foi Kevin? – perguntei, só para confirmar.

Ela fez que sim com a cabeça e começou a chorar sem parar. Dei-lhe um tapinha na mão e perguntei-me se isso seria suficiente para consolá-la. Abracei-a com carinho, e ela finalmente disse:

- Acho que ele vai perder o emprego.

- Não diga bobagens. Por quê?

- Ele anda tão nervoso! Não só aqui em casa, mas no trabalho também, ao que parece. Há séculos que não o vejo sorrir. Não me lembro da última vez que me beijou ou me disse uma palavra gentil. Está sempre brigando com todo mundo, o tempo todo. Não quer me dizer o que há de errado e fica danado quando pergunto. Um amigo nosso, que trabalha no aeroporto com Kevin, telefonou ontem para mim. Disse que Kevin está se comportando de uma forma tão estranha no trabalho que seus superiores já começaram a notar. Tenho certeza de que se continuar assim vai ser despedido, mas que posso fazer!

Eu estava esperando alguma coisa parecida desde o nosso último encontro, e sabia que era melhor dizer a verdade… Azazel que se danasse. Pigarreei.

- Rosie… a fotografia…

- Eu sei, eu sei – disse ela, pegando a fotografia e apertando-a contra os seios. – É ela que me dá ânimo para continuar a viver. Este é o verdadeiro Kevin, e sempre o terei, sempre, independente do que acontecer. – Ela começou a soluçar.

Foi muito difícil para mim dizer o que tinha de ser dito, mas não havia outra saída.

- Você não entende, Rosie – comecei. – O problema é justamente a fotografia. Tenho certeza. Toda essa simpatia, toda essa alegria de viver, tinham de vir de algum lugar. Foram tiradas do próprio Kevin. Você não entende?

Rosie parou de chorar.

- Do que é que você está falando! Uma fotografia é apenas a impressão que a luz deixa num filme!

- Claro, claro, mas no caso desta fotografia… – Desisti. Eu conhecia as limitações de Azazel. Ele não podia ter criado a mágica da fotografia a partir do nada, mas seria difícil explicar a Rosie a lei da conservação da alegria.

- Vamos colocar a coisa deste jeito. Enquanto essa fotografia continuar aqui, Kevin continuará infeliz, nervoso e mal-humorado.

- Mas é claro que ela vai continuar aqui – disse Rosie, colocando a foto de volta no lugar. – Não entendo como você pode dizer coisas desagradáveis de um objeto tão lindo… Sabe de uma coisa? Vou fazer um café para nós.

Ela foi para a cozinha, e dei-me conta de que jamais a convenceria a desfazer-se do retrato. Fiz a única coisa que, nas circunstâncias, me restava. Afinal de contas, a fotografia tinha sido tirada por mim. Sentia-me responsável pelas suas propriedades maléficas. Peguei o porta-retratos, removi rapidamente a fotografia, rasguei-a em dois pedaços… quatro… oito… dezesseis, e guardei no bolso os pedaços de papel.

Nesse momento, o telefone tocou e Rosie entrou na sala para atender. Coloquei o porta-retratos de volta no lugar. Sentei-me e esperei.

Ouvi a voz de Rosie, radiante.

- Oh, Kevin, que maravilha! Estou tão contente! Mas por que você não me disse? Nunca mais faça isso comigo!

Aproximou-se de mim, com um sorriso de felicidade no rostinho bonito.

- Sabe o que meu marido fez? Ele estava com uma pedra no rim há quase três semanas. Consultou inclusive um médico. Estava sofrendo dores terríveis, talvez tivesse de ser operado, e não me contou nada! Disse que não queria me deixar preocupada. Que tolo! Não admira que estivesse tão nervoso e mal-humorado. Nem ocorreu a ele que procedendo assim me deixaria muito mais preocupada do que se me contasse tudo desde o início. Francamente! Os homens não têm jeito mesmo!

- Mas por que agora você está tão alegre?

- Porque ele eliminou a pedra. Isso aconteceu há alguns minutos e a primeira coisa que Kevin fez foi ligar para mim, o que foi muita gentileza da parte dele… já era tempo. Parecia tão feliz e animado! Era como se tivesse voltado a ser o velho Kevin. Era como se eu estivesse falando com o Kevin da fotografia, que… – Interrompeu o que estava dizendo e gritou: – Onde está a fotografia?

Eu estava de pé, preparando-me para ir embora. Antes de chegar à porta, disse para ela;

- Eu a rasguei. Foi por isso que ele expeliu a pedra. Caso contrário…

- Você rasgou aquele retrato? Seu…

Abri a porta e saí correndo antes que ela terminasse a frase. Não esperei o elevador, mas desci as escadas de dois em dois degraus, ouvindo ao longe o som dos seus gritos.

Quando cheguei em casa, queimei os pedaços da fotografia.

Nunca mais a vi. Pelo que me contaram, Kevin tem sido um marido exemplar e os dois são muito felizes juntos, mas a única carta que recebi de Rosie (sete páginas em letra miúda) deixou claro que ela achava que o cálculo renal era uma explicação mais do que suficiente para o mau humor de Kevin e que a sua chegada e partida em perfeito sincronismo com a fotografia não passava de simples coincidência.

Ela fazia algumas ameaças impensadas contra minha vida e, em particular, contra certas partes do meu corpo, fazendo uso de palavras e frases que eu jamais suspeitara de que fizessem parte do vocabulário dela.

E eu suponho que jamais me beijará de novo, o que me traz, por uma razão que não sei explicar bem, um certo sentimento de frustração.

Projeto Apparere (Coletânea Lendas Urbanas) Prazo: 12 de Abril


Queremos convidar você e seus amigos a participarem de nossa Coletânea Lendas Urbanas (Tema sugerido por: Rubens Teles de Faria e Vagner Luiz dos Santos Pereira).

As inscrições, que já estão abertas a algum tempo, podem ser feitas até o dia 12 de Abril. Veja mais informações abaixo!

Para esta Coletânea buscamos textos que falem de Lendas Urbanas que envolvam situações e personagens que habitam nossa imaginação e criam um mundo sobrenatural de fantasias, mistério, suspense, terror, etc.

Os textos poderão ser de qualquer gênero (Poesia, Cordel, Trova, Haikai, Conto, Crônica, Roteiro, etc.), pois o objetivo é termos uma obra “monotemática e multiestilo”.

