quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Messias da Rocha (Trovas em preto e branco)


 1
A arte se torna plena,
quando o ator, um menestrel,
coloca a verdade em cena
e encena o próprio papel.
2
A imensidão é por certo,
uma questão de lugar:
descobri que era um deserto
o que pensei que era um mar...
3
Cedo demais minha cãs
brotam em brumas de outono:
são as mudas temporãs
das sementes do abandono.
4
No buteco do Zé Galo
tanto a sujeira se agrupa,
que servem bife à cavalo,
com mosquito na garupa!
5
O meu Deus sempre despreza
quem na hora consagrada,
pede tudo enquanto reza,
mas não precisa de nada!
6
Para fugir do cansaço,
ensinou-me um velho monge,
que uma pausa a cada passo,
sempre nos leva mais longe!
7
Quando a paixão foge à norma,
a razão com maestria
rege a orquestra que transforma
nosso amor em sinfonia.
8
Quando tu cobres teu rosto
com este véu de tristeza,
vivo a impressão de um sol posto
numa tarde sem beleza.
9
Se a saudade me consome
e alimenta a minha dor,
lembrando apenas teu nome
eu mato a fome de amor!
10
Sempre o povo impõe seu veto,
quando a cegueira de um rei
cria trevas por decreto
e apaga as luzes da lei!
11
Seremos grandes e plenos,
se a equidade for premissa
e dermos, mesmo aos pequenos,
um pleno acesso à justiça.
12
Vejo a varanda sem rede...
Silêncio no casarão
e os retratos na parede
parecem vivos... não são...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

AS TROVAS DE MESSIAS DA ROCHA EM PRETO E BRANCO
por José Feldman

As trovas de Messias da Rocha são uma bela expressão poética, capturando temas como a busca pela verdade, a efemeridade da vida, e a condição humana.

AS TROVAS UMA A UMA

1. A arte se torna plena...
A primeira trova aborda a relação entre arte e autenticidade. O ator, como menestrel, não apenas representa personagens, mas também expressa verdades pessoais. Isso sugere que a arte pode ser um reflexo da vida interior, onde a sinceridade é fundamental.

2. A imensidão é por certo...
Aqui, a imagem do deserto versus o mar simboliza a desilusão. O "deserto" representa solidão e aridez emocional, enquanto o "mar" poderia ser visto como esperança e abundância. A revelação da realidade muitas vezes é dolorosa, mostrando que nossas percepções podem estar repletas de ilusões.

3. Cedo demais minha cãs...
Essa trova reflete a inevitabilidade do envelhecimento e a perda de sonhos. As "brumas de outono" evocam a passagem do tempo, enquanto as "sementes do abandono" sugerem que as esperanças não realizadas podem germinar em tristeza. O uso de metáforas naturais reforça a conexão entre vida, crescimento e perda.

4. No buteco do Zé Galo...
Com uma abordagem humorística, essa trova critica a realidade social e as condições de vida. O "bife à cavalo" com "mosquito na garupa" representa a combinação de pobreza e descaso. O ambiente do buteco, sujo e caótico, também reflete a desumanização em contextos cotidianos.

5. O meu Deus sempre despreza...
Aqui, a relação entre fé e intenção é explorada. A crítica se dirige àqueles que pedem tudo sem reconhecer suas próprias carências. Esta trova sugere que a verdadeira espiritualidade envolve humildade e autoconhecimento.

6. Para fugir do cansaço...
A sabedoria do velho monge ensina sobre a importância da pausa. A ideia de que "uma pausa a cada passo" pode levar mais longe sugere que o descanso e a reflexão são essenciais para a jornada da vida. Esse ensinamento é uma crítica à pressa da sociedade contemporânea.

7. Quando a paixão foge à norma...
Essa trova aborda a complexidade do amor, onde a paixão desafia a lógica. A "orquestra que transforma" sugere que o amor, quando autêntico, cria uma harmonia única, capaz de transcender a razão. É uma celebração da intensidade emocional.

8. Quando tu cobres teu rosto...
A imagem do "véu de tristeza" evoca a vulnerabilidade emocional. O contraste entre o "sol posto" e a "tarde sem beleza" sugere uma luta interna entre esperança e desespero. Essa dualidade reflete a experiência humana de encontrar beleza mesmo em momentos difíceis.

