segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

O Conto

Fonte: Pinterest

A origem
 
O conto é a forma narrativa, em prosa, de menor extensão (no sentido estrito de tamanho), ainda que contenha os mesmos componentes do romance. Entre suas principais características, estão a concisão, a precisão, a densidade, a unidade de efeito ou impressão total – da qual falava Poe (1809-1849) e Tchekov (1860-1904): o conto precisa causar um efeito singular no leitor; muita excitação e emotividade. Podemos imaginar – precariamente, diga-se – várias fases do conto. Tais fases nada têm a ver com aquelas estudadas por Vladimir Propp no livro A morfologia do conto maravilhoso, no qual, para descrever o conto, Propp o desmonta e o classifica em unidades estruturais – constantes, variantes, sistemas, fontes, funções, assuntos etc. Além disso, ele fala de uma primeira fase (religiosa) e uma segunda fase (da história do conto). Aqui, quando falamos em fases, temos a intenção de apenas darmos um passeio pela linha evolutiva do gênero.

Logicamente a primeira fase é a oral, a qual não é possível precisar o seu início: o conto se origina num tempo em que nem sequer existia a escrita; as histórias eram narradas oralmente ao redor das fogueiras das habitações dos povos primitivos – geralmente à noite. Por isso o suspense, o fantástico, que o caracterizou originalmente.

A primeira fase escrita é provavelmente aquela em que os egípcios registraram O livro do mágico (cerca de 4000 a.C.). Daí vamos passando pela Bíblia – veja-se como a história de Caim e Abel (2000 a.C.) tem a precisa estrutura de um conto. O velho e novo testamento trazem muitas outras histórias com a estrutura do conto, como os episódios de José e seus irmãos, de Sansão, de Ruth, de Suzana, de Judith, Salomé; as parábolas: o bom samaritano, o filho pródigo, a figueira estéril, a do semeador, entre outras.

No século VI a.C. temos a Ilíada e a Odisseia, de Homero e na literatura Hindu há o Pantchatantra (século II a.C?). De um modo geral, Luciano de Samosata (125-192), é considerado o primeiro grande nome da história do conto. Ele escreveu O cínico, O asno etc. Da mesmo época é Lucio Apuleyo (125-180), que escreveu O asno de ouro. Outro nome importante é o de Caio Petrônio (século I), autor de Satiricon, livro que continua sendo reeditado até hoje. As mil e uma noites aparecem na Pérsia no século X da era cristã.

A segunda fase escrita começa por volta do século XIV, quando registram-se as primeiras preocupações estéticas. Giovanni Boccaccio (1313-1375) aparece com seu Decameron, que se tornou um clássico e lançou as bases do conto tal como o conhecemos hoje, além de ter influenciado gente como Shakespeare, Molière, Hans Sachs, Lope de Vega, Chaucer, Perrault, La Fontaine, entre outros. Miguel de Cervantes (1547-1616) escreve as Novelas exemplares. Francisco Gómez de Quevedo y Villegas (1580-1645) traz "Os sonhos", satirizando a sociedade da época. Os Contos de Canterbury, de Geoffrey Chaucer (1340?-1400) são publicados por volta de 1700. Charles Perrault (1628-1703) publica O barba azul, O gato de botas, Cinderela, O soldadinho de chumbo etc. Jean de La Fontaine (1621-1695) é o contador de fábulas por excelência: A cigarra e a formiga, A tartaruga e a lebre, A raposa e as uvas etc.

No século XVIII o mestre foi Voltaire (1694-1778). Ele escreveu obras importantes como Zadig e Cândido.

Chegando ao século XIX o conto “decola” através da imprensa escrita, toma força e se moderniza. Washington Irving (1783-1859) é o primeiro contista norte-americano de importância. Os irmãos Grimm (Jacob, 1785-1863 e Wilhelm, 1786-1859) publicam Branca de Neve, Rapunzel, O Gato de Botas, A Bela Adormecida, O Pequeno Polegar, Chapeuzinho Vermelho etc. Os Grimm recontam contos que já haviam sido contados por Perrault, por exemplo. Eles foram tão importantes para o gênero que André Jolles diz que “o conto só adotou verdadeiramente o sentido de forma literária determinada, no momento em que os irmãos Grimm deram a uma coletânea de narrativas o título de Contos para crianças e famílias”, (“O conto” in Formas simples).

O século XIX foi pródigo em mestres: Nathaniel Hawthorne (1804-1864), Poe, Maupassant (1850-1893), Flaubert (1821-1880), Tchecov, Machado de Assis (1839-1908), Conan Doyle (1859-1930), Balzac, Stendhal, Eça de Queirós, Aluízio Azevedo. Não podemos esquecer de nomes como: Hoffman (um dos pais do conto fantástico, que viria influenciar Poe, Machado de Assis, Álvaro de Azevedo e outros), Sade, Adalbert von Chamisso, Nerval, Gogol, Dickens, Turguenev, Stevenson, Kipling, entre outros e outros e outros.

Preconceitos

Mesmo com tanta história para contar, o conto continua sendo alvo de preconceitos, chegando ao ponto de algumas editoras terem como política não publicar o gênero. É uma questão de mercado? O conto não vende? E, se não vende, quais os motivos? Sua excessiva banalização através de revistas e jornais? Ou a falsa ideia de que seria uma literatura fácil, secundária, menor?

Veja o que pensa Mempo Giardinelli: “Sustento sempre que o conto é o gênero literário mais moderno e que maior vitalidade possui, pela simples razão que as pessoas jamais deixarão de contar o que se passa, nem de interessar-se pelo que lhes contam bem contado". “Comecei escrevendo contos, mas me vi forçado a mudar de rumo por pedidos de editores que queriam romances. Mas, cada vez que me vejo livre dessas pressões editoriais, volto ao conto... porque, em literatura, o que me deixa realmente satisfeito é escrever um conto” (René Avilés Fabila em Assim se escreve um conto).

Maupassant dizia que escrever contos era mais difícil do que escrever romances. Ele escreveu cerca de 300 contos e, segundo se diz, ficou rico com eles. Machado de Assis também não achava fácil escrever contos: “É gênero difícil, a despeito de sua aparente facilidade”, (citado por Nádia Battella Gotlib em Teoria do Conto). Faulkner (1897-1962) pensava da mesma maneira: “...quando seriamente explorada, a história curta é a mais difícil e a mais disciplinada forma de escrever prosa... Num romance, pode o escritor ser mais descuidado e deixar escórias e superfluidades, que seriam descartáveis. Mas num conto... quase todas as palavras devem estar em seus lugares exatos”, (citado por R. Magalhães Júnior em A arte do conto).

Numa entrevista ao jornal Folha de S. Paulo (de 4 de fevereiro de 1996, página 5-11), Moacyr Scliar (1937), mais conhecido como romancista do que como contista, revela sua preferência pelo conto: “Eu valorizo mais o conto como forma literária. Em termos de criação, o conto exige muito mais do que o romance... Eu me lembro de vários romances em que pulei pedaços, trechos muito chatos. Já o conto não tem meio termo, ou é bom ou é ruim. É um desafio fantástico. As limitações do conto estão associadas ao fato de ser um gênero curto, que as pessoas ligam a uma idéia de facilidade; é por isso que todo escritor começa contista”.

“Penso que, não por casualidade, a nossa época (anos 80) é a época do conto, do romance breve”, diz Italo Calvino (1923-1985) em Por que ler os clássicos. Num artigo sobre Borges (1899-1986), Calvino disse que lendo Borges veio-lhe muitas vezes a tentação de formular uma poética do escrever breve, louvando suas vantagens em relação ao escrever longo. “A última grande invenção de um gênero literário a que assistimos foi levada a efeito por um mestre da escrita breve, Jorge Luis Borges, que se inventou a si mesmo como narrador, um ovo de Colombo que lhe permitiu superar o bloqueio que lhe impedia, por volta dos 40 anos, passar da prosa ensaística à prosa narrativa.” (Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio).

“No decurso de uma vida devotada principalmente aos livros, tenho lido poucos romances e, na maioria dos casos, apenas o senso do dever me deu forças para abrir caminho até a última página. Ao mesmo tempo, sempre fui um leitor e releitor de contos... A impressão de que grandes romances como Dom Quixote e Huckleberry Finn são virtualmente amorfos, serviu para reforçar meu gosto pela forma do conto, cujos elementos indispensáveis são economia e um começo, meio e fim claramente determinados. Como escritor, todavia, pensei durante anos que o conto estava acima de meus poderes e foi só depois de uma longa e indireta série de tímidas experiências narrativas que tomei assento para escrever estórias propriamente ditas.” (Jorge Luis Borges, Elogio da sombra/Perfis - Um ensaio autobiográfico).

Espaço/Tempo

Está evidente a identificação do conto com a falta de tempo dos habitantes dos grandes centros urbanos, com a industrialização. Afinal, foi graças à imprensa escrita, que o gênero se popularizou no Brasil, no século XIX: os grandes jornais sempre davam espaço ao conto. Antônio Hohlfeldt em Conto brasileiro contemporâneo, diz que “pode-se verificar que, na evolução do conto, há uma relação entre a revolução tecnológica e a técnica do conto”.

Na introdução de Maravilhas do conto universal, Edgard Cavalheiro diz: “A autonomia do conto, seu êxito social, o experimentalismo exercido sobre ele, deram ao gênero grande realce na literatura, destaque esse favorecido pela facilidade de circulação em diferentes órgãos da imprensa periódica. Creio que o sucesso do conto nos últimos tempos (anos 60 e 70) deve ser atribuído, em parte, à expansão da imprensa”.

Além de criar o mercado de consumo e a necessidade de alfabetização em massa, a industrialização também criou a necessidade de informações sintéticas. No século passado essas informações vinham do jornalismo e do livro; neste século vêm do cinema, rádio e televisão. Assim, no seu início, o conto pegou uma carona na imprensa escrita; agora não tem mais esse espaço. Será que o conto se adaptará às novas tecnologias? TV, Internet etc?