Conheça todos os detalhes no link https://bit.ly/394ImFC

Importante lembrar que sua participação é Gratuita.

Após recebermos os Textos, faremos uma seleção/avaliação dos melhores e publicaremos um livro com eles. Essa Coletânea ficará à venda na Loja Online da PerSe, com impressão sob demanda, para quem quiser adquiri-la.

Como dissemos sua participação não terá nenhum custo!

Você encontra todos os detalhes para sua inscrição nos links abaixo:

1) Quero enviar meu texto: https://bit.ly/394ImFC​

Venha nos aterrorizar com sua Lenda Urbana. Inscreva-se já!

Forte abraço,
Equipe Apparere
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Regulamento Coletânea Lendas Urbanas

Para esta Coletânea buscamos textos de que falem de Lendas Urbanas que envolvam situações e personagens que habitam nossa imaginação e criam um mundo sobrenatural de fantasias, mistério, suspense, terror, etc.

Os textos poderão ser de qualquer gênero (Poesia, Cordel, Trova, Haikai, Conto, Crônica, Roteiro, etc.), pois o objetivo é termos uma obra “monotemática e multiestilo”.

OBJETIVO:

Estimular a produção literária brasileira, valorizar novos talentos e dar visibilidade aos Escritores, Poetas, Contistas, Cronistas e etc.

Considerando que a participação é Gratuita, objetivamos ter uma grande quantidade de inscrições de modo a podermos fazer uma seleção de obras com altíssima qualidade.

INSCRIÇÕES:

- As inscrições deverão ser feitas única e exclusivamente através do preenchimento do formulário, na página https://bit.ly/394ImFC

- Veja no Cronograma abaixo a data limite para as inscrições.

REGULAMENTO DE PARTICIPAÇÃO (QUEM E COMO PARTICIPAR):

- Poderão participar Escritores, Poetas, Contistas e Cronistas maiores de 18 anos de qualquer nacionalidade, residentes no Brasil ou no exterior com documentação brasileira, e seus trabalhos deverão ser obrigatoriamente escritos em língua portuguesa (o que não impede o uso de termos estrangeiros no texto).

- Os participantes farão seus cadastrados no formulário de inscrição.

- Autor deverá usar seu nome legítimo (verdadeiro) no cadastro, entretanto, se desejar, poderá utilizar seu nome artístico ou pseudônimo na publicação da Coletânea, para isso deverá colocá-lo junto ao texto enviado.

- Cada participante poderá inscrever uma única Obra por Coletânea, podendo participar de outras Coletâneas.

- A temática da Obras deverá estar em linha com o tema da Coletânea com o objetivo acima definido, sendo que a criatividade e imaginação do escritor darão o toque e estilo ao trabalho.

- Não há exigência de que a Obra (poesia, conto, crônica, etc.) seja inédita, podendo já ter sido publicada, exceto em outra Coletânea do Projeto Apparere.

- É de inteira responsabilidade do Autor a correção ortográfica/revisão do texto ou textos enviados para esta Coletânea, sendo este inclusive um dos critérios de seleção. Desta forma não será feita nova revisão do texto.

- As Obras (poesia, conto, crônica, etc.) deverão conter título, sendo que a não observância dessa exigência excluirá a Obra da avaliação.

- As obras inscritas serão analisadas e selecionadas mediante avaliação de profissionais nomeados pelo Projeto Apparere, cujas decisões serão soberanas e irrecorríveis.

- O envio do texto será feito única e exclusivamente através formulário na página https://bit.ly/394ImFC

- A obra deverá estar em arquivo Word(.doc ou .docx) fonte Times New Roman ou Arial, tamanho 12, com espaçamento simples e ter no máximo 5 (cinco) páginas padrão do Word (A4).

CUSTOS DE PARTICIPAÇÃO:

- A participação nesta Coletânea não ensejará em nenhum custo aos participantes, portanto será Gratuita.

- Também não há nenhuma obrigatoriedade de aquisição nem de exemplares e nem de serviços oferecidos pela Apparere e/ou pela PerSe.

DIVULGAÇÃO E LANÇAMENTO DA COLETÂNEA:

- O Lançamento da Coletânea será Online, com uma data para início das vendas dos livros.

- Antes do Lançamento será feita campanha de divulgação, contendo:

    . E-mail Marketing para a Base de clientes da Apparere e da PerSe.
    . Banners e nosso site.
    . Divulgação através de nossas Redes Sociais.
    . Assessoria de Imprensa.
    . Envio de Material de Divulgação aos Participantes para que esses divulguem em suas Redes Sociais e através de e-mail aos conhecidos.

DIREITOS AUTORAIS:

- Não haverá cessão de Direitos Autorais, ou seja, os trabalhos continuarão pertencendo a seus autores, entretanto os Escritores/Autores/Poetas autorizam a comercialização de sua obra através da Coletânea, abdicando de qualquer remuneração sobre sua obra.

- Os Escritores/Autores/Poetas participantes responderão legalmente e individualmente sobre plágio, publicação não autorizada, calúnia, difamação e não autoria, isentando a PerSe e o Projeto Apparere de qualquer responsabilidade sobre o conteúdo enviado para a Coletânea.

- É de total responsabilidade dos participantes a veracidade dos dados fornecidos à organização.

- Todos os participantes de antemão ficam cientes e dão permissão e autorização para a publicação e comercialização de sua Obra (poesia, conto, crônica, etc.), e a veiculação na mídia de seus nomes, imagens e textos, em sites, pela PerSe e pela Apparere, desde que dentro do contexto das Coletâneas do Projeto Apparere e para benefício da maior visibilidade da obra e seu alcance junto ao leitor.

SOBRE AS CARACTERÍSTICAS E AS VENDAS DOS LIVROS:

- A Coletânea será composta dos textos selecionados e de minibiografia dos participantes.

- Para a Capa da Coletânea faremos um concurso com designers que desejarem participar, e quem escolherá a capa da Coletânea serão os Autores que estiverem participando.

- Esta será impressa em Livro com as seguintes características: Brochura Formato 14x21; Miolo em Papel Polem 80g, impresso em uma cor; Capa Cartão 250g com orelhas impressa a 4 cores e laminação brilho/fosco.

- A Comercialização do livro impresso da Coletânea se dará através da Loja Online da Perse.

- Os participantes poderão adquirir os livros impressos por valor sempre inferior ao Preço de Venda da Loja Online, desde que em volume mínimo de 10 exemplares. Para isso deverá solicitar orçamento, através do e-mail do Projeto.