9. Se a saudade me consome...
Essa trova explora a saudade como uma forma de sustento emocional. O ato de lembrar o nome do amado é uma forma de alimentar o desejo, mesmo na ausência. Essa relação entre dor e amor destaca a profundidade dos sentimentos humanos.

10. Sempre o povo impõe seu veto...
A décima destaca a resistência do povo frente à tirania. A "cegueira de um rei" simboliza a desconexão entre o poder e a realidade social. A escuridão criada pela opressão contrasta com a luz da justiça, enfatizando a importância da voz coletiva.

11. Seremos grandes e plenos...
Aqui, a busca pela equidade é central. A ideia de justiça acessível a todos, especialmente aos menos favorecidos, aponta para uma sociedade mais justa e inclusiva. Essa trova sugere que a grandeza de uma nação está em sua capacidade de tratar todos com dignidade.

12. Vejo a varanda sem rede...
A última trova evoca uma sensação de nostalgia e solidão. A "varanda sem rede" sugere um espaço de descanso que se tornou vazio. Os "retratos na parede" representam memórias que, embora presentes, são incapazes de trazer vida à solidão. Esta imagem finaliza com um tom melancólico, refletindo sobre o passado e a perda.

AS TEMÁTICAS DAS TROVAS DE MESSIAS DA ROCHA

1. A Arte e a Verdade
A busca pela verdade em suas trovas não é uma verdade universal, mas uma experiência subjetiva. Cada ator, cada artista, traz suas vivências e emoções para o palco da vida. Isso se reflete na forma como Messias aborda suas próprias experiências, usando metáforas que tocam em questões existenciais e sociais.

A relação entre arte e verdade também implica uma crítica à ilusão. Quando ele menciona a imensidão de um deserto que se pensava ser um mar, é uma metáfora poderosa para a desilusão. A arte, então, pode ser vista como uma forma de desvelar essas ilusões, ajudando o espectador a confrontar suas próprias percepções e a realidade ao seu redor.

A verdade na arte de Messias não é apenas intelectual, mas emocional. Ele busca provocar sentimentos profundos, levando o leitor ou ouvinte a uma jornada introspectiva. Ao fazer isso, a arte se torna um espelho que reflete não apenas a realidade externa, mas também a interna.

Este tema ressoa com Fernando Pessoa, que em sua obra muitas vezes examina a multiplicidade do eu e a busca pela verdade interior. Ambos os poetas valorizam a sinceridade na expressão artística.

2. Desilusão e Percepção do Mundo
A desilusão é tratada como uma experiência universal. Captura a essência da frustração humana ao perceber que as esperanças e sonhos podem ser ilusórios. Essa temática ressoa com a experiência de muitos, criando uma conexão emocional com o leitor.

A imagem do deserto em Messias dialoga com Cecília Meireles, que em "Romanceiro da Inconfidência" reflete sobre a solidão e a busca por significados em um mundo muitas vezes árido. A desilusão é um tema comum, onde a realidade se revela diferente das expectativas.

3. Passagem do Tempo e Nostalgia
A solidão é frequentemente explorada nas trovas, refletindo um sentimento de perda e saudade. A nostalgia por momentos passados e a busca por conexões significativas permeiam sua obra, revelando a fragilidade das relações humanas.

O envelhecimento e a saudade nas trovas lembram Carlos Drummond de Andrade, especialmente em poemas como "No Meio do Caminho", onde a passagem do tempo é inevitável. Ambos os poetas exploram a fragilidade da vida e a nostalgia como parte da experiência humana.

4. Cotidiano e Realidade Social
O trovador não hesita em criticar as injustiças sociais e a opressão. Suas trovas abordam a luta do povo e a resistência contra a tirania, destacando a importância da voz coletiva e da busca por equidade e justiça.

No buteco do Zé Galo, a crítica social de Messias se alinha com a obra de Adélia Prado, que frequentemente retrata a vida cotidiana e suas contradições. A ironia e o humor são usados para evidenciar as realidades duras da vida.