De qualquer forma, no Brasil, o conto surgiu mesmo foi através da imprensa em meados do século XIX. Por isso, naquela época, quase todos os contistas eram jornalistas. E não foi só no Brasil que isso ocorreu.

Essa tecnologia é, também, em parte, culpada pelo preconceito em relação ao gênero. “A linha normativa gera uma série de manuais que prescrevem como escrever contos. E a revista popular propícia uma comercialização gradativa do gênero. Tais fatos são tidos como responsáveis pela degradação técnica e pela formação de estereótipos de contos que, na era industrializada do capitalismo americano, passa a ser arte padronizada, impessoal, uniformizada, de produção veloz e barata. Tais preocupações provocam, por sua vez, um movimento de diferenciação entre o conto comercial e o conto literário. Daí talvez tenha surgido o preconceito contra o conto...” (Nádia Battella Gotlib, op. cit.).

Esse fenômeno também foi notado no Brasil no início dos anos 70. As influências exercidas pela imprensa escrita, revistas, TVs, levaram o conto a um ponto de praticamente perder sua “identidade”: sendo “quase tudo”, passou a ser quase “nada”.

Na década de 20 temos os modernistas e o conto agora é essencialmente urbano/suburbano. Eles propuseram a renovação das formas, a ruptura com a linguagem tradicional, a renovação dos meios de expressão etc. Procura-se evitar rebuscamentos na linguagem, a narrativa é mais objetiva, a frase torna-se mais curta e a comunicação mais breve.

Nesta mesma linha, Poe, que também foi o primeiro teórico do gênero, diz: “Temos necessidade de uma literatura curta, concentrada, penetrante, concisa, ao invés de extensa, verbosa, pormenorizada... É um sinal dos tempos... A indicação de uma época na qual o homem é forçado a escolher o curto, o condensado, o resumido, em lugar do volumoso”, (citado por Edgard Cavalheiro na introdução de Maravilhas do conto universal).

Tamanho é documento?

Um dos pontos em que muita gente concorda diz respeito ao tamanho do conto: não deve ser muito longo – pois transformar-se-ia numa novela; nem tão curto – porque corre-se o risco de transformá-lo em anedota. Poe falava de tamanho em termos de tempo de leitura. Para ele o conto ideal ocuparia o leitor entre 30 minutos e duas horas. Que se pudesse, enfim, ler de uma assentada só.

Segundo outras definições, o conto não deve ocupar mais de 7.500 palavras. Atualmente entende-se que pode variar entre um mínimo de 1.000 e um máximo de 20.000 palavras.
 
O romance Vidas secas, Graciliano Ramos (1892-1953), A festa, Ivan Ângelo e alguns romances de Bernardo Guimarães (1825-1884) e Autran Dourado, podem ser lidos como uma série de contos. Também Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, Machado de Assis, O Processo, Kafka, são constituídos por pequenos contos. São os chamados romances desmontáveis.

Assis Brasil vai mais longe ao afirmar que Grande Sertão: veredas, Guimarães Rosa (1908-1967), é um conto alongado, pois o escritor tê-lo-ia como narrativa curta. O Grande Sertão, como sabemos, tem mais de 500 páginas. Todas essas colocações demonstram como é difícil definir o conto; mesmo assim, quem o conhece, não o confunde com outro gênero.

Neste século podemos incluir entre os grandes: O. Henry, Anatole France, Virgínia Woolf, Katherine Mansfield, Kafka, James Joyce, William Faulkner, Ernest Hemingway, Máximo Gorki, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Aníbal Machado, Alcântara Machado, Guimarães Rosa, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Osman Lins, Clarice Lispector, Jorge Luís Borges, Lima Barreto.

Outros nomes importantes do conto no Brasil: Julieta Godoy Ladeira, Otto Lara Resende, Manoel Lobato, Sérgio Sant’Anna, Moreira Campos, Ricardo Ramos, Edilberto Coutinho, Breno Accioly, Murilo Rubião, Moacyr Scliar, Péricles Prade, Guido Wilmar Sassi, Samuel Rawet, Domingos Pellegrini Jr, José J. Veiga, Luiz Vilela, Nelson Rodrigues, Sergio Faraco, Victor Giudice, Lygia Fagundes Telles, entre outros. Em Portugal destaca-se, entre outros, Eça de Queirós.

Para um escritor que faz da sua escrita, arte, a trama/o enredo não têm muita importância; o que mais importa é como (forma) contar e não o que (conteúdo) contar. Borges dizia que contamos sempre a mesma fábula. Julio Cortázar (1914-1984) diz que não há temas bons nem temas ruins; há somente um tratamento bom ou ruim para determinado tema. (“Alguns aspectos do conto”, in Valise de cronópio). Claro que há que ter cuidado com o excesso de formalismos para não virar personagem daquela piada: um escritor passou a vida toda trabalhando as formas para criar um estilo perfeito para impressionar o mundo; quando conseguiu alcançá-lo, descobriu que não tinha nada para dizer com ele.

Conteúdo e forma

Forma: expressão ou linguagem; mais os elementos concretos e estruturados, como as palavras e as frases.

Conteúdo: é imaterial (fixado e carregado pela forma); são as personagens, suas ações, a história (ver Céu, inferno, Alfredo Bosi).

Há contos de Machado de Assis, de Katherine Mansfield (1888-1923), de José J. Veiga (1915), de Tchecov, de Clarice Lispector, por exemplo, que não são contáveis, não há nada acontecendo. O essencial está no ar, na atmosfera, na forma de narrar, no estilo. No livro Que é a literatura?, Jean-Paul Sartre (1905-1980) diz que “ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo. E o estilo, decerto, é o que determina o valor da prosa”.

Do que precisa o conto?
Tensão, ritmo, o imprevisto dentro dos parâmetros previstos, unidade, compactação, concisão, conflito, início meio e fim; o passado e o futuro têm significado menor. O flashback pode acontecer, mas só se absolutamente necessário, mesmo assim da forma mais curta possível.

Final enigmático

O final enigmático prevaleceu até Maupassant (fim do século XIX) e era muito importante, pois trazia o desenlace surpreendente (o fechamento com “chave de ouro”, como se dizia). Hoje em dia tem pouca importância; alguns críticos e escritores acham-no perfeitamente dispensável, sinônimo de anacronismo. Mesmo assim não há como negar que o final no conto é sempre mais carregado de tensão do que no romance ou na novela e que um bom final é fundamental no gênero. “Eu diria que o que opera no conto desde o começo é a noção de fim. Tudo chama, tudo convoca a um final” (Antonio Skármeta, Assim se escreve um conto).

Neste gênero, como afirmou Tchecov, é melhor não dizer o suficiente do que dizer demais. Para não dizer demais é melhor, então, sugerir, como se tivesse de haver um certo silêncio entremeando o texto, sustentando a intriga, mantendo a tensão. Não é o que acontece no conto

“A missa do galo”, de Machado de Assis? Especialmente nos diálogos; não exatamente pelo que estes dizem, mas pelo que deixam de dizer.

Ricardo Piglia, comentando alguns contos de Hemingway (1898-1961), diz que o mais importante nunca se conta: “O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permite ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta”, (O laboratório do escritor). Piglia diz que conta uma história como se tivesse contando outra. Como se o escritor estivesse narrando uma história visível, disfarçando, escondendo uma história secreta. “Narrar é como jogar pôquer: todo segredo consiste em fingir que se mente quando se está dizendo a verdade.” (Prisão perpétua). É como se o contista pegasse na mão do leitor é desse a entender que o levaria para um lugar, mas, no fim, leva-o para outro. Talvez por isso, D.H. Lawrence tenha dito que o leitor deve confiar no conto, não no contista. O contista é o terrorista que se finge de diplomata, como diz Alfredo Bosi sobre Machado de Assis (op. cit.).

Segundo Cristina Perí-Rossi, o escritor contemporâneo de contos não narra somente pelo prazer de encadear fatos de uma maneira mais ou menos casual, senão para revelar o que há por trás deles (citada por Mempo Giardinelli, op. cit). Desse ponto de vista a surpresa se produz quando, no fim, a história secreta vem à superfície. No conto a trama é linear, objetiva, pois o conto, ao começar, já está quase no fim e é preciso que o leitor “veja” claramente os acontecimentos. Se no romance o espaço/tempo é móvel, no conto a linearidade é a sua forma narrativa por excelência.

“A intriga completa consiste na passagem de um equilíbrio a outro. A narrativa ideal, a meu ver, começa por uma situação estável que será perturbada por alguma força, resultando num desequilíbrio. Aí entra em ação outra força, inversa, restabelecendo o equilíbrio; sendo este equilíbrio parecido com o primeiro, mas nunca idêntico.” (Gom Jabbar em Hardcore, baseado em Tzvetan Todorov).

Em outras palavras: no geral o conto “se apresenta” com uma ordem. O conflito traz uma desordem e a solução desse conflito (favorável ou não) faz retornar à ordem – agora com ganhos e perdas, portanto essa ordem difere da primeira. “O conto é um problema e uma solução”, diz Enrique Aderson Imbert.

Diálogos (discurso das personagens)

Os diálogos são de suma importância; sem eles não há discórdia, conflito, fundamentais ao gênero. A melhor forma de se informar é através dos diálogos; mesmo no conto em que o ingrediente narrativo seja importante. “A função do diálogo é expor.” (Henry James, 1843-1916). Em alguns escritores o diálogo é uma ferramenta absolutamente indispensável. Caio Porfírio Carneiro, por exemplo, chega ao ponto de escrever contos compostos apenas por diálogos, sem que, em nenhum instante, apareça um narrador. Em 172 páginas de Trapiá, um clássico da década de 60, há apenas seis páginas sem diálogos. Vejamos os tipos de diálogos:

1) – Direto: (discurso direto) as personagens conversam entre si; usam-se os travessões. Além de ser o mais conhecido é, também, predominante no conto.