- Os participantes poderão adquirir os livros impressos por valor sempre inferior ao Preço de Venda da Loja Online, desde que em volume mínimo de 10 exemplares. Para isso deverá solicitar orçamento, através do e-mail do Projeto.

- Os participantes poderão adquirir os livros impressos por valor sempre inferior ao Preço de Venda da Loja Online posteriormente divulgado.

- A Comercialização da Coletânea também será feita no formato eBook (PDF e ePub) através da Loja OnLine da PerSe e também através da Plataforma de Terceiros parceiros da PerSe

- O livro impresso da Coletânea poderá ser colocado em comercialização nas Feiras e Bienais, em estande da própria PerSe, quando esta vier a participar.

- O livro terá registro no ISBN.

CRONOGRAMA GERAL DA COLETÂNEA:

- Final das inscrições: 12/04/2021

- Divulgação aos selecionados: 29/04/2021

- Data de Lançamento e Início das Vendas: 14/05/2021

Observações Gerais:

- Dúvidas relacionadas a esta Coletânea e seu regulamento poderão ser enviados para o e-mail: apparere@perse.com.br

- Todos os contatos entre o Projeto Apparere e os Participantes serão realizados através de e-mail. Portanto os participantes devem ficar atentos.

- Todas as dúvidas e casos omissos neste regulamento serão analisados por uma equipe da PerSe e do Projeto Apparere, e sua decisão será irrecorrível.

- O Projeto Apparere, reserva-se o direito de alterar qualquer item desta Coletânea, bem como interrompê-la, se necessário for, fazendo a comunicação expressa para os participantes.

- Não é permitida a participação nas Coletâneas de funcionários da PerSe e do Projeto Apparere.

- A participação nesta Coletânea implica na aceitação total e irrestrita de todos os itens deste regulamento.

- As obras não selecionadas para a Coletânea serão destruídas e apagadas das bases de dados do Projeto Apparere, para fins de segurança.

terça-feira, 23 de março de 2021

Adega de Versos 6: A. A. De Assis

 


Lima Barreto (Uma Academia de Roça)

Na botica do Segadas — Farmácia Esperança — que pompeava a sua enorme tabuleta, na principal rua de Itaçaraí, cidade do estado de..., cabeça da respectiva comarca, reuniam-se todas as tardes um grupo seleto dos habitantes do lugarejo, para discutir letras, filosofia e artes.

Era esse grupo formado das seguinte pessoas: doutor Aristogen Tebano das Verdades, promotor público; doutor Joaquim Petronilho, médico clínico na comarca; Sebastião Canindé, sacristão da matriz; e o doutor Francisco Carlos Kauffman, austríaco e alveitar de uma grande fazenda de criação nos arredores. Dele, também fazia parte o proprietário da botica — o Segadas.

O espanhol Santiago Ximénez, principal barbeiro da localidade, proprietário do Salão Verdun, aparecia, às vezes, na tertúlia; recitava um pouco de Campoamor ou citava Escrich; mas despedia-se logo, a fim de ir para o botequim do Cunha, onde podia unir o útil ao agradável, isto é, juntar o parati ou a genebra ao poeta de sua paixão — Campoamor — ou ao romancista de sua admiração — Pérez Escrich. Na botica, não havia disso e a sua literatura necessitava de um acompanhamento de beberiques.

O presidente do grupo era espontaneamente o promotor que sempre tinha versos a recitar e questões literárias a propor. A bem querida dele era indagar se mais valia a forma que o fundo ou vice-versa; inclinava-se pelo último, por isso gostava muito de Casimiro de Abreu e de Fagundes Varela.

O doutor Petronilho não tinha opinião segura sobre o caso, tanto mais que, a não ser Bilac, ele não suportava outro poeta; entretanto, vivia possuído de particular admiração por Aristogen e a sua versalhada desenxabida. Coisas...

Sebastião Canindé era, pela forma, parnasiano da gema; mas os versos que publicava no jornal da localidade eram horrivelmente errados e rimados a martelo; eram piores do que os de Aristogen. Tinha as charadas por especialidade.

O austríaco não sabia nada dessas coisas. Lera os poetas de sua pátria, alguns alemães e italianos, a Bíblia, Shakespeare e o Dom Quixote.

Não percebia nada dessa história de épocas e escolas literárias. Ia à reunião para distrair-se.

Um belo dia, Aristogen lembrou aos companheiros:

— Vamos fundar uma Academia de Letras?

Canindé indagou:

— Daqui, do município?

— Sim, respondeu Aristogen. Vamos?

O doutor Petronilho observou:

— Quantos membros?

Aristogen acudiu logo:

— Quarenta, por certo!

O doutor Kauffman refletiu:

— Oh! Eu acho muito.

Aristogen objetou:

— Muito! Não há tal! Há, além dos residentes aqui nascidos ou não no lugar, muito filho do município ilustre que anda por aí. Olhe: o doutor Penido Veiga, nosso representante na Câmara Federal, é um fino intelectual; pode, portanto, fazer parte dela. O tenente Barnabé, que aqui nasceu, acaba de fazer com brilho o curso de aviação; pode também fazer parte. O Jesuíno, filho do Inácio, ali do "armazém", vive em destaque no tribunal de contas, para onde entrou depois de um concurso brilhante: está naturalmente indicado a ser um dos membros. E, assim, muitos outros.

Com sujeitos portadores de semelhantes títulos literários, Aristogen organizou a sua academia de letras de quarenta membros, porque ela não podia ficar por baixo das outras, inclusive a brasileira, tendo menos imortais que elas.

Veio o dia da instalação solene que, em falta de local mais adequado, teve lugar na barraca de lona do circo de cavalinhos que trabalhava na cidade, por aquela ocasião.

Os acadêmicos presentes, inclusive o barbeiro Ximénez e o austríaco Kauffman, que eram do número deles, sentaram-se ao redor de uma longa mesa, que fora colocada no centro do picadeiro.

Os convidados especiais tomaram lugar nas cadeiras, arrumadas na linha da circunferência que fechava o circulo das acrobacias, peloticas e correrias de cavalos. As arquibancadas, para o povo miúdo, entrada franca.

Uma charanga, a Banda Flor das Dores de Nossa Senhora, tocava à entrada da barraca, dobrados estridentes e polcas chorosas.