5. Espiritualidade e Humildade
A relação entre fé e intenção em Messias ecoa os escritos de Hilda Hilst, que explora a busca pela transcendência e pela verdade espiritual em sua poesia. Ambos questionam as convenções em busca de uma conexão mais profunda.

6. Amor e Passagem do Tempo
A inevitabilidade do envelhecimento e a passagem do tempo são temas que permeiam suas obras. Messias reflete sobre como o tempo molda nossas experiências e expectativas, levando à contemplação sobre a vida e suas transições.

A transformação do amor em sinfonia em Messias se relaciona com Vinícius de Moraes, especialmente em seus poemas sobre o amor, onde a paixão é exaltada e a música da vida é uma constante. A intensidade emocional é um tema comum.

7. Resistência e Justiça
A luta do povo contra a tirania nas trovas de Messias é um eco das obras de Castro Alves, que em suas poesias abolia a escravidão e clamava por justiça. A voz do povo e a luta por equidade são traços que conectam os dois poetas.

8. Memória e Solidão
A saudade e a solidão na última trova se conectam com a obra de Mário Quintana, que muitas vezes aborda a passagem do tempo e a melancolia. A memória é um tema recorrente, onde as lembranças se tornam simultaneamente fonte de dor e beleza.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

As trovas de Messias da Rocha oferecem um tapete de temas que exploram a condição humana, a busca pela verdade, e a complexidade das emoções. Através de metáforas e imagens vívidas, o poeta convida à reflexão sobre a vida, o amor, a justiça e a passagem do tempo, fazendo com que as experiências individuais ressoem de maneira universal.

A relação entre arte e verdade nas trovas é complexa e multifacetada. Através da autenticidade, da crítica social e da busca pessoal, o poeta cria um espaço onde a arte se torna um meio poderoso de explorar e revelar verdades sobre a vida, a sociedade e a condição humana.

A busca por sentido e a reflexão sobre a espiritualidade são evidentes. Messias questiona convenções e busca uma conexão mais profunda com o divino, explorando a relação entre fé, dúvida e autoconhecimento.

A vida cotidiana é um cenário frequente nas trovas, onde Messias captura a beleza e a dureza do simples viver. Ele utiliza imagens do cotidiano para refletir sobre questões mais amplas, mostrando como as experiências comuns podem ser profundamente significativas.

Através de uma linguagem acessível e de metáforas poderosas, Messias transforma suas vivências e observações em um diálogo contínuo com o mundo. Suas trovas revelam a fragilidade da esperança diante da realidade, mostrando como as ilusões podem ser tanto um refúgio quanto uma fonte de dor. Essa dualidade é central em sua obra e ressoa na experiência humana, onde a busca por verdades autênticas é frequentemente marcada por desenganos.

Além disso, a crítica social presente em suas trovas não se limita a uma mera descrição das injustiças; ela é um chamado à ação, uma incitação à consciência coletiva. Messias se posiciona como um cronista da vida cotidiana, utilizando seu talento para dar voz aos marginalizados e para questionar as estruturas de poder. Essa abordagem confere às suas trovas uma relevância atemporal, instigando o leitor a refletir sobre seu próprio papel na sociedade.

A espiritualidade, entrelaçada nas suas reflexões, sugere uma busca por conexão e transcendência, evidenciando a luta interna entre fé e dúvida. Essa tensão permeia suas obras, criando um espaço onde a arte se torna um veículo de autodescoberta e de compreensão do mundo.

Em suma, as trovas de Messias da Rocha são um convite à introspecção e à empatia. Elas nos lembram da complexidade da vida, da beleza nas pequenas coisas e da necessidade de confrontar as verdades que muitas vezes evitamos. Ao explorar a intersecção entre o pessoal e o social, o poético e o político, Messias nos oferece uma visão profunda e multifacetada da experiência humana, fazendo de sua obra um legado duradouro na literatura brasileira.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco.vol.1. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Antônio Juraci Siqueira (O parto do poema)

Acordou com um verso atravessado na garganta. Uma frase sonhada ou ditada por alguém durante o sono. Saltou da cama à cata de papel e caneta ou qualquer coisa que servisse para prender o intruso. 