2) – Indireto: (discurso indireto) quando o escritor resume a fala da personagem em forma narrativa, sem destacá-la. Vamos dizer que a personagem conta como aconteceu o diálogo, quase que reproduzindo-o. Essas duas primeiras formas podem ser observadas no conto "A Missa do Galo", Machado de Assis.

3) – Indireto livre (discurso indireto livre) é a fusão entre autor e personagem (primeira e terceira pessoa narrativa); o narrador narra, mas no meio da narrativa surgem diálogos indiretos da personagem como que complementando o que disse o narrador. Veja-se o caso de Vidas secas: em certas passagens não sabemos exatamente quem fala – é o narrador (terceira pessoa) ou a consciência de Fabiano (primeira pessoa)? Este tipo de discurso permite expor os pensamentos da personagem sem que o narrador perca seu poder de mediador.

4) – Monólogo interior (ou fluxo de consciência) é o que se passa “dentro” do mundo psíquico da personagem; “falando” consigo mesma; veja algumas passagens de Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector. O livro A canção dos loureiros (1887), de Édouard Dujardin é o precursor moderno deste tipo de discurso da personagem. O Lazarillo de Tormes, de autor desconhecido, é considerado o verdadeiro precursor deste tipo de discurso. Em Ulisses, Joyce (inspirado em Dujardin) radicalizou no monólogo interior.

Focos narrativos (ou pontos de vista adotados pelo narrador)

1) – Primeira Pessoa: Personagem principal conta sua história
Este narrador limita-se ao saber de si próprio, fala de sua própria vivência. Esta é uma narrativa típica do romance epistolar (século XVIII).

“...Isso aconteceu comigo, implantei todos os dentes da minha boca, um prodígio de engenharia odontológica. Estou cheio de dentes que não caem e nem ficam cariados, mas quando dou uma gargalhada na frente do espelho sinto saudade da minha boca antiga, agora meus lábios se abrem de um modo que eu não gosto.” (“Artes e ofícios”, Rubem Fonseca in O buraco na parede).

2) – Primeira Pessoa: Personagem secundária conta a história da personagem principal

“Evidentemente, a convivência com Holmes não era difícil. Tinha hábitos tranquilos e regulares. Era raro vê-lo em pé depois das dez horas da noite e invariavelmente já preparara seu pequeno almoço e saíra quando eu me levantava da cama.” (“Reimpressão das memórias do Dr. John H. Watson ex-oficial médico do Exército britânico”, Arthur Conan Doyle in Os melhores casos de Sherlock Holmes).

Nas histórias de Sherlock Holmes é Watson quem narra os acontecimentos. Umberto Eco também utiliza dessa artimanha em O nome da rosa.

3) – Terceira Pessoa: Escritor (analítico ou onisciente), conta a história 
O narrador tudo sabe sobre a vida das personagens, sobre seus destinos, ideias, pensamentos. Como se narrasse de dentro da cabeça delas. Narrativa típica do romance Clássico (século XIX).

“Ah, somente agora ele via, mas estava completamente atônito, e se sentiu constrangido. Viu também que isso fez com que ela sentisse pena dele, como se a ilusão tivesse sido um erro. Levou algum tempo, todavia, para sentir que não fora um erro, por mais que tivesse sido uma surpresa. Depois daquele pequeno choque, o fato de ela saber, ao contrário, e ainda que fosse estranho, começou a lhe parecer agradável. Era a única outra pessoa no mundo a saber, e ela soubera durante todos aqueles anos, enquanto, para ele, se apagara inexplicavelmente a lembrança de lhe haver transmitido o seu segredo.” (A fera na selva, Henry James).

4) – Terceira pessoa: Escritor conta a história como observador 
O narrador limita-se a descrever o que está acontecendo, “falando” do exterior, não nos colocando dentro da cabeça da personagem; assim não sabemos suas emoções, ideias, pensamentos. O narrador apenas descreve o que vê, no mais, especula. Narrativa típica do século XX, influenciada pelo cinema.

“Olhou através da janela. O vento e a paisagem. E o cata-vento, reflexos de espelho, além. Sentou-se, suspirou, deitou os olhos nos pés doridos e metidos nas botas empoeiradas da grande caminhada. O corredor abria-se lá para dentro. Via a ponta da mesa na sala de jantar. E as árvores frondosas, as mesmas, no quintal. Andou um pouco, paredes cobertas de retratos...” (“A ceia”, Caio Porfírio Carneiro in Os dedos e os dados).

Nos casos 1 e 2, o narrador funciona como personagem da história. Nos casos 3 e 4, ele se coloca fora dos acontecimentos, como observador.

Afinal, o que é o conto?

(A pergunta sem resposta ou com várias respostas)

Conto é a designação que damos à forma narrativa de menor extensão e que se diferencia do romance e da novela não só pelo seu tamanho, mas também por possuir características estruturais próprias. Ele possui os mesmos componentes do romance, mas evita análises, complicações do enredo e o tempo e o espaço são muito bem delimitados. O conto é uma narrativa linear, que não se aprofunda no estudo da psicologia das personagens nem nas motivações de suas ações. O conto é uma narrativa breve; desenrolando um só incidente predominante e um só personagem principal, contém um só assunto cujos detalhes são tão comprimidos e o conjunto do tratamento tão organizado, que produzem uma só impressão.

"Conselhos" para se escrever um bom conto

1) – Prender o interesse do leitor; evitar ser chato. Pense em Aristóteles, para quem a catarse, enquanto experiência vivida pelo espectador ou ouvinte, é condição fundamental para definir a qualidade de uma obra.

2) – Usar, se possível, frases curtas. A clareza vem do cuidado com a estruturação da frase: as intercalações excessivas prejudicam a compreensão da idéia. Pense em Barthes: “A narrativa é uma grande frase, como toda a frase constitutiva é, de certa forma, o esboço de uma pequena narrativa", (Introdução à análise da narrativa).

3) – Capítulos e parágrafos curtos, para o leitor poder respirar. Evitar muitas personagens, descrições longas, rebuscamentos, adjetivações, clichês, repetir palavras.

4) – Trama/enredo/tema ou estilo, original. Pense em Ricardo Piglia: “Pode-se programar a trama, os personagens, as situações, conhecer o desenlace e o começo, mas o tom em que se vai contar a história é obra de inspiração. Nisso consiste o talento de um narrador”, (O laboratório do escritor).

5) – Se possível usar ironia, humor, graça e ser verossímil. Ser verossímil é importante, mas não devemos confundir verossimilhança com verdade; a história não tem de ser obrigatoriamente verdadeira, mas parecer que o é. Mesmo assim sua importância é discutível. Segundo Álvaro Lins, Graciliano Ramos tem como “defeito” justamente a inverossimilhança que, de acordo com o crítico, é mais “visível” em Vidas secas e São Bernardo, dois clássicos insuspeitos. No Vidas secas esse “defeito” estaria no discurso das personagens (discurso indireto livre), pois tal recurso teria provocado um excesso de introspecção das personagens, tão rústicas e primárias (até Baleia, a cadela do romance, tem seu “monólogo interior”). No São Bernardo o “problema” estaria no fato de um homem rústico, como Paulo Honório, construir uma narrativa tão perfeita em termos literários. Conta-se que uma vez Matisse mostrou a uma senhora um quadro em que havia pintado uma mulher nua; sua visitante retrucou: “Mas uma mulher nua não é assim”. E Matisse: “Não é uma mulher, minha senhora, é uma pintura”. Será que na sua análise em busca do perfeito, Álvaro Lins (que tinha Graciliano em alta conta) não teria percebido que Paulo Honório não é um homem, mas uma pintura?

6) – Ler, de preferência os clássicos. Não se é escritor sem ser leitor. Pense em Sartre: “Mas a operação de escrever implica a de ler... e esses dois atos conexos necessitam de dois agentes distintos. É o esforço conjugado do autor com o leitor que fará surgir esse objeto concreto e imaginário que é a obra do espírito”. (op. cit.) Pense também em Faulkner: ler, ler, ler, ler, ler... Em Escritores em ação, Georges de Simenon (1903-1989) dá a “fórmula” para se escrever uma boa prosa: “Corte tudo que for literário demais; adjetivos e advérbios e todas as palavras que estão lá só para causar efeito. Escrever é cortar. Escrever não é uma profissão, mas uma vocação para a infelicidade”. Estes conselhos são tão válidos quanto inválidos: “A maioria das regras e conselhos estão errados... nenhum contista novo deve dar a menor atenção aos princípios que os outros adotam. Pois que estes, ao deitarem tais regras, querem antes de tudo proteger a si próprios. É melhor mandá-los todos para o inferno”, (R. Magalhães Júnior, citando Pizarro Drumond, op. cit.).

Fonte: pt.wikipedia.com

domingo, 29 de janeiro de 2023

Cecy Barbosa Campos (Clara Luz)


Ao olhar para ela, não se podia dizer se era feia ou bonita. Não era alta nem baixa, nem gorda nem magra. Era algo indefinível. Entretanto, examinando-a com atenção, podia-se perceber um certo charme, alguma elegância em seu porte altivo, no modo de andar.

Embaixo dos andrajos que vestia, delineava-se um corpo bem feito e no rosto, emoldurado por cabelos desgrenhados, destacavam-se belos olhos verdes.

Estava sempre suja e não poderia ser de outra forma. Todas as manhãs, bem cedinho, antes do caminhão de lixo passar, lá estava ela, examinando os pacotes que haviam sido colocados nas calçadas das casas e as grandes latas de lixo apinhadas de detritos, vidros, pedaços de plástico e objetos velhos e desprezados, que ficavam em frente aos edifícios de luxuosos apartamentos.