Aristogen tomou a presidência, tendo ao lado direito o presidente da câmara, coronel Manuel Pafúncio; e, à esquerda, o secretário geral, o sacristão Canindé.

Depois de lido o expediente, começou a pronunciar o seu discurso em linguagem castigada, porque, se não o era no verso, na prosa ele era parnasiano e clássico.

Começou:

— Senhoras: Após longo decurso de tempo, lamentavelmente riçado por dificuldades, impedimentos, estorvos grandes, que adversaram a instituição definitiva desta Academia — é possível, afinal, realizar o ato de posse de sua diretoria, e eu procurarei salientar a determinante fundamental deste Instituto.

Logo neste período, o doutor Petronilho observou baixinho ao austríaco:

— É castiço. Fala que nem o Aluísio. Não achas?

O austríaco respondeu em voz baixa também:

— Oh! Eu não sape essas coisas.

Aristogen continuou:

— Basta que, à fé sincera, eu vo-lo afirme: há, dentre os eleitos para esta Egrégia Companhia, os que desalentaram em meio da jornada; há os que se deixaram empolgar de tanta vaidade que já se sentem sobrelevados aos que lhes foram pares na eleição; há os que do alto do seu valor, gozando a convicção própria de serem olímpicos, supremos, sorriram, num sorriso complacente de superior condescendência, aos pigmeus que lhes buscaram a honra eminente do convívio. E, pois, urgente, inadiável detergir esta Academia.

Petronilho, ainda cochichando, confidenciou aos ouvidos do alemão:

— Não te dizia? É mais que o Aluisio; é o próprio Rui.

A assistência estava embasbacada com fraseado tão bonito, que, na sua maioria, ela mal compreendia.

Chegava ao final com este período:

— Se procedermos concorde ao padrão que ora vos proponho, embora fosse ele discutido às rebatinhas, estou certo que ganharão timbre de verdade as palavras refregentes de Canindé, de Barnabé, de Kauffman e outros, quando, d'alma inspirada, anteviram no apogeu, esta Academia, qual nem eu quisera!

Não teve tempo de sentar-se o orador, porque, no exato momento em que acabava a sua oração, os cavalos do circo, livrando-se das prisões que os subjugavam, invadiram a arena em que estavam os acadêmicos, e os afugentaram a todos eles, unicamente por ação de presença.

Nunca mais a Academia de Letras de Itaçaraí se reuniu.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. 
Publicado originalmente em 1920.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 37) Espírito de porco

GODOFREDO ENCONTROU, por mero acaso, o Zé Fungador, em frente a estação da Central do Brasil. Assim que viu o amigo, correu a abraça-lo efusivamente e tratou logo de lhe passar as notícias quentes do bairro onde morava.

Godofredo:
— Zé Fungador, meu velho, quanto tempo. Que bom te ver. Você não sabe da última. Nem te conto!

Zé Fungador:
—  Conte, Godô. Começou, termina...

Godofredo:
— Você mudou lá da Vila Isabel. Ainda tem interesse em saber das baixarias?

Zé Fungador:
— Sempre, claro. Manda vê. Qualé, Godô?

Godofredo:
— A loirinha Zezé do Braço Torto, esposa do policial Malfredão Tomba na Bala, lembra dela?

Zé Fungador:
— Muito. O que ela aprontou desta vez? Largou do troglodita do marido?

Godofredo:
— Qual o quê. A gororoba agora é outra.

Zé Fungador:
— Fala de uma vez.

Godofredo:
— A Zezé do Braço Torto fez um curso rapidez de adivinhações interligadas com os espíritos, com uma velha macumbeira lá pelas bandas de Cocotá, na Ilha do Governador. Está ganhando dinheiro, cara. Agora recebe uma entidade que está deixando toda a galera em polvorosa.

Zé Fungador:
— Quando estiver com ela, transmita os meus parabéns.

Godofredo:
— Com certeza, com certeza, mano. Para você ter ideia, Zé Fungador, ela está tão centrada na coisa, que ontem, meu Deus, ontem, ela fez o sobrenatural, com a qual passou a trabalhar conhecido nos meios ‘macumbáticos’ como ‘Pai Caixão Encomendado’, um mero liquidificador falar... Acredita, meu caro, um mero liquidificador?

Zé Fungador:
— Acredito.

Godofredo:
— De verdade?

Zé Fungador:
— Piamente.

Godofredo:
— Logo depois, foi a vez de um botijão de gás.

Zé Fungador:
— Credo, Godofredo. Um botijão de gás?

Godofredo:
— Sim, Eu vi e ouvi com este par de olhos verdes que a terra haverá de comer...

Zé Fungador:
— E o que o botijão trouxe à baila?

Godofredo:
— Que ia vazar do pedaço. Reclamou do fogão. Ele disse, com todas as letras, num português meio enrolado, ‘que a manguera das quatru boquinha não dexa o buracu da sua bilha em paz!'.

Zé Fungador:
— Que coisa de maluco...

Godofredo:
— E disse mais: que vai boicotar o gás, para que não chegue nos fundilhos das panelas.

Zé Fungador:
— Interessante...

Godofredo:
— Você acha isto interessante, Zé Fungador?

Zé Fungador:
— Acho. Você não?

Godofredo:
— Bem, mano, cada um pensa de um jeito. A galera lá do pedaço me mandou um Zapp, tem uns oito minutos. Pediram para eu chegar rápido. Hoje a Zezé do Braço Torto vai fazer o aspirador de pó soltar a língua. Quero estar lá pra ver. Não quer ir comigo, Fungador?

Zé Fungador:
— Fica pra próxima. Tenho um encontro em Realengo.

Godofredo:
— Não está curioso para ver o que o aspirador de pó revelará?

Zé Fungador:
— To fora, Godofredo. Ainda bem que me mudei de lá. Eita bairro danado pra galera fazer fofoca.

Godofredo:
— Não entendi.

Zé Fungador:
— Eu ficaria preocupado com a Zezé, ou com o caboclo que ela recebe, se a engraçadinha pusesse a cama de casal do quarto dela pra abrir o bico e contar o que sabe...

Godofredo:
— Por quê? Em que se baseia a sua preocupação, nesta altura do campeonato com a droga da cama da nossa amiga e ex-vizinha sua?

Zé Fungador:
— Deixa quieto...

Godofredo:
— Desembucha, mano.

Zé Fungador:
— Esquece.