Papel à mão, não encontrou caneta nem lápis nem nada parecido. E o verso ali, incomodando, fazendo cócegas, pedindo luz. 

Correu para o computador e abriu uma página. Nada mais assustador que uma página em branco quando não se sabe direito o que escrever. Mas ele sabia, ele tinha um verso. E não era um verso qualquer, era um decassílabo. Daria um soneto, um poema épico ou mesmo uma composição em versos livres, jamais uma trova. 

Resolveu jogar na tela a frase nua e crua como quem joga um anzol na água à espera do peixe que virá ou não. Ou de quem aventura-se por um caminho que não sabe aonde vai dar. O verso, agora digitado, estava ali a espreitá-lo, desafiador, pedindo outro: “Esta casa que habito não é minha...” Que diabo de casa era essa se a que morava era sua, sim senhor, comprada em suadas prestações. Seria uma metáfora sugerindo o mundo, o corpo, a palavra? Como é que um verso chega assim, de repente, sem pedir licença, sem dizer a que veio? 

Já ia deletar o desaforado quando é literalmente atropelado por outro que afirmava: “tampouco os versos que te dou, são meus”. Coisa mais besta, pensou. Como não são meus se eu é que os concebo. Se não são meus, são de quem? 

A resposta não se fez por rogada e veio num jorro, clara e definitiva fechando um quarteto: “São como a chuva, o mar, a erva daninha: / frutos do mundo, dádivas de Deus.” Pronto! Estava fechado o primeiro quarteto! Possesso de poesia, partiu para o segundo e em seguida para os tercetos, trazendo à luz, guiado por força estranha, mais um soneto.

Samuel da Costa (As minhas páginas em branco)

Eu não tenho escrito nada de interessante ultimamente. Nada tem acontecido de uns tempos para cá. As páginas em branco se sucedem em um ritmo diário impressionante, uma atrás da outra e dia após dia. Eu chego até a não me reconhecer mais, uma tragédia, íntima e pessoal, um fato lamentável! 

Nem mesmo as pequenas tragédias do cotidiano, já não me inspiram mais. E meu jardim outrora florido, agora não passa de um deserto árido e sem vida. No céu as nuvens brancas, as estrelas, os astros e a lua parecem umas com as outras. As pessoas parecem umas com as outras. Já não reconheço mais minha pena, outrora cheia de mágoas, ressentimentos e iras. 

A minha verve, agora parece conformada com as coisas, burocratizou-se e já não sonha mais com os impossíveis da vida. Já não tem aquela velha sanha avassaladora de quem vai mudar o mundo para melhor. Minha pena preferiu esconder-se no cotidiano e o meu íntimo diz: ‘’— Hoje vou escrever qualquer coisa, porque qualquer coisa está verve, qualquer coisa está bom!’’

Como se vida não fosse um desenrolar de fatos novos. Fatos curiosos a serem vistos em ângulos diferentes, de várias formas. E em cada letra, a cada palavra uma descoberta, uma releitura da realidade. De como cada um vê e vive a vida à sua maneira, mas hoje as coisas estão assim mortas. Um arremedo de fatos novos que cheiram ao passado. Em suma muda-se o título, recompõe-se o texto e nada, nada acontece. Mas o que importa mesmo? Mesmo porque eu não tenho o ofício de escrever. Muito menos tenho o hábito de escrever bons textos!

(Fragmento do livro “Uma flor chamada margarida”, de Samuel da Costa)

Fonte: Texto enviado pelo autor. 

O nosso português de cada dia (Expressões) = 7

(SER UMA) DIVA
Mulher importante, de muito talento no teatro, no cinema ou na ópera.

O termo vem do latim diva, que popularizando-se no italiano diva, que significa deusa. Daí quando dizemos que uma mulher, em alguma área, é uma diva, é como se disséssemos que é uma deusa naquilo que faz.

DOIS PESOS, DUAS MEDIDAS
Tratamento diferenciado entre pessoas quando a situação exigia o mesmo tratamento.