Não gostava de falar. Quando se tentava puxar uma conversa, recebia-se em troca um leve balançar de cabeça ou um olhar indiferente.

A minha curiosidade a respeito dela se aguçava. Não parecia uma pessoa comum. Havia um certo quê de distinção, de orgulho, no seu silêncio insistente. Notei que, vez por outra, um homem a acompanhava — quieto, sem vontade, diferente dela. Parecia totalmente entregue às vicissitudes da vida, não demonstrando a decisão da mulher que sempre o precedia.

Enterrando as mãos, corajosamente, nas imundícies dos latões, ela selecionava as variedades encontradas e dava ordens ao homem, em tom baixo, orientando-o para a precária embalagem dos produtos tirados do lixo. Eu não ouvia o que dizia, mas conseguia entender o que estava acontecendo mediante curiosa observação.

Ela nunca falava alto e, mesmo com o seu companheiro, limitava as palavras. Sua contenção não era só em relação a mim e ao homem que a seguia submisso, mas também, em relação ao mundo que a cercava e que ela parecia ignorar.

Um dia, não me contive e perguntei o seu nome. Não me respondeu. Passado algum tempo, quando o homem estava a alguma distância dela, arrisquei-me, perguntando a ele e recebi a surpreendente resposta; Clara Luz.

Como era estranho! Uma mulher vivendo naquela situação, ter aquele nome — um nome que transmitia a ideia de importância, de brilho, de sucesso. Lembrava uma estrela, sugeria uma pessoa iluminada.

Quanta esperança deve ter depositado a mãe de Clara Luz no bebê que nascia. Quanto enlevo, quanta fé no futuro, ao escolher esse nome para a filha...

Ao passar minha primeira reação de surpresa, percebi que, afinal, aquele nome não era inadequado. Não condizia com a vida que Clara Luz levava aqui na Terra, mas estava de acordo com a altivez que ela demonstrava, com sua posição de guia, com o seu desligamento do mundo.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 7


Duvidar de quem se adora
não é decerto viver,
vida assim tão desgraçada
é pior do que morrer.
= = = = = = = = =

Se eu soubesse com certeza
que tu me querias bem,
eu te faria um carinho
que nunca te fez ninguém.
= = = = = = = = =

As ondas brincam de amores,
correm à terra beijar...
Sê tu a terra, querida,
e deixa qu'eu seja o mar.
= = = = = = = = =

Lá dentro desse teu peito
eu desejava morar,
não estorvando a quem mora,
dizei-me se tem lugar.
= = = = = = = = =

Oh bela, porque me matas,
mas a vida me estás dando ?
Se tens de ser meu amor,
não andes vira-virando.
= = = = = = = = =

Eu desejava saber
qual é a tua intenção,
com que fim, com que sentido,
pediste meu coração...
= = = = = = = = =

Manjericão rajadinho,
rajadinho pelo pé,
o meu coração é teu,
0 seu não sei de quem é.
= = = = = = = = =

Você diz que me quer bem,
eu também quero a você,
onde há fogo há fumaça,
quem quer bem logo se vê.
= = = = = = = = =

Dizes que bem me queres,
que meu é teu coração;
Malmequeres que desfolho
dizem-me todos que não…
= = = = = = = = =

Você diz que me quer bem,
que me traz dentro do peito,
Isso não, não acredito,
quem quer bem tem outro jeito.
= = = = = = = = =

Estrela do céu brilhante,
raio de sol encarnado,
se tens amores com outro,
não me tragas enganado.
= = = = = = = = =

Marília, se não me amas,
não me digas a verdade,
finge amor, tem compaixão,
mente, ingrata, por piedade.
= = = = = = = = =

Se queres de mim que te ame,
como sempre já te amei,
bota fora do sentido
certa gentinha que eu sei…
= = = = = = = = =

Papagaio come milho,
periquito leva a fama...
Vai fazer teu fingimento
com aquele que te ama.
= = = = = = = = =

0 meu amor mais o teu
pesei na mesma balança,
o meu pesou direitinho,
só no teu achei mudança.
= = = = = = = = =

A pitanga é fruta doce,
mais doce é jaboticaba;
Quem toma amores contigo,
começa, mas não acaba.
= = = = = = = = =

Coração vai visitar
o mimo da formosura,
pergunta, quero saber,
se nosso amor ainda dura.
= = = = = = = = =

0 marmelo é boa fruta,
enquanto não apodrece;
Assim são amores novos
enquanto não se aborrece.
= = = = = = = = =

Fui à fonte ver Maria,
encontrei com Isabel.
Isto mesmo é qu'eu queria,
caiu-me a sopa no mel.
= = = = = = = = =

0 vento que veio hoje
levou palha e deixou trigo.
Eu quero-te perguntar
se essa carranca é comigo.
= = = = = = = = =

Menina, você que tem
que comigo se enfadou,
será porque seu escravo
a seus pés não se curvou?
= = = = = = = = =

Abram-se as portas do céu,
quero ir ver meu benzinho
qu'ele  fugiu-me dos braços,
foi-se valer dos anjinhos.
= = = = = = = = =

Não sei se vá ou se fique,
não sei se fique ou se vá,
quem ama não se decide
nem por aqui nem por lá.
= = = = = = = = =

Eu era o que te dizia,
tu eras que duvidavas,
que no fim do nosso amor
tu eras, que me deixavas.
= = = = = = = = =

Maria, não me desprezes
por eu ser pobre e não ter;
Pode o rico desprezar-te,
e o pobre te bem querer.

Fonte:
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919. 
Disponível no Portal de Domínio Público

Amadeu de Carvalho Júnior (Estudar, brincar ou comer?)


A escola Felicidade, como o próprio nome diz, era muito feliz. Os alunos amavam aquela escola, por isso a respeitavam (seu ambiente, seus professores) e se dedicavam aos estudos. Era muito bonita e cheia de flores. Tinha um jardim que era o lugar predileto dos alunos, onde eles ficavam no recreio: havia um balanço, borboletas, uma grande árvore no centro, e uma passarinha muito bonitinha chamada pelos alunos de Rosaninha, nome da professora predileta deles.

Essa escola distribuía uma cesta com comida por semana que continha: um pão com mortadela, um com presunto e mussarela, um com carne moída, um com margarina e manteiga, um com requeijão e um pão puro (sem nada, sem recheio), um pacote de salgadinho, 2 latas de refrigerante, 3 copos de suco, de sobremesa = 1 pedaço de bolo, 2 pedaços de pudim, 1 pedaço de torta, 1 pedaço de gelatina e 3 frutas. Dá para entender (também) porque os alunos gostavam tanto dessa escola.

Certo dia, uma sexta-feira, naquela escola tão calma e pacífica, houve um episódio entre os seus alunos de 4ª série...

No fim da aula da professora Iracema, bate o sinal para o recreio, ela os segura por mais um tempo e diz:

- Estudem o dia todo e todo dia! Não fiquem brincando, é perda de tempo! Aproveitem o recreio para estudar, durmam pouco, não sejam preguiçosos, comam pouco não demorem no almoço ou no jantar, estudem em vez de ficar assistindo televisão ou em vez de conversar com alguém, não visitem ninguém, nem saiam de casa, não fiquem na rua, não vão a nenhuma loja nem nada, estudem, estudem e estudem!

Os alunos vão para o recreio. Alberto, Amélia Cyz e Laura vão para o jardim e outros alunos para o pátio. Lá Alberto passa o recreio todo concentrado estudando com cadernos e lendo livros, não desgrudava seus olhos dos livros. Amélia Cyz passou o recreio inteiro brincando, ficou um tempinho brincando com Rosaninha e depois ficou correndo ou brincando no balanço, não parou, estava muito elétrica e agitada.

Alberto e Amélia Cyz até esqueceram-se de comer, na verdade, pouco ligavam para isso (comida). Já Laura tinha acabado com sua cesta na segunda-feira mesmo (comeu tudo no dia que recebeu!), na terça-feira ela pediu para Alberto a sua cesta e ele deu, ela comeu na terça-feira e na quarta-feira  na quinta-feira pegou sem pedir a maior parte da cesta da distraída Amélia Cyz, só deixou duas ou três coisinhas que ela comeu no dia seguinte, na sexta-feira, o dia atual, sem Amélia Cyz ver novamente, pois Amélia só queria saber de brincar e deixou a cesta largada.

Como Laura era muito faminta e comilona e só havia sobrado pouco na cesta de Amélia Cyz, ela comeu na hora e ainda permaneceu com fome. Foi pedir mais uma cesta parava merendeira Catarina que a repreendeu severamente:

– Laura, a cesta já tem o suficiente para uma semana. Você come demais, vai fazer mal para a sua saúde, e para você mesma, vai ficar gorda e obesa! Não vou dar mais não, é injusto com os outros, pode faltar para eles!

Laura sai tristonha e pensa: Imagine se ela soubesse que eu comi ainda da cesta dos meus colegas!

Laura volta ao jardim.

Logo depois, chegam: o professor Bernardo, de educação física, a inspetora e merendeira gordona (Neli), e a professora de Ciências, Iracema, a mais rígida e severa de todo o colégio (aquela, com que os alunos da 4ª série incluindo Alberto, Cyz e Laura, tiveram aula anteriormente, antes do recreio). Bernardo diz:

– Parabéns, Amélia! Brincar, além de ser uma atividade de lazer e entretenimento muito boa para a infância e para crianças como você, é muito saudável, pois exercita bem o corpo, fortalece, desenvolve suas partes, e queima calorias, emagrece.

 Já Iracema diz:

 - Que nada! Quem merece os parabéns é Alberto! Estudar desenvolve a lógica, o raciocínio e a mente. É só estudando que se pode ser alguém na vida! Olha como ele é dedicado e esforçado!