Godofredo:
— Tô ligado. Você está com medo do tal Pai Caixão Encomendado que ela recebe falar pelos cotovelos. Acertei?

 Zé Fungador:
— Pirou, cara. Eu lá tenho medo de alguma entidade?

Godofredo:
— Posso ser franco, Zé Fungador? Acho que sim. Se você for lá e a Zezé der na telha de botar o espírito das profundas pra fazer a cama de casal do quarto soltar os podres, eu acho que você estaria frito, meu amigo. Frito e, logicamente, em maus lençóis. E pior: as revelações poriam, em seus calcanhares, o Malfredão Tomba na Bala. É ou não é verdade?

Zé Fungador não chegou a ouvir estas derradeiras palavras. Saiu de fininho, literalmente à francesa. Atravessou correndo a avenida movimentada e caiu ligeiro para dentro da estação superlotada.

Fonte:
Parte integrante do livro de crônicas de Aparecido Raimundo de Souza, ‘COMÉDIAS DA VIDA NA PRIVADA’ – Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro. 2021. Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 22 de março de 2021

Carolina Ramos (Poemas Escolhidos) 9


DESTINO

Vai, Peregrino... e colhe na corola
que à beira do caminho se oferece,
o mistério da Vida, a suave esmola
do aroma que se expande e na alma cresce.
Vai Peregrino... o mundo tem surpresas!
Surpresas tantas para quem procura
Abrir a alma aos sonhos e às belezas,
de coração amante e de alma pura!
Vai, Peregrino... e o teu olhar embebe
nas lágrimas de luz que o sol derrama!
Deslumbra-te! E em teu íntimo recebe
a semente do Amor, do Amor que inflama!
Esquece a dor que mora na tua alma!
Se o mundo fere com afiado gume,
- dá-lhe em troca o desdém da tua calma!
- dá-lhe os teus versos cheios de perfume!
"Louco!"- o mundo te chama e te castiga!
E o que te dá?! - A fome e o horror da guerra!
Louco é o mundo! Que insano o mundo siga!
Dá-he o perdão e a paz que um verso encerra!

Vai em busca da tua namorada,
a vestal do infinito, a meiga Lua
mesmo após a conquista, imaculada,
que sempre foi e sempre será tua!
Vai tocar as estrelas que no espaço
trocam mensagens, meio à noite escura!
Prende o Universo inteiro em teu abraço,
com ele esbanja oceanos de ternura!
Deixa que o ouro do sonho te enriqueça;
- Velho, terás um coração menino!
Vai... que o beijo das Musas tua alma aqueça...
- Poeta, vai... e cumpre o teu Destino!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ROSA DE SANGUE

Dom sublime, a Poesia furta ao solo
as almas simples que Deus prestigia.
E transforma um pigmeu num louro Apolo,
glorificado à luz que não pedia!

Poesia é mãe que o filho abraça e ao colo
recolhe a dor que o peito lhe crucia.
Terno traço de união de polo a polo,
é sol na treva... é luar, em pleno dia!

Poesia é amar a própria angústia! E erguer
a taça da amargura e, sem morrer,
sorve-la, gota a gota, em noite incalma!

É estigma? É carisma? Glória ou cruz?
Poesia é estranha rosa, que seduz:
- Rosa de Sangue... com perfume de Alma!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NAUFRÁGIO

Neste oceano da vida, tumultuoso,
lancei, cheio de sonhos, um barquinho.
E ele flutuou e deslizou airoso,
vencendo os empecilhos do caminho!

Nos momentos difíceis, sem repouso,
depressa ia ampara-lo o meu carinho
e ansiosa eu via, com secreto gozo,
meus sonhos desafiando o torvelinho!

E chegaste! E de pedra era tua alma!
De papel, o barquinho... e tenso e mudo?
ficaste, quando o mar perdeu a calma!

Contra o recife, o barco soçobrou!
E os sonhos, sem guarida, ao fim de tudo,
um a um, impiedoso, o mar levou!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ADVERTÊNCIA...
Aliança trincada...

Entre dois corações que, um dia, a vida
uniu e a Lei de Deus abençoou,
numa aliança eterna, irrefletida,
mágoa e desilusão é o que restou!

Junto à primeira lágrima sentida,
muito cedo, a ilusão se dissipou,
a lamentar a dor de ser colhida,
qual flor de sombra, à luz do sol, murchou!

Descrevo o nosso amor E que amargura
relembra-lo na mágoa de um momento!
Se acaso uma esperança ainda perdura,

salvemo-la da insídia e dos espinhos,
ou ficarão dois seres, num tormento,
unidos por dever... porém sozinhos!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.
Livro enviado pela poetisa.

domingo, 21 de março de 2021

Arquivo Spina 32: Beth Iacomini

 


Laurindo Rabelo (Poemas Escolhidos) IV

A MINHA VIDA

I

Este mundo é-me um deserto
Por onde um vulcão passou,
E gravada a minha história
Em traços negros deixou.

São-lhes tetos bronzeados
Escuros, medonhos céus,
Onde bramam tempestades
Em contínuos escarcéus.

Só, por ele vai minh’alma,
Nos destroços tropeçando,
Com passo tardio e incerto
Tristemente caminhando.

Marcha... marcha... enfim, cansada
De tão longo caminhar,
Nalguma pedra que encontra
Descansa, e põe-se a chorar.

Olha o céu... nem uma estrela!
Olha a terra... é negro chão!
Clama em brados por socorro,
Só responde o furacão!

Nos olhos seca-lhe o pranto...
Continua a caminhar,
E noutra pedra distante
Descansa, e põe-se a chorar.

II

É triste o seu fadário: mas ao menos
Oh! bálsamo do céu, piedosas lágrimas!
Da infeliz peregrina a dor pungente
Um pouco mitigais.
E só me alento

Quando posso chorar: são meus prazeres
Um banquete de lágrimas! Mil vezes
Alegre ter-me-ão visto entre os alegres,
Conversando, soltar ditos chistosos
A rir e fazer rir. Um drama a vida
Não é? Porque julgar-se do semblante,

Do semblante, essa máscara de carne
Que o homem recebeu para entrar no mundo,
O que por dentro vai? É quase sempre,
Se há estio no rosto, inverno n’alma.
Confesso-me ante vós; ouvi, contentes!
O meu riso é fingido; sim, mil vezes

Com ele afogo os ecos de um gemido
Qu’imprevisto me chega à flor dos lábios;
Mil vezes sobre as cordas afinadas
Que tanjo, o canto meu acompanhando,
Cai pranto. Oh! praza ao céu qu’inda o não vísseis!