As balanças antigas eram formadas por duas bacias presas por correntes às pontas de uma travessa de metal ou madeira. Numa das bacias eram colocados os produtos para comercialização e, na outra, pesos de metal. Quando atingissem o equilíbrio, marcado pelo fiel (agulha de metal que indicava o meio da travessa), sabia-se o peso do produto a ser adquirido. No entanto, muitos comerciantes desonestos usavam um peso e uma medida para a hora da aquisição da mercadoria e outro para a hora da venda. Lucravam, portanto, com a
venda e com a desonestidade.

DORMIR NO PONTO
No sentido de perder uma oportunidade. 

A expressão tem origem óbvia. Trabalhadores que levantam muito cedo para tomar ônibus ou bonde para o trabalho são acostumados a dormir durante o trajeto, mas também antes do veículo chegar. Quando isto ocorre, a condução passa e a pessoa a perde. Diz-se aí que perdeu a oportunidade porque dormiu no ponto. 

DOSE PRA LEÃO
Dose grande, difícil de suportar para um homem comum.

A origem também é óbvia: é preciso grande dose de remédio para se tratar um animal tão forte e grande como o leão. A expressão também admite a variação dose para elefante.

DOS MALES O MENOR
Expressão usada para designar que é preciso desejar o menos ruim, em meio a situações muito difíceis,

Sua origem remonta ao fabulista romano Fedro, 15 a. C. - 50 d. C. É a tradução quase literal do latim mínima demais, ou seja, dos males os menores.

DOURAR A PÍLULA
Disfarçar uma situação, dar uma cara boa para uma coisa ruim, ser eufemista.

O termo tem uma origem óbvia. É muita claro que as pessoas, sobretudo as crianças, não gostam de tomar remédios pelo gosto amargo que eles geralmente têm. Começou com os antigos boticários, e se estende até hoje, o costume de dar às pílulas uma aparência bonita para disfarçar seu conteúdo e gosto. A princípio, elas eram embrulhadas em papel brilhante e hoje recebem uma camada de corante.

(REALIZAR) DOZE TRABALHOS
Cumprir tarefas muito exaustivas, que demandam tempo, força e dedicação.

Sua origem é mitológica e está ligada aos trabalhos realizados por Hércules. Os doze trabalhos por ele realizados, sob o comando da deusa Hera e ordem direta de Euristeu, foram:

1. matar o Leão de Neméia: um monstro da cidade de Neméia que devorava pessoas e animais. O herói matou-o asfixiado e fez roupa de sua pele;

2. vencer a Hidra de Lerna: uma cobra de várias cabeças que matava pessoas e devastava plantações. Hércules a matou cortando suas cabeças e queimando os pescoços. A última cabeça foi enterrada e a cobra envenenada com seu próprio sangue;

3. prender o Javali de Erimanto: um animal muito grande que foi vencido pelo cansaço e levado nos ombros pelo caçador;

4. capturar a Corça de Cerineia: um animal forte, grande e muito veloz que possuía chifres dourados. Hércules cansou-a, feriu-a com uma flecha e só aí pôde aprisioná-la;

5. exterminar os Pássaros do Lago Estínfalo: bando de pássaros que exterminavam colheitas na Arcádia e se escondiam em florestas densas. O herói assustou os animais que saíram de seu refúgio e os abateu a flechadas;

6. limpar os estábulos do rei Augias: ali se concentrava um grande rebanho de cavalos e todo o esterco necessário às terras do planeta, Hércules tinha a quase impossível missão de limpar o lugar e ele conseguiu realizar a missão desviando os cursos de dois rios, o Alteu e o Pneu;

7. prender o Touro de Creta: animal furioso que tinha vindo do mar e que, num primeiro momento, contava com a proteção do rei Minos, mas foi cansado e capturado por ele. Mais tarde, o animal foi morto porTeseu com a ajuda de Ariadne;

8. acalmar as Éguas de Diomedes: quatro éguas carnívoras que devoravam pessoas, foram acalmadas quando Hércules lhes deu o próprio dono, Diomedes, para que comessem;

9. conquistar o Cinto da Rainha Hipólita: o objeto era o símbolo do poder da rainha sobre seu povo, as Amazonas. Hércules havia convencido a rainha Hipólita a ceder-lhe amistosamente o cinto, quando a deusa Hera, disfarçada, incitou as amazonas à luta. Na batalha que se seguiu, as Amazonas foram derrotadas, e Hércules conseguiu o cinto. Segundo algumas versões, a rainha Hipólita morreu durante a luta, atingida pelo próprio Hércules;