 Neli discorda:

 – Vocês estão doidos?! Laura que está certa, no recreio tem é que comer, só comer e mais nada, é proibido fazer outra coisa! Além de que comer é bom, é gostoso, e deixa a pessoa bem forte!

Bernardo exclama:

- Você fala isso porque é gorda! É um erro achar que comida é sinônimo de saúde como muitos pensam. Eu fiz faculdade na área nessa área, sei do que falo!

Iracema retruca:

– Estudar exercita o cérebro, que também faz parte do corpo!

E começa uma discussão sem fim. Graças a Deus, bate o sinal e cada um vai para sua classe.

Mas Alberto, Amélia Cyz e Laura ficaram pensando nisso tudo e se fizeram a pergunta: "O que é mais importante: estudar, brincar ou comer?" E fizeram uma aposta: na segunda-feira como iriam ter a 1ª aula com sua professora mais simpática, mais doce e inteligente, a predileta da escola, a Professora Rosana, eles iriam trazer R$ 5,00 cada um e perguntar para ela qual das três coisas era a mais importante. Alberto apostou em estudar, Amélia Cyz em brincar, e Laura em comer, quem ganhasse ficaria com os seus próprios 5 reais e com 10 reais dos outros dois colegas, ao todo 15 reais.

Tiveram as duas aulas posteriores ao recreio e depois foram embora para casa.

Em casa cada um segue sua rotina normal, no final de semana...

... Alberto estuda sem parar, mal chega da escola já vai lendo livros, jornais e revistas como Veja e Galileu, sua mãe fica irritada por ele chegar e ficar lendo, o manda almoçar, ele mal come, já se enfia no caderno, no meio dos livros, fazendo lições e tarefas de casa, trabalhos e estudando para a prova, etc. De noite, passa em claro fazendo trabalho de geografia até a madrugada, amanhece, dorme muito pouco...

... Amélia Cyz brinca o dia inteiro, joga videogame, fica no computador, e joga vários jogos. Pratica esportes como vôlei, vai à casa de colegas, sai na rua brincar com os amigos e não para em casa, muito falante...

... Laura almoça pra valer mesmo depois dos lanches da escola, come muita sobremesa, sorvete, doces, chupa balas, fica mascando chicletes, e outras guloseimas e porcarias, toma café da tarde, depois come um pouquinho disso mais um tanto daquilo, belisca de lá e belisca de cá, não tem jeito, ficou beliscando o dia todo, depois janta, e ceia, e em seguida, já na cama, leva um prato e fica comendo, depois que dorme, acorda de noite com fome e come muito sanduíche...

Finalmente chega a tão esperada e aguardada segunda-feira, ansiosos vão fazer a pergunta para sua professora:

- Professora, o que é mais importante: estudar, brincar ou comer?

– Tudo é importante igualmente. Todas essas coisas são boas e necessárias. O que acontece é que cada coisa tem a sua hora: tem a hora de estudar, o momento de brincar e o tempo de comer. Se todos gostassem de uma coisa só iria ser muito chato, e coitada da outra opção! Assim também temos que estudar, brincar e comer, fazer as três coisas, mas cada uma em seu momento devido e na hora certa.

Assim, nessa segunda-feira, os alunos da Felicidade aprenderam uma grande lição com a sabedoria inspirada e inspiradora da professora Rosana: "Todas as coisas são importantes em seu tempo correto e preciso".

Fonte:
Espaço Literário Sorocult. www.sorocult.com
acesso em 09.01.2016

III Concurso de Trovas Batista Soares – Fortaleza/CE (Prazo: 30 de abril)


A trova deve ser inédita e o tema constar na trova.

Âmbitos e temas:

NACIONAL/INTERNACIONAL:

Uma trova por tema

Novo Trovador: Emoção (L/F)
(Registrar Novo Trovador abaixo da trova);

Veteranos: Regresso (L/F)

Veteranos: Trovador (L/F)
[Em alusão ao centenário de nascimento do Trovador da UBT-Fortaleza Fernando Câncio, in memoriam.]

ESTADUAL (somente Ceará)

Duas trovas por tema

Liberdade (L/F)

Trovador (L/F)
[Em alusão ao centenário de nascimento do Trovador da UBT-Fortaleza Fernando Câncio, in memoriam.]

OBSERVAÇÕES:

Nacional/Internacional: Trovadores residentes nas Unidades da Federação e em outros países. Exclusive para os trovadores do Ceará.

Estadual:  residentes no Ceará.

Novo Trovador:  Considera-se novo trovador aquele que ainda não obteve classificação em 03 concursos de Trovas em âmbito nacional entre os cinco (5) primeiros colocados, de acordo com nova decisão da UBT Nacional.

envio por e-mail: ubt.mpe@gmail.com
para a fiel depositária – Larissa Lopes Filgueiras
nome e endereço completo do autor – Município e Estado.
Se estudante indicar também o nome da escola, série/turma.

As trovas devem ser enviados no corpo do e-mail. Não enviar anexos.

PRAZO: Até 30 de abril de 2023 às 23h59.

CLASSIFICAÇÕES: Serão classificados 20 trabalhos por tema. 5 Vencedores [1º ao 5º] / 5 menções honrosas [6º ao 10º], 5 menções especiais [11º ao 15º], 5 Destaques [16º ao 20º]

PRÊMIOS: Diploma para cada um dos vinte classificados no tema. Os resultados devem ser anunciados em maio, em data a ser confirmada. Todos os diplomas serão enviados por e-mail.

A simples remessa e participação no concurso autoriza automaticamente a publicação e divulgação dos trabalhos não eliminados pelas comissões julgadora e apuradora, em livros, jornais rádios, internet, redes sociais, informativos das Academias, nas escolas/faculdades, com indicação do autor. Os trabalhos não serão devolvidos.

sábado, 28 de janeiro de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Parque de Diversão) - I


Uma das coisas que mais divertiram as crianças de minha geração foram os parques que esporadicamente baixavam em nossa cidade.

Os cavalinhos, os barcos, os automóveis em constantes trombadas, a roda gigante... tudo fazia parte de um mundo feliz e encantado de folia e recreação.

Havia também as barraquinhas onde o pessoal se exercitava no tiro ao alvo, ou tentava abiscoitar uma prenda nos sorteios de bilhetes numerados.

O “Parque Mila” foi o que mais marcou a minha lembrança.. Mila era provavelmente filha dos donos, já que o parque levava o seu nome. Era uma garota linda, de uns quatorze anos e de cabelos loiros em cachos compridos. Vestia-se com roupas vistosas e brilhantes, bordadas de pedrarias que lhe ressaltavam a beleza delicada. Eu, simples garotinha de oito anos, admirava-a intensamente.

Uma noite em que fui ao parque com mamãe e Linéa, vi Mila bem de perto, distribuindo prêmios aos sorteados. Arrisquei quinhentos réis num bilhetinho, e qual não foi a minha surpresa quando a ouvi cantar o meu número no sorteio! Que emoção receber o prêmio das mãos daquela menina que me parecia saída de um conto de fadas!

Mas... confesso que fiquei um tanto embaraçada quando ela me entregou a prenda: uma imagem de Santa Terezinha, muito linda, com o famoso ramalhete de rosas nas mãos.

Não sendo católica, eu estava ali sem saber o que fazer com a santinha. Mamãe percebeu o meu constrangimento e fez-me uma sugestão que aceitei imediatamente. Pedi a Mila (lindíssima nessa noite, trajando um vestido de cetim preto, todo enfeitado de missangas reluzentes) que me trocasse a imagem por outra   prenda. Ela sorriu para mim e fez um, gesto largo, pondo à minha disposição as fileiras em que os objetos estavam expostos.

Escolhi uma estatueta bonitinha: um pequeno pescador, garotinho de calças curtas, chapéu, e pés descalços, com uma vara na mão e um peixinho enroscado no anzol Adorei o prêmio e já em casa, na maior euforia, fui mostrá-lo a papai.

Coloquei a estatueta ao lado da entrada do quarto dele e de mamãe, sobre uma coluna dórica, de madeira, que possuo até hoje. O lugar era de destaque, e o pequeno pescador ali ficou por muito tempo, até que um dia, para grande tristeza minha, papai escorregou no tapete, e ao bater na coluna, provocou involuntariamente o acidente: a estatueta caiu e espatifou-se no chão. Catei os cacos, mas não consegui colá-los  estavam muito estilhaçados. O jeito era me conformar.

Um dia, anos depois, mamãe chamou-me a atenção para uma manchete no jornal que estava lendo. Olhei o título: “O triste fim do Parque Mila.” A notícia dizia que, em uma das cidades que percorria,   o parque se incendiara devido a um defeito no sistema de iluminação. Ficara inteiramente destruído.

Eu não queria acreditar. O parque mais lindo de minha infância gravara em minha memória uma imagem indelével que não poderia mudar: os carrosséis e a roda gigante girando, as barraquinhas movimentadas, o mar de luzes deslumbrantes, e a linda e graciosa Mila sorrindo para as pessoas e entregando-lhes prendas com as próprias mãos, como se fosse uma fada distribuindo privilégios a seus favorecidos, num reino venturoso de perene alegria, encantamento e diversão.

Fonte:
Espaço Literário Sorocult (www.sorocult.com)

Carolina Ramos (Poesias Esparsas) 8


ROSA DE SANGUE


Dom sublime, a Poesia furta ao solo
as almas simples que Deus prestigia.
E transforma um pigmeu num louro Apolo,
glorificado à luz que não pedia!

Poesia é mãe que o filho abraça e ao colo
recolhe a dor que o peito lhe crucia.
Terno traço de união de polo a polo,
é sol na treva... é luar, em pleno dia!

Poesia é amar a própria angústia! É erguer
a taça da amargura e, sem morrer,
sorve-la, gota a gota, em noite incalma!