Eu me finjo ante vós, que o fingimento
É no lar do prazer prudência ao triste.
Louco fora por certo o que cantasse
D’exéquias hino em bodas: ou de noiva,
Qu’em transportes de amor o esposo abraça,
Crepe de viuvez lançasse ao tálamo.

Eu me finjo ante vós porque venero
O sublime das lágrimas; conheço-as;
São modestas Vestais, vivem no ermo,
Aborrecem festins; olhos que o fogo
Do banquete acendeu-lhes são odiosos:
Descidas lá do céu, Virgens do Empírio,
Têm vestes de cristal, temem manchá-las.

Bem fechadas nos claustros de meus olhos,
Dentro em meu coração hei de escondê-las,
Guardá-las bem de vós, contentes, hei-de,
Porque a dor me não traia neste empenho,
Zelosa e vigilante sentinela,
Em meus lábios trazer constante um riso.

III

Hei de fingir-me ante vós,
Porque sei que o desgraçado,
Se a desgraça não oculta,
É de todos desprezado:

Que o feliz, que goza os frutos
Dos pomares da ventura,
Não conhece o gosto acerbo
Da peçonha da amargura;

Que aos tristes consoladoras,
Palavras nos lábios seus,
São as palavras de Cristo
Na boca dos Fariseus.

IV

Nestes versos vos dou minha vida:
Minha vida, mortais, é assim:
Ante os homens um riso mentido,
Longe deles um pranto sem fim.

É veneno de arábico aroma,
Entre fumo sutil disfarçado;
É cadáver de carnes despido,
Com vestidos de gala trajado.

É sepulcro, onde, o escárnio da morte,
Mausoléu majestoso se arvora;
Morte, trevas e terra por dentro:
Vida, luzes e pompa por fora.

Nestes versos vos dou minha vida,
Minha vida, mortais, é assim:
Ante os homens um riso mentido,
Longe deles um pranto sem fim.

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas.

Lygia Fagundes Telles (A testemunha)


Ele tinha o olhar fixo no anúncio luminoso, suspenso no fundo negro de um céu sem estrelas. Já fazia uma hora que linha o olhar fixo no anúncio onde um cisne branco aparecia fosforescente em primeiro plano no espaço tumultuado de nuvens. Logo em seguida, com ondulações de pétalas mansas, abria-se em torno do cisne um pequeno lago que chegava até quase a meia lua branca da qual saía o letreiro. Cortado pelo perfil de um edifício. Só as cinco primeiras letras do anúncio eram visíveis, as outras desapareciam detrás do cimento armado.

— Belon — disse ele antes que as letras se apagassem Voltou-se devagar para o recém-chegado. — Belon, Belon...

O que será que vem depois desse Belon? Vai, Rold, me ajude.

— Belonave — disse o outro voltando-se para o luminoso. Encarou o amigo. E inclinou-se para o banco de pedra — Mas este banco está molhado, você vai pegar um resfriado pelo traseiro. Que ideia. Miguel, por que um encontro aqui? Este parque deve ser bom no verão.

— Não é Belonave, é outra coisa, Belon...

— Belominal. Contra dores, enxaquecas. Você está aqui há muito tempo?

Detesto umidade, as juntas começam a endurecer. Que noite!

— Não vou saber nunca Pode ser o nome de um colchão de molas. Ou de uma geladeira. Ou de um uísque, tanta coisa já passou pela minha cabeça. Assim como um sino, hem, Rolf? Belon, Belon...

Rolf tirou a folha seca que se colara ao sobretudo do amigo.

— Se formos nesta direção, no fim da alameda a gente pode saber.

— Não é preciso, Rolf. Você sabe.

Rolf tomou o amigo pelo braço. Estava bem-humorado.

— O que é que eu sei?

Mancando um pouco, Miguel deixou-se conduzir. Ainda olhou o cisne lá no alto do seu lago fosforescente.

— Você sabe.

— Mas sei o que, meu Deus!

— O que aconteceu ontem à noite. Você sabe. Devo ter tido um acesso.
Então, não vai me dizer?

Rolf levantou a gola do casaco. Esfregou as mãos com energia — Umidade desgraçada. A gente podia ir comer um peixe com um bom vinho tinto, besteira isso de vinho branco com peixe. Quero um tinto ligeiramente aquecido, uau!

— Não vai me dizer, Rolf?

— Dizer o quê rapaz?

— O que aconteceu ontem.

— Ora, o que aconteceu! Mas então você não sabe?

— Não, não sei. Não me lembro de nada, nada.

— Mas como não se lembra?

— Não me lembro, simplesmente não lembro — repetiu Miguel torcendo as mãos muito brancas. Fechou-as contra o peito.

— Sei que você foi me visitar, isso eu sei. Mas depois não me lembro de mais nada, minha memória breca de repente justo nesse pedaço, fica tudo escuro. Como aquele luminoso, olha lá, agora apagou completamente... Sei que aconteceu alguma coisa mas não lembro, não lembro. Você vai me dizer, não vai, Rolf? Responde, não vai me dizer? Hem?!

Rolf desviou o olhar da cara lívida, em suspenso na sua frente. Um vinco profundo formou-se entre suas sobrancelhas. Ainda assim, conseguiu sorrir. Segurou com firmeza o amigo pelo braço, obrigando-o a andar.

— Mas não aconteceu nada de especial, rapaz.. Não tenho o que contar.

— Não? Não tive um acesso, não fiz coisas?... Não banquei o...

— Não. Lógico que não. Se quiser mesmo saber, presta atenção, cheguei em sua casa por volta das nove. Comentei a beleza da noite, tanta estrela... Você me pareceu enfarruscado, se queixou de dor de cabeça, lembra?

— Disso eu me lembro. E daí?

— Daí você foi buscar uma aspirina, parece que a dor passou de repente. Então veio a hora da animação, você ficou todo excitado com o livro de um húngaro que estava lendo, não sei que livro é esse nem vem ao caso, o fato é que você desatou a falar. Falou, falou...

— Falei o quê?

— Falou sobre tudo. Sobre esse tal livro, sobre outros livros. Enveredou pela política, fez uma análise fulgurante da situação do país...

— Fulgurante?