10. capturar os Bois de Gérion: Gérion era um gigante de três cabeças e corpo triplo, filho de Crisaor e da oceânide Calirroe, possuidor de enormes rebanhos de bois "vermelhos", um grupo de animais preciosos que viviam na ilha de Eriteia. Hércules enfrentou primeiramente Ortros e Eurítion, e liquidou-os sem maiores dificuldades. Atacado a seguir pelo próprio Gérion, primeiro derrubou-o com suas flechas, e a seguir matou-o sem dificuldade, a golpes de clava. Em Micenas,  Héracles entregou os bois que restaram a Euristeus, e o rei sacriflcou-os a Hera;

11. aprisionar o Cão Cérbero (animal que guardava a porta do inferno) e que o herói teve de capturar sem o uso de suas armas, apenas com suas mãos;

12, colher as Maçãs de Ouro das Hespérides: frutos proibidos de serem apanhados e que estavam sob a guarda de um dragão de cem cabeças, as frutas seriam dadas de presente no dia do casamento de Hera e Zeus, Hércules fez o animal adormecer e o matou. Conseguiu esta façanha com a ajuda dos deus Atlas.

(MÉTODO) DRACONIANO
Atitude excessivamente rigorosa, muito dura, na qual não é levada em conta a equidade.

O termo vem de Dracon, legislador ateniense do século VII a. C, a quem foi dada a missão de transformar em leis escritas o que antes eram apenas costumes. O propósito do legislador era acabar com as interpretações pessoais de cada crime feitas pelos aristocratas. No entanto, suas leis eram severas demais e previam para quase todos os crimes a pena de morte.

DURA LEX, SED LEX
A lei é dura, mas é lei.

A expressão é muito usada por advogados e estudantes de Direito no mundo todo, pois versa sobre a necessidade que as pessoas têm de aceitar os mandos da lei, sejam eles quais forem. 

Sua origem, de acordo com a tradição, propõe que teriam sido as últimas palavras de Sócrates, 470 a. C - 399 a. C, antes de tomar a cicuta, não lamentando seu destino, apenas aceitando-o. Óbvio que a expressão foi traduzida para o latim e assim ganhou notoriedade entre os romanos e seus conquistados.

Fonte: Nailor Marques Jr. Será o Benedito?: Dicionário de origens de expressões. Maringá/PR: Liceu, 2002.

Recordando Velhas Canções (Paz do meu amor)


(1963)

Compositor: Luiz Vieira

Você é isso: 
Uma beleza imensa,
Toda recompensa 
de um amor sem fim.

Você é isso: 
Uma nuvem calma
No céu de minh'alma; 
é ternura em mim.

Você é isso: 
Estrela matutina,
Luz que descortina 
um mundo encantador.

Você é isso: 
É parto de ternura,
Lágrima que é pura, 
paz do meu amor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A Serenidade do Amor em 'Paz do Meu Amor'
A canção 'Paz do Meu Amor', interpretada pelo artista Luiz Vieira, é uma ode à tranquilidade e à beleza que o amor traz para a vida de uma pessoa. A letra da música descreve o ser amado como uma fonte de luz e serenidade, utilizando metáforas naturais e celestiais para expressar a profundidade dos sentimentos do eu lírico.

No primeiro verso, o amado é comparado a uma 'beleza imensa', sugerindo uma admiração que vai além do físico, alcançando a essência da pessoa. A 'nuvem calma' e a 'estrela matutina' são imagens que evocam paz e um novo começo, respectivamente. Essas metáforas reforçam a ideia de que o amor tem o poder de transformar e iluminar a vida de quem ama, trazendo um sentido de renovação e esperança.