É estigma? É carisma? Glória ou cruz?
Poesia é estranha rosa, que seduz:
- Rosa de Sangue... com perfume de Alma!
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

NAUFRÁGIO

Neste oceano da vida, tumultuoso,
lancei, cheio de sonhos, um barquinho.
E ele flutuou e deslizou airoso,
vencendo os empecilhos do caminho!

Nos momentos difíceis, sem repouso,
depressa ia ampara-lo o meu carinho
e ansiosa eu via, com secreto gozo,
meus sonhos desafiando o torvelinho!

E chegaste! E de pedra era tua alma!
De papel, o barquinho... e tenso e mudo,
ficaste, quando o mar perdeu a calma!

Contra o recife, o barco soçobrou!
E os sonhos, sem guarida, ao fim de tudo,
um a um, impiedoso, o mar levou!
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ADVERTÊNCIA
Aliança trincada...

Entre dois corações que, um dia, a vida
uniu e a Lei de Deus abençoou,
numa aliança eterna, irrefletida,
mágoa e desilusão é o que restou!

Junto à primeira lágrima sentida,
muito cedo, a ilusão se dissipou,
a lamentar a dor de ser colhida,
qual flor de sombra, à luz do sol, murchou!

Descrevo o nosso amor. E que amargura
relembrado na mágoa de um momento!
Se acaso uma esperança ainda perdura,

salvemo-la da insídia e dos espinhos,
ou ficarão dois seres, num tormento,
unidos por dever... porém sozinhos!
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

PROFECIA
Elo partido...

Muitas vezes te disse - tens lembrança?:
– Muda! por nossos filhos! - E, também,
que a renúncia constante anula, cansa,
quando improfícua... e só de um lado vem.

Lembrei-te (quantas vezes!] é a confiança
base que o templo conjugal sustém.
E estremecia a última esperança
de envelhecermos juntos... mal ou bem!

Cumpriu-se a profecia! O eco ressoa!
Cai o arruinado templo! Embora doa,
nossos elos partiram-se! Defuntos,

os sonhos se perderam no caminho!
Tanta mentira e ausência de carinho,
que ao fim da estrada, não chegamos juntos!
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

VERDADE

Todos pensavam que a felicidade
era a bandeira azul que eu conduzia...
Todos pensavam, sim, mas a Verdade,
além mim, somente Deus sabia,

Ninguém sonhava a triste realidade
que em meio à multidão me perseguia;
nem que o sorriso meigo de humildade
era regado em pranto, noite e dia!

Quem poderia crer que a tais extremos
eu chegasse, partindo os frágeis remos
de um destino cruel! Ninguém supunha

que um oceano de lama, tormentoso,
eu banisse de mim... e, em céu calmoso,
fosse viver os sonhos que eu compunha!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.
Livro enviado pela poetisa.

Geraldo Pereira (Tragam as Vasilhas)


Sou do tempo dos encantadores pregões, de antigos vendedores que ofereciam seus produtos com a musicalidade da voz, grave ou aguda, a depender de cada um. De poetas do dia-a-dia das coisas, cantores das ruas, com rima ou sem rima, contanto que mostrassem a variedade ou a qualidade e obtivessem o desejado retorno das moradias de classe média. De meninos ou de meninas, das senhoras bem trajadas ou daquelas de roupas cosidas e até cozidas com a crueza da chita, que nas casas serviam como domésticas, tangidas dos canaviais distantes.

Como esquecer do que me falou Sílvio Costa, que pras bandas de Pau Amarelo corteja saudades: “Espanador/Vasculhador/Colher de pau/Esteira d’Angola/Rapa Coco/E grelha/Eu tenho quartinha”. Foram coisas assim, mais do que puras, que preencheram tardes mornas de sábado. Ou foram os acordes tirados da gaita do amolador de tesouras, que a tudo amolava ou as notas do homem do pirulito que embalaram sonhos e devaneios da meninada de outros anos ou de outras eras.

Detesto essa modernidade do hoje, do microfone instalado em velhas e carcomidas "Kombis" anunciando ovos e verduras, uvas e bananas, laranjas aos borbotões e abacaxis em quantidade. Até o sorvete de fato artesanal no meu antes vem sendo comercializado assim: "Olha o sorveteiro barateiro! Dez bolas por um Real! Tragam as vasilhas! Tragam as Vasilhas!". Ninguém aguenta mais a repetição, que lembra um certo apresentador de televisão dizendo: "Abram as cortinas! Abram as cortinas!". E se vou mudar de casa, deixando de assistir neste canto para morar num recanto, o Rosarinho, lugar de onde emergem muitas das reflexões de Fátima Quintas - o Quintas da Jaqueira -, não me livrarei do sorveteiro barateiro.

Dia desses por lá ouvi a indiscreta loa e mais do que perplexo confidenciei aos meus botões: "Eu não acredito numa coisa dessas!". Mas, é verdade, responderam! Lamento o desaparecimento de toadas como esta: "Eu tenho lã de barriguda/ Para travesseiro/...". Ou : “Olha a bolinha de cambará/Dois pacotes é um vintém/...”

O cavaquinho de agora vende-se aos pacotes, enrolados no plástico translúcido, sem a sonoridade do velho triângulo, equilátero, sobretudo, que pendia do indicador esquerdo, tocado, na mais sincrônica das formas, com vareta bem temperada de aço acalmado à mão direita, a percorrer cada um dos lados, tirando as notas dos desejos infantis. E o cuscuz matinal, despertando as famílias com o silvo forte do vendedor, em tudo, madrugador? Desapareceu, quase, deste Recife contemporâneo, desses dias que correm mais que aqueles, de criança!

Um ou outro remanescente percorre as ruelas das periferias urbanas, sustentando tradições! O sino do vendedor de bolos, de broas e de outros acepipes, que carregava na cabeça a produção doméstica, em móvel envidraçado, com quatro longas pernas de cor azul, silenciou na distância dos muitos anos contados pra trás! O homem que gritava a macaxeira e que ouvia de nós outros a indagação cavilosa – “Como se chama a sua mãe?” -, calou-se, vive a mudez das lembranças, apenas, na surdez das impiedosas mudanças!

Mudou tudo, afinal, mudaram as pessoas da rua e os parentes, há filhos jovens e sobrinhos novos contados em maioria! Morreram os velhos! E morreram, do mesmo jeito, os autores e os atores dos antigos pregões, dos matinais e dos vespertinos, anônimos cantadores das ruas, de cujas transformações nasceram muitas das dores d'alma e das saudades. Sequer existem babás a cantarolarem a própria desdita:

"Quem faz o bem/Recebe sempre o mal/...". E nem meninas brincando: "Eu sou rica/Rica/Rica/...". Tampouco adolescentes em flor entoando: "...Serei eu rico/Ou muito pobre?/ Que será/Será/Aquilo que for/Será/O futuro não se vê/Que será/Será....". Morreram as tias velhas, viúvas e mal-amadas, que versejavam: "Nos cigarros que eu fumo/Te vejo nas espirais/Nos livros que eu tento ler/Em cada página tu estás/Me deixa ao menos/Por favor/Pensar em Deus...".

"Tragam as vasilhas/Tragam as vasilhas...", na verdade, é o refrão das manhãs ou das tardes dos sábados e dos domingos e "Abram as cortinas! Abram as cortinas!" encerra, afinal, o domingo, antecipando inquietudes.

Fonte:
Geraldo Pereira. A medida das saudades. Recife/PE, 2006. Disponível no Portal de Domínio Público

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 21

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 74


Sábado engalanado.  Ventares azuizinhos. O azul é uma das três cores chamadas verdadeiras,  juntamente com o vermelho e o amarelo. Estas são ditas também cores primárias - não é possível fazê-las a partir da mistura de outras cores.  Mas com elas podemos formar mais cores, as secundárias.

O colorido do ambiente é matizado de muitas cores e esse corolário é que dá aos olhos a a visão do belo, do encanto, do refrigério. Como somos unidades, mas não unanimidades, cada um reage de uma forma quando recebe o espectro colorido.

O grego Aristóteles é um dos pioneiros estudiosos das cores, mas foi Isaac Newton que apresentou experimentos que revolucionaram os conceitos sobre elas. E assim chegamos à cromoterapia, que é o tratamento para o corpo e a mente.

As cores geram bem-estar, ajudam na autoestima, reduzem o estresse, eliminando ansiedade e angústia.  As cores mexem com as emoções, inspiram, dão vida à vida dos seres e do mundo. Razões imensas para o cultivo das flores do jardim e as árvores e frutos ali do bosquinho.

Fonte:
Texto enviado pelo autor 

Beatriz Moraes (Cafeteria)


- Um chocolate quente, por favor.

- Com ou sem chantilly, senhor?