— Fulgurante. Comentou depois sobre uma fita de ficção científica, falou sobre a morte de Otávio. Milhares de coisas.

— E então...

— Então, acabou. Fiquei cheio, me deu vontade de tomar um café e fui
até a cozinha, lembra?

— Não, desse pedaço não lembro mais. Vejo você chegando e dizendo uma coisa qualquer ligada à garrafa térmica, que o café se degradava na garrafa, não sei se usou essa palavras, degradar. Mas foi a palavra que me veio agora. E eu me queixando de uma dor bem aqui...

— Na nuca.

— Isso, na nuca — confirmou Miguel, apressando o passo para ficar ao lado do outro que tinha pernas compridas, andava mais rápido.

Afastou com um gesto exasperado o ramo de salgueiro que pendia no meio da alameda.

— O resto esqueci, não sei de mais nada. Não sei.

— Pois quando voltei com o café você se queixou dessa dor, se estendeu no sofá e ficou dormindo feito uma criancinha. Fechei a luz e saí. Acabou.

— Por favor, Rolf, não fique com pena de mim que é pior ainda, pode dizer!

— Mas dizer o quê, se não aconteceu mais nada. Quer que eu invente, é isso? Posso inventar, se quiser.

Seguiram andando. Rolf alguns passos adiante de Miguel que mancava um pouco.

— Sei que tinha uma pessoa por perto e essa pessoa só pode ser você — disse Miguel num tom indiferente. Baixou a aba do chapéu de feltro. Levantou a gola do sobretudo e enfiou as mãos nos bolsos. — Você sabe o que eu fiz. Mas não vai me dizer nunca.

Rolf chutou com irritação um pedregulho e abriu os braços. Cerrou os maxilares quando levantou a face para o céu e de repente pareceu se distrair com algumas estrelas que vislumbrou num rombo da nuvem.

— Milagre! Elas conseguiram mas não vai durar, olha aquela nuvem preta que já vem correndo e cobrindo tudo. Só vai chover mesmo lá pela madrugada, gosto de dormir ouvindo a chuva.

Miguel olhava em frente. O outro teve que se inclinar para ouvir o que ele dizia agora: — Hoje cedo encontrei o relógio despedaçado, aquele relógio em forma de oito. Completamente despedaçado. E um rasgão no lençol. O relógio e o lençol.

— O lençol?

— Também não encontrei mais o Rex. A tigela de água virada, a porta da cozinha aberta... Eu tinha paixão por aquele cachorro. Sai procurando, perguntei na vizinhança, andei dando voltas pelo quarteirão. Nada. Você sabe, mas não vai me dizer. Estou vendo nos seus olhos a minha loucura, mas você não vai me dizer nada.

Caminharam algum tempo em silêncio. Pararam diante do lago de água verde-negra, aninhado entre as árvores. Os ramos mais longos do salgueiro chegavam a tocar na superfície estagnada, com coágulos finos como lâminas de vidro fosco. Rolf acendeu um cigarro, fez um comentário sobre a água que devia estar podre e tomou o amigo pelo braço. Sacudiu-o afetuosamente. Riu.

— Com esses elementos você pode reconstituir tudo, não pode? O relógio, o lençol. O cachorro. Você gostava de livro policial, não gostava? Então é simples, estou preocupado é com o cachorro.

— Não brinca, Rolf. É sério. Eu preciso saber.

— Mas não estou brincando — disse e empurrou enérgico o amigo para a frente. — Vamos, rapaz, tudo bobagem, chega de se atormentar. Não pensa mais nisso, não aconteceu nada. Acho que você está precisando é de mulher, essa nossa vida, uma solidão miserável. Se tivesse por aí umas simpáticas, hum? Por onde andam nesta cidade as simpáticas, antigamente tinha tanta gueixa, vem me esquentar, vem me agradar! Elas vinham. Agora só encontro umas meninas chatas, tudo intelectual. Mania de feminismo, competição. Andei aí com uma nortista que me deixou tonto, falava feito uma patativa. Era socióloga, já pensou?

Um jovem de tênis e abrigo de inverno passou correndo e bufando entre os dois homens, que se afastaram para lhe dar passagem. Quando o jovem desapareceu na curva da alameda. Miguel Voltou-se para o amigo.

— Curioso isso. Como você sabe o que aconteceu, sempre que olho para você vejo que aconteceu alguma coisa.

— Ah, mas minha cara é muito expressiva! Miguel começou a torcer as mãos feito trapos. A silhueta atarracada, parecia maior devido ao sobretudo que vinha de um tempo em que era mais gordo. Levantou a face de um branco úmido.

— Por favor, Rolf, por favor! Preciso saber até que ponto eu cheguei, preciso.

— Mas o que você quer que eu faça? Só se eu tive o acesso junto, nós dois completamente loucos, quebrando coisas, espancando o cachorro. E agora esqueci tudo, os dois sem memória, esses ataques podem dar de parceria. Ou não, sei lá.

Miguel enfiou as mãos nos bolsos e prosseguiu no seu andar meio incerto. Sorriu para o amigo.

— Nós dois juntos. Rolf? Um acesso na mesma hora? Sacudiu-se de repente num riso reprimido. Enterrou o chapéu de feltro até as orelhas e acendeu o cigarro, divertia-o a ideia do acesso em conjunto, "Nós dois. Rolf? Ao mesmo tempo?" Rolf estava sério, andando no seu passo largo, cadenciado. Olhava o chão.

— Vamos sair deste parque. Sugiro comer alguma coisa.

— Isso mesmo. Rolf, também estou com fome. Peixe com vinho tinto meio aquecido, acho genial. Conheci outro dia um restaurante fabuloso, é meio longe mas vale a pena. Vinho tinto italiano, o vinho eu ofereço.

— Machucou o pé, Miguel?

— Por quê?

— Você está mancando.

— Estou? — Ele se surpreendeu. Olhou espantado para os próprios pés.

— Sabe que não sinto nada. Você disse que estou mancando?

— Um pouco.

— Não sinto nada.

Rolf tirou o lenço do bolso da japona e limpou o nariz. Olhou para o lenço enquanto o dobrava. Olhou para o amigo.

— Esse restaurante. É muito longe? Já está meio tarde, será que ainda
servem a gente?

— Claro que servem, fica aberto até de madrugada. É a dona mesmo quem cozinha, uma espanhola chamada Esmeralda. Não sei o nome da rua mas sei onde fica, já fui lá um monte de vezes.