A música também toca na pureza e na sinceridade dos sentimentos, como visto na expressão 'lágrima que é pura'. O amor é apresentado como algo que transcende o cotidiano, trazendo paz e um refúgio emocional para o eu lírico. 'Paz do Meu Amor' é, portanto, uma celebração do amor como fonte de calma e contentamento, um abrigo seguro onde o eu lírico encontra consolo e alegria.  https://www.letras.mus.br/luis-vieira/546692/ 

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 56: Planeta Azul

 

Monsenhor Orivaldo Robles (Eu desisto)

Afirmação até certo ponto ufanista assegura: “Eu sou brasileiro; não desisto nunca”. Tentei levá-la à prática. Foi quando apareceram as faixas de pedestres nas ruas (sinalização horizontal) e, ao lado, placas de advertência (sinalização vertical). Em país civilizado tais placas são dispensáveis. Basta a sinalização horizontal. Mas nós somos diferentes. Abracei a quixotesca tarefa de ajudar pessoas a atravessar a rua. Contribuiria para criar entre nós um clima urbano mais cortês. Do que, aliás, Maringá precisa. Tolo que sou e cabeçudo, ainda por cima, comecei a solitária campanha de levar à observância da faixa de pedestres. Andando a pé por onde não havia sinal luminoso, eu levantava um braço para indicar minha intenção de cruzar a rua, enquanto, com a outra mão, apontava as listras brancas no asfalto. Ocasiões houve em que motoristas educadamente me cederam a preferência. Noutras, a reação foi menos amigável. Dirigiram-me buzinadas raivosas. Ou me homenagearam com gentilezas do tipo “Quer morrer, seu louco?” ou “Está bêbado”?

Quando ao volante ou guidão de veículo motorizado, sentimo-nos donos do mundo. A cidade toma contornos de nosso quintal. Dela desfrutamos conforme nosso alvedrio. Admito que por descuido já invadi faixa de pedestres. Estou-me esforçando para não repetir. Procuro não esquecer que nascemos pedestres, não motorizados. Não é justo entregar a cidade aos carros tornando um inferno a vida das pessoas. Estas são anteriores a eles. Quem chegou primeiro tem direito assegurado.

Por algum tempo sustentei uma inútil disputa. Não contra moinhos de vento, mas contra bólidos motorizados capazes de levar à morte ou ferir com gravidade. Reconheço que me comportei ingenuamente. Não pretendo engrossar com meu nome a extensa lista de vítimas. Cansei. Venho honestamente depor as armas. Aceito a derrota. Sou brasileiro, mas eu desisto.

A gota d’água, que fez entornar o copo, foi vertida por bela e desconhecida jovem, semana passada, numa avenida binária. Ela vinha a uma distância de bons vinte metros. Quatro placas (uma de cada lado de ambas as vias) apontavam-lhe a faixa de pedestres. Pouco antes, dois avisos. Um tinha alertado: “50 km”. A seguir, outro: “Pare”. Ergui bem alto um pacote branco que tinha na mão e entrei na faixa. Julguei seguro. Tanto que um furgão se deteve. Impossível não me ver. A moça – não acredito que nos 50 km/h recomendados – não aliviou. Para não me ferir, teve que frear. Mas parou em cima da faixa; eu passei na beiradinha. Com a face rubra de susto e raiva, me repreendeu gritando: “O senhor não pode ir-se jogando na faixa. Uma hora, o senhor vai morrer por causa disso”. Foi o que falou, mas inconscientemente talvez pensasse outra coisa. Assim como: “Eu sou jovem, bonita, rica e dirijo um carro novo. Você é velho, feio, pobre e anda a pé. Eu sou mais importante do que você. Como ousa atrapalhar minha passagem”?

Não me joguei, apenas passei sobre a faixa, que não é nenhuma Brastemp, mas ainda está visível no asfalto. Se bem que umas mãos de tinta não lhe fariam mal. E não custam nenhuma fortuna.

Desculpe, moça bonita. Você está certa. Pedestre tem mesmo que sempre dar a vez para os veículos. Dirija seu precioso carro como quiser. Para que encher sua elegante cabecinha com ridículas normas de trânsito, não é mesmo?

O nosso português de cada dia (Expressões) = 6


(SABER) DE COR

Expressão usada quando alguém tem um assunto claramente guardado na memória.

Tem origem no latim “cor” que quer dizer coração. Portanto, saber de cor é saber pelo coração, pelos sentidos. Em francês diz-se savoir par coeur, literalmente saber pelo coração.