O chantilly faria o chocolate ficar mais doce. Mais apresentável. Ia criar uma camada leve e açucarada em cima do meu pedido. Um pedaço de neve desfeita feito bruma passeando por cima da penumbra. Uma irritavelmente perfeita variação do leite, aquele líquido tão simples e abominável, que minutos antes teria se transformado em chocolate. Minutos antes. Numa mistura peculiar, onde ambos se ajudariam, dentro dos trancos do liquidificador, a crescer e transformar-se num só, aquela encorpada bebida marrom e quente. Daí viria a parte mais prazerosa. Era só pegar o dito cujo do leite, desprezar a parceria com o pó de cacau, sacudir e sacudir o sem-graça, aguado, inútil e insípido, dar-lhe uns bons sopapos, sem esquecer de acrescentar, claro, a serenidade do açúcar. Pronto. O inocente líquido branco teria sido atirado ao crescimento pelo pior meio possível, para tornar-se o superficial chantilly.   A máscara de todo conteúdo. A parte bonita e carismática que aparece sempre encobrindo a parte densa e realmente consistente. A parte que todos admiram. Que todos anseiam. A parte que esperam que nunca termine. O doce sabor da superficialidade. A maravilhosa experiência de não ter de preocupar-se com o que vem depois. Mal sabem que o verdadeiro sabor ainda está por vir. Mas chocolate já é doce. E é tão sem-graça. Tão sem emoção. O chantilly vem todo dengoso... todo superior... todo cheio de sonhos embutidos, criando milhares de expectativas, para conquistar à primeira vista. Para derreter e encantar ainda mais. A mim, e a um bom raio que o assista à minha volta. Quem sabe às crianças o efeito seja mais perceptível, ah, essas são alvo fácil. Muitas vezes certeiro. Mas elas deixam-se envolver pelo encantamento. Pelo sabor. Pela novidade. Já os que calculadamente optam por um chocolate com chantilly, não. Esses querem é ver o circo pegar fogo. Querem botar o dedo na ferida, dramatizar a vida, escancarar seu anseio por um mundo melhor. Um mundo melhor para si, obviamente. Se quisesse um mundo melhor para todos iria logo a uma doceria comprar um enorme bolo com muita cobertura de chantilly e daria uma bela festa, regada à infames sorrisos amarelos, partilhando a peculiaridade da salvação com incontáveis convidados. Pelo menos a salvação momentânea. Ia ser divertido ver de perto o rosto das pessoas celebrando a parte leve e rasa da vida. No geral já podem ser vistos em cada esquina, em cada gesto, em cada momento. Mas acredito que nunca alguém observou o ser humano celebrar a superficialidade hipnotizante do chantilly.

- Senhor?

– Pensando bem. Traga-me um café amargo.

Fonte:
Espaço Literário Sorocult
http://www.sorocult.com/el/view.php-cod=185.htm
Acesso em 09.01.2016

Caldeirão Poético LIX (Madrigais)


Madrigal, é uma composição delicada e graciosa que celebra principalmente a formosura e as graças femininas. Pode ser também um galanteio dirigido a damas e também está associado à composição musical que consistia em um canto vocal sem acompanhamento, em moda no século XVI.

Oriundo da música, o madrigal expressa as principais ideias e sentimentos das chamadas cantigas de pastor. Sua forma é diferente dos poemas convencionais e seu conteúdo pode estar relacionado com a expressão de sentimentos líricos e ideias de forte conteúdo emocional, com vocabulário seleto, ou a temas de inspiração prazerosa.

Em nossa literatura brasileira, nomes como José Paulo Paes, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade escreveram belíssimos madrigais.

De origem italiana, o madrigal era, no século XVI, uma espécie de composição musical e poética, consistindo em canto vocal sem acompanhamento.

A palavra perdeu essa significação. O que chamamos atualmente madrigal é uma pequena composição destinada a exprimir, num resumido número de versos, um pensamento espirituoso e elegante, um galanteio, um elogio discreto ou uma discreta confissão de amor. Concisão, graça, e delicadeza, são essenciais ao poema.


Toni Barbar
Maringá/PR

CÉU E MAR


Menina do sorriso lindo, puro,
vem beijar meu coração,
olhar de ternura, minha musa,
teus encantos me deixam ébrio;
Teu olhar me extasia;
Teu quadril me tira da inércia.
Retorne a passar,
dê-me uma chance,
de olhar e te amar,
com meus olhos nos teus, a divaga
por entre sonhos e realidade,
entre céu e mar,
Terra e profundidade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

Maria Antonieta Gonzaga Teixeira
Castro/PR

CLAMOR


Quero estar
no sol que brilha
em teu olhar!
Nas madrugadas
frias
ao luar
Chamo
pelo teu nome.
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

Lira Agibert
Colombo/PR

A DIVA


Mar...
Ela sorri
Alegria sem par
A diva seminua
Quase que flutua
Êxtase a bailar
Nas águas tépidas
Que vão e que vem
Entre as espumas
A deusa morna
Brinca seminua
Na forma mulher
Silencia natureza
Pois toda a beleza
Ante seu farfalhar
Se curva, devaneia
Até o amanhecer
Vendo-a borboletear!
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Manuel Bandeira
Recife/PE, 1886 – 1968, Rio de Janeiro/RJ

MADRIGAL MELANCÓLICO


O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
– Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi,
Não é a irmã que já perdi,
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti – lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.
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José Paulo Paes
Taquaritinga/SP, 1926 – 1998, São Paulo/SP
 
MADRIGAL
 
Meu amor é simples, Dora,
como água e o pão.
Como o céu refletido
Nas pupilas de um cão.

Fonte:
Sobre o Madrigal e madrigais paranaenses obtidos no facebook de George Roberto Washington Abrão (Maringá/PR).

Amadeu de Carvalho Júnior (O Urubu)


  Era uma vez...
                       O Seu Urubu.
                       Era uma vez...
                       A Dona Coruja.
                       Era uma vez...
                       O jovem gavião.
                       Era uma vez...

Uma passarada sem fim, aves e mais aves.

Você já deve estar cansado de tanto "era uma vez...", bem, vamos deixar os personagens para depois e ir direto ao ponto (ao assunto = a história).

No recanto das aves, no céu mais azul que já se viu, havia muitos pássaros, dentre eles, o qual a história contará: morava o urubu conhecido como “Seu Urubu” ou Senhor Urubu. Ele era fedido, nojento, parecia uma espécie de cruzamento da mistura entre porco e gambá. Quase ninguém conversava com ele, ninguém queria chegar perto dele, era muito discriminado por sua sociedade preconceituosa, racista e narcisista, que só cultivava as aparências, a beleza exterior, do corpo, a que passa. Ele era muito educado e simpático com todos, mas sua aparência disforme, sua feiúra, seu mau cheiro, seu fedor, sua porquice e seu hábito de fuçar lixo, restos e ter animais decompostos em sua dieta não agradavam em nada aos seus conterrâneos que tinham nojo dele e esse nojo impedia que aqueles cabeças-duras se aproximassem dele.

Eventos sociais, festas, para nada era convidado. Ninguém fingia ou escondia o incômodo que tinham em relação a ele. Era alvo das fofoqueiras e fofoqueiros de plantão. E não parava mais...

Até que um dia muito triste veio, e o Sr. Urubu já estava com a auto-estima muito baixa e se sentindo totalmente caluniado, desrespeitado, chateado, magoado e esgotado com essa situação (não era pra menos!) :   -   Por que tem que ser assim? Por que não me aceitam como sou?

Nesse momento, aconteceu o ápice, o apogeu de sua vida, ele teve um "clique" e decidiu que mudaria: - Não vou esperar a opinião e a mente deles mudarem. Eu faço a diferença. Eu consigo, vou tentar e posso mudar. Eu vou mudar. Farei a minha parte para ninguém mais me acusar e chamar de apelidos como "Lixão ambulante" e "Toxina mal-cheirosa".

Ele tinha ouvido falar de um gato cabeleireiro especialista em beleza muito famosa na região, chamado Aj. Nele foi. O gato, é claro, aceitou o serviço, mas não acreditou que adiantaria muito. Porém, mais que um serviço, aquilo se tornou um desafio e mais, ao ver o urubu tão pra baixo e infeliz, quis ajudá-lo.

Para começar deu um banho no urubu de sabonete, bucha, escovão e água, cortou algumas penas sujas e feias, cortou alguns fios de cabelo, limpou, lavou, escovou, penteou, deu um corte moderno. E quem diria: que aparência saudável! O urubu se espantou e decidiu se perfumar, sempre estar limpo e de roupa nova. Quis reconstruir sua vida. Nunca voltar ao lixo e à carniça de antes. Agradeceu muito ao gato. Estava feliz. Pela primeira vez olhou no espelho e encontrou-se consigo mesmo. Agora sim. Estava bom e tudo bem.

Como todos ficariam surpresos ao voltar!

E assim o foi...

O urubu decidiu voltar para o Recanto das Aves para participar do desfile de moda que elegeria a ave mais bela de todas.

Todos participaram. Inclusive o Seu Urubu, ou melhor, o novo e renovado Urubu de hoje e de agora. Todos ficaram maravilhados e ao mesmo tempo espantados com a mudança radical e com a "ousadia" do Urubu, na cabeça deles ele não tinha esse direito de participar.

Jovem e elegante como o gavião  ágil e habilidoso como a águia  calmo, sossegado e pacífico como a pomba  sábio, culto, educado, inteligente, discernido e até impondo respeito e sendo importante como a coruja  alegre e feliz como um canário ou sabiá  "gracinha" como um pinguim ou um pintinho  belo como uma garça, um tucano, um pelicano, um papagaio ou uma arara  igualado a todos os pássaros desde a angola, o pica-pau, o periquito, a siri ema, a ema, o marreco, o pato, o ganso, o galo, tendo a fofura do bem-te-vi, a altura de um avestruz... E até tendo a elegância e o deslumbramento de um pavão!

O resultado estava prestes a sair. Na opinião geral dos pássaros participantes: Os passarinhos e cantores pequeninos cantarolando, ficaram e são mesmo bonitinhos e fofinhos, mas havia melhores. A coruja e o papagaio até que eram concorrentes fortes e ela era respeitada. Mas o pombo, a águia, o tucano, e o avestruz estavam acima. O urubu, apesar de tudo, ainda causava desconfiança (será que aquele atrapalhado e desastrado havia mudado mesmo? É uma miragem ou um milagre? É justo ele se arrumar e ficar bonito apenas hoje, só par participar do desfile? Deve ser desclassificado e punido, vamos humilhá-lo ainda mais!). As apostas mesmo estavam ao redor do gavião, do pavão, da garça e da arara azul e vermelha.

O corpo de jurados era formado por um animal de cada espécie, entre eles, os principais: a ave mais antiga e experiente  um gato decorador, maquiador, pintor, estilista e artista  e o leão rei da selva.

Chegou a hora da decisão: quem será que ganhou?

O resultado: Quem ganhou foi... A espera é tanta!

O vencedor é... O coração está pulando, e as mãos suando.