Rolf atirou a ponta do cigarro no canteiro. A fisionomia se desanuviou. Apertou os olhos de novo zombeteiros.

— Tive uma namorada chamada Esmeralda. Você não conheceu a Esmeralda?

— Não. Essa não.

— Ela era engraçada, só pensava em casar, acordava com esse pensamento, dormia com esse pensamento, casar. Então eu avisei, só me caso quando chegar aos quarenta, faltam dois anos. Nessa noite fizemos um amor tão perfeito, dormimos contentes. Me acordou de madrugada, descobriu não sei como minha cédula de identidade e montou em mim, seu mentiroso, você tem 45 anos, vamos casar Imediatamente!

— Imediatamente, Rolf?

Miguel tomara a dianteira, o passo curto, o cigarro apagado no canto da boca. Quando saíram da avenida e entraram numa rua mais tranquila, esperou pelo amigo até se emparelhar com ele. Sacudiu na mão uma caixa de fósforos.

— A marca que meu pai usava tinha um olho dentro de um triângulo, eu ficava fascinado quando ele guardava o olho suplementar dentro do bolso. Será que ainda existe essa marca?

Rolf mordiscou o lábio superior até prender nos dentes um fio do bigode. Contornou com o braço o ombro do amigo.

— Presta atenção, Miguel, o que passou, passou. Não se preocupe mais, somos todos normalmente loucos. Fingimos até uma loucura maior mas não tem importância, faz parte do sistema, é preciso. De vez em quando, dá aquela piorada e piora mesmo, que diabo. E daí? O tal cotidiano acaba prevalecendo sobre todas as coisas que nem na Bíblia. Isso de dizer que só um fio de cabelo nos separa da loucura total é tolice.

— Claro. Rolf, claro. Você tem razão.

Com as pontas dos dedos, Rolf começou a consertar o bigode. Tirou de Miguel a caixa de fósforos que ele ainda sacudia.

— Você está com 51 anos.

— Cinquenta e dois.

— Certo. Eu tenho três mais que você. E sua família, rapaz? Continua por aqui?

— Não, mudou-se para Casa Branca. Por quê?

— Lembrei agora da sua mãe. Ela fazia uns pastéis deliciosos.

— Fazia melhor o amor.

Rolf desviou do amigo o olhar oblíquo.

— Ai! meu Hamlet, que cansaço. E esse seu restaurante que não chega
nunca. Hoje você está muito chato, cansei.

— Acho que é fome, Rolf, perdão, perdão! — E Miguel tomou o amigo pelo braço, ficou de repente descontraído, alegre. — Faz tempo que não como direito, deve ser isso. Mas juro que depois ainda vou cantar para você um tango inteirinho, Cuesta Abajo, tenho uma voz linda, com vinho então fica um esplendor.

— Nem diga.

Enveredaram por uma rua escura, quase deserta. No fim da rua, a ponte, um curvo traço de união entre as margens do rio. A névoa subia mais densa na altura da água. Rolf parou de assobiar — Ainda está longe?

— O quê?

— O restaurante, rapaz.

— Ah, fica logo depois da ponte — disse Miguel. E inclinou-se para amarrar o cordão do sapato. — Conheço tanto esse rio, eu morava aqui por perto quando criança. Todo sábado vinha nadar com a molecada. A água era suja mas imagine se me importava. Também remava, sempre tive mania de esportes. Não cresci muito mas olha só a largura do meu ombro.

— Eu sei, já vi.

Um cachorro perdido passou a uma certa distância. Estava enlameado e tinha uma pequena corda dependurada no pescoço. Miguel ficou olhando o cachorro.

— Podia ser o Rex — disse, e voltou-se para o amigo. Animou-se.

— Cheguei a ser campeão de bola ao cesto.

— Acho que foi por isso que você ficou desse jeito, vida muito saudável
não dá certo. Sempre tive horror de clubes, uma chateação.

Miguel aproximou-se e puxou o outro pela manga. Riu.

— Um bicho-de-concha. Você devia ter aprendido ao menos a nadar.

— Namorei uma nadadora. Cheirava a cloro, por mais que se lavasse, tinha sempre um pouco daquele cheiro, principalmente no cabelo. É curioso, não me lembro da sua cara, só do cheiro.

Tinham atingido a ponte. Miguel parou. Olhou em redor.

— A gente se esquece de certas coisas e de outras... Ainda tem um cigarro?

Rolf tirou do maço o último cigarro, que veio amassado.

— Fuma este.

— E você?

— Agora não quero.

Miguel abrigou na gruta da mão a chama do fósforo. A face avermelhou, esbraseada.

— Mas veja. Rolf, esqueci por completo o que aconteceu ontem e isso não teria a menor importância se não fosse você. Você e esta ponte. A única ponte que me liga a véspera — disse e abaixou-se como se fosse amarrar o sapato.

Rolf abotoou a japona. Prosseguiu de mãos nos bolsos, um pouco encolhido. Miguel então veio por detrás e ainda agachado, agarrou o outro pelas pernas, ergueu-o rapidamente por cima do parapeito de ferro e atirou-o no rio. As águas se abriram e se fecharam sobre o grito afogado, se engasgando.

Debruçado no gradil, Miguel ficou olhando o rio. Vislumbrou seu chapéu que tinha caído e agora flutuava meio de banda na água agitada. Flutuou um instante com movimentos de um pequeno barco negro. Desapareceu, Um resto de espuma foi se diluindo na superfície acalmada.

Miguel apanhou no chão o cigarro ainda aceso e soprou, avivando a brasa. Amarfanhou devagar o maço vazio. Durante algum tempo ficou fumando e contemplando a água. Fez do maço uma bola e atirou-a longe. Não se voltou quando ouviu passos atrás de si. Sentiu a mão tocar-lhe o ombro.

— É proibido atirar coisas no rio.

Ele mostrou para o policial a cara pasmada.

— Mas era um maço de cigarro, um maço vazio.

— Eu sei, mas não pode. É a lei.

Miguel sorriu, concordando.

— O senhor tem razão — disse e levantou a mão para a aba do chapéu.

Interrompeu o gesto.

— Toda razão. Não vou repetir isso, prometo.

Mancando um pouco, atravessou a ponte e sumiu no nevoeiro.

Fonte:
Lygia Fagundes Telles. A estrutura da bolha de sabão.