O grande ganhador do troféu de ouro e da viagem à Atmosfera Distante é... O URUBU!

Queixo caído (de todos, inclusive dele próprio)! Urubu não se conteve de emoção, foi viajar e permanecia cada dia mais belo, limpo e bem cuidado.

Já as outras aves, infelizmente, eram perdedoras mesmo! Não sabiam competir, caíram em profunda angústia e depressão, pararam de se cuidar, tornaram-se feias, ridículas, fedidas, sujas e não se aguentavam a si mesmas e umas as outras.

Moral: O que importa é a beleza interior (a beleza do coração) = quem é belo por dentro torna-se intensamente lindo e para sempre, permanece, não passa. Agora quem só se liga em aparências, no culto ao corpo (narcisismo) o qual o mundo de hoje leva, só são belos exteriormente e podem ser até horríveis internamente! O exterior é passageiro, um dia a beleza por fora (externa) pode se acabar. A alegria vem do coração puro e verdadeiro. A humildade preserva o ser. "Quem com ferro fere, com ferro será ferido".

Corramos atrás do que queremos sem pisar e humilhar os outros, o nosso próximo. O preconceito não leva a nada. Lutemos pelos nossos sonhos, para assim os alcançarmos. Não desperdicemos chances e não fiquemos parados: agarremos oportunidades!

Fonte:
Espaço Literário Sorocult
http://www.sorocult.com/el/view.php-cod=153.htm
Acesso em 09.01.2016 

Jaqueline Machado (Otelo, um homem morto pelo ciúme)


Nossos corpos são nossos jardins, cujos jardineiros são nossas vontades, de modo que se quisermos plantar urtiga e semear alface, deixar hissopo ou arrancar tomilho, provê-los apenas de determinada espécie de erva ou enchê-los de muitas variedades, esterilizá-los pela preguiça ou cultivá-los pelo trabalho, podemos.

Com essa frase de Otelo, eu dou início a uma breve narrativa sobre essa grande obra Shakespeariana. Otelo, o mouro, general de Veneza, que por não pertencer a uma casta privilegiada, casou-se às escondidas com Desdêmona, contra a vontade do pai. Ele recebeu dos céus a oportunidade de ser feliz, no entanto, se deixou enganar e pagou um alto preço por isso.

Cássio é o nome do seu melhor amigo. Rodrigo é um rival apaixonado por sua amada. E Iago é o seu servo de confiança.

Esses famosos e intrigantes personagens, são pegos por uma terrível armadilha da vida ou melhor dizendo, da deusa dos venenos, mais conhecida por INVEJA. Iago que parecia ser o seu homem de confiança, na verdade possuía dupla face e desejava ocupar o lugar do seu general. Porém, sabendo que para saciar a desmedida ambição, que era retirar o general do seu caminho, poderia levar tempo, almeja ao menos ser promovido. Mas, em seu lugar, quem recebe uma promoção como tenente é Cássio.

Possuído por sintomas de inveja, decide se vingar. Arquitetando junto de sua esposa e cúmplice, semeando a discórdia entre o casal. A principal investida foi quando Emília, sorrateiramente, pegou um lenço de Desdêmona. Este lenço pertencia aos antepassados de Otelo e ele dera à amada como prova do seu amor. Quando este lenço chegou nas mãos do falso amigo, ele fez questão de colocá-lo no quarto de Cássio. Isto fez o mouro desconfiar da fidelidade de sua mulher e do amigo.

Tomado de ciúmes, Otelo resolveu acertar as contas e matou sua mulher asfixiada. Emília, consciente do horror o qual ajudou realizar, arrependida, contou para o mouro toda a verdade. Iago tentou fugir, mas foi capturado por Ludovico, um primo do general. Otelo se aproximou do corpo de Desdêmona que estava estirado ao chão e sem que ninguém percebesse, tirou um punhal debaixo da farda e se matou beijando o cadáver da mulher que amava.

Moral da história: cuidado com quem andas...Até mesmo os mais fiéis podem não ser tão fiéis quanto aparentam ser.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Vanice Zimmerman (Tela de Versos) 12

 

Coelho Neto (A árvore)


Ninguém sabia explicar como, em tão árido deserto, conseguira medrar a árvore propícia. Fora da sombra ameníssima da sua copa tudo era esterilidade adusta — areias amarelas,- sem erva, sem sulco de riacho, esbraseando ao sol.

Os viajantes respiravam aliviados quando, de longe, avistavam o vulto frondoso da árvore ; os animais amiudavam os passos e, sob a densa e derramada folhagem, impenetrável aos raios caniculares, juntavam-se as caravanas e, como havia uma cisterna no diversório virente (diversão verdejante), todos bebiam à farta e renovavam a provisão dos odres.

A providência daquela árvore não era apreciada, mal lhe prestavam atenção os viajantes e muitos, por passatempo, escorchavam-lhe o tronco com as facas, arrancavam-lhe os ramos ou acendiam fogueiras sobre as suas robustas raízes.

Certo ancião, abrigando-se á sombra da árvore, descobriu que um mal roaz (devastador) a consumia e logo, piedosamente, pôs-se a tratá-la com o desvelo carinhoso com que se dedicaria a um ser humano.

Mofaram da sua paciência os homens da caravana e o velho, sem agastar-se, assim lhes falou:

— Tendes de mim porque pratico o bem; talvez venhais a arrepender-vos da vossa descuidosa ingratidão quando, de regresso, não achardes sombra que vos acolha. A árvore sucumbe, nada há mais a fazer-lhe.

Foram-se os caminheiros. Certa tarde, a um rijo golpe de vento, a árvore, cuja folhagem amarelecera, rolou, com fragor, no solo.

Vinha de volta a caravana e os homens antegozavam a delícia de um lento repouso á sombra, quando pasmaram do encontro: folhas secas, ramos quebrados e o tronco desconforme meio coberto pelas areias.

A cisterna ficara entulhada e a alfombra verde morrera ressequida. Foi então que os homens compreenderam o valor da árvore e a fortuna que haviam perdido.

Pobre árvore! Enquanto viveu foi sempre desprezada, sofrendo toda a sorte de maus tratos; morta, porém, deixando o vazio, eis todos lamentando à sombra agasalhadora que ela, sempre generosa, oferecia, as flores de perfume suave que se abriam nos seus ramos, os pássaros que neles se juntavam, alegrando a região com os seus cantos concertados, a água que parecia brotar das suas fundas raízes.

Ainda hoje, os que trilham o deserto inóspito, mostrando uma tora que aparece acima das areias, param e, tristemente, murmuram :

— Era aqui que a grande árvore, coberta de flores e de passarinhos, abria às caravanas a sua sombra hospitaleira.

Fonte:
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão
Ltda, 1924. Disponível no Portal de Domínio Público.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXXVIII


A dor definha e consome
qualquer doente a sofrer,
tão voraz, fica e não some,
levando um corpo a morrer.
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A dor se iguala a uma flecha
que na alma fica alojada,
dói, quanto maior a brecha,
sem cicatriz, da flechada.
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A lei, na sua vigência,
deverá ser respeitada,
mais que seguida, na essência,
se necessário, aplicada.
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A luz da sabedoria
como um facho alinhe a vida,
nunca falte ao fim do dia
a conquista merecida.
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Ampla, geral e irrestrita,
deve ser a liberdade
e a palavra, uma vez dita,
seja a expressão da verdade.
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Aonde reina a tempestade
volte o bem-estar, sereno!
E quando falta a amizade
sopre o vento do amor pleno.
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De uma sincera amizade
resistem alguns sinais,
de dor ou felicidade
gravados nos seus anais.
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Em levas, no anonimato,
o imigrante em forte ação,
implantou novo formato
ao Brasil da "imigração".
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Jamais posso imaginar
um mergulho no porvir,
sem num ontem mergulhar
e hoje, poder prosseguir.
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Não lastimes companheiro,
frente à vastidão do mar!
Porque no mesmo cargueiro
estamos a navegar...
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Nenhuma pedra interrompa
a estrada de um sonhador
e a ilusão jamais corrompa
o aroma da ingênua flor.
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No alto da torre, cantante,
tilinta o sino em ação,
clama a fazer num instante
um momento de oração...
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No antro de excessos na vida,
o ódio sobra à sociedade,
mais que um prato de comida:
carece o pão da humildade.
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No cosmos, se remoendo,
aonde a densa sombra atua,
tem multa estrela querendo
ser maior que o sol e a lua.
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No universo das estrelas
surge o sol para apagá-las,
pode a nuvem escondê-las,
mas nunca á noite furtá-las.
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Nunca erija um argumento
calcado na falsidade,
para que em nenhum momento
desabe frente à verdade.
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O homem, tal um forte raio,
vê no amigo um concorrente,
passa à frente e de soslaio
busca o sonho tão somente.
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O imigrante era guerreiro
frente à dor não declinava,
buscava no chá caseiro
a solução que faltava.
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O lusco-fusco do ocaso
acende um novo cenário,
paulatino e sem atraso
no palco interplanetário.
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Pelos campos da esperança
planta a paz, que hás de colher,
mais que frutos de bonança,
luzes para o teu viver.
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Pode envolver-te no abraço,
porém, este também passa.
Que dizer se nem teu traço,
fica, em um sinal, de graça?
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Que bom ver o sol brilhando,
não menos que a lua cheia,
ambos, sempre iluminando
quem pela estrada vagueia.
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Ronda da noite, a coruja,
transparece estar pensando,
disfarçada, antes que fuja,
captura a presa, voando.
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Se as águas da juventude
regam vontades e anseios,
fazem transbordar o açude
da ansiedade e devaneios.
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Sobre os trilhos do presente
segue espalhando a saudade,
rangendo em cada dormente,
o trem da modernidade.
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Todo o brilho do Natal
leva a esquecê-lo, jamais,
não maior, nem mesmo igual,
que o primeiro dos Natais.
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Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.