DEEM-ME UMA ALAVANCA E EU ERGUEREI O MUNDO

A frase é do sábio Arquimedes, 287 - 212 a. C. Foi ele um dos primeiros pensadores que começou a compreender a importância das máquinas para realização de trabalhos, lembrando que o esforço físico era considerado indigno de cidadãos livres no Mundo Antigo. Ele estudou , descobriu e formalizou as leis da mecânica, tendo inventado o sistema de roldanas, a alavanca e muitas outras máquinas. Certa feita, querendo ser compreendido no alcance de seus inventos, disse: "Deem-me um outro lugar onde eu possa colocar-me, e uma alavanca de tamanho adequado, e eu deslocarei a Terra". Baseado no princípio da alavanca, ele inventou a catapulta, que acabou por ajudar, e muito, o seu povo a resistir à invasão dos romanos.

DEITAR E ROLAR

Fazer a festa, divertir-se a valer sem nenhuma preocupação, aproveitar a situação da melhor maneira possível.

A expressão é nórdica. Está ligada às antigas tradições pré-natalinas. Muitos costumes têm a sua origem em antigas festas populares pagãs, quando as celebrações realizadas ao romper do inverno rogavam aos deuses a volta plena da natureza "adormecida" na próxima primavera. Um cortejo - bem barulhento -, se formava para afastar os maus espíritos e os fantasmas. As crianças desejavam que nesta data a cidade estivesse coberta de neve para que pudessem construir bonecos de neve, traçar batalhas brancas ou, simplesmente, deitar e rolar sob os flocos frescos, num cenário feito conto de fadas que modificava radicalmente a paisagem urbana, normalmente cinza e sem graça.

DE VENTO EM POPA

Usada quando as coisas vão muito bem, tudo está favorável.

A metáfora é quase literal. Popa é a parte de trás dos navios. Se imaginarmos um barco a velas, numa época em que a propulsão de barcos grandes era apenas assim, será fácil entender o que significava ter o vento a favor, de trás para diante. Os ventos favoráveis são chamados de barlaventos.

DIABO A QUATRO

Confusão generalizada, várias pessoas falando e/ou fazendo muitas coisas ao mesmo tempo sem que ninguém se entenda.

Nos antigos autos medievais (peças de teatro simples, de um só conflito - normalmente o bem contra o mal - de caráter religioso e moralizante e feita em versos), apareciam normalmente quatro personagens vestidas de diabos fazendo horríveis barulhos com o intuito de aterrorizar os espectadores, alertando-os sobre as penas infernais a que todos estavam sujeitos.

DIAS DA SEMANA

Por que os dias da semana são chamados de segunda, terça, quarta, quinta e sexta-feira, sábado e domingo? Esta, talvez, seja uma pergunta feita por quase todo mundo.

A origem dos nomes em português é essencialmente religiosa:

Domingo: vem do latim Dominus, o dia do Senhor, seria então o primeiro dia de festividade religiosa, da feria, para nós a primeira feira; segunda a sexta, as outras feiras ordenadas; e sábado viria do latim sabbatu, que, por sua vez, viria do hebraico shabbath, significando descanso semanal.

As outras línguas europeias deram aos dias origem pagãs, relacionando os nomes aos astros.

Fonte: Nailor Marques Jr. Será o Benedito?: Dicionário de origens de expressões. Maringá/PR: Liceu, 2002.

Recordando Velhas Canções (Máscara negra)


(Marcha/carnaval, 1967)

Compositores: Zé Keti e Pereira Matos

Tanto riso, oh quanta alegria
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando pelo amor da Colombina
No meio da multidão

Foi bom te ver outra vez
Tá fazendo um ano
Foi no carnaval que passou
Eu sou aquele pierrô
Que te abraçou
Que te beijou, meu amor
Na mesma máscara negra
Que esconde o teu rosto
Eu quero matar a saudade
Vou beijar-te agora
Não me leve a mal
Hoje é carnaval
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A Saudade e o Carnaval: A História por Trás de 'Máscara Negra'
A canção 'Máscara Negra', interpretada pelo icônico sambista Zé Keti, é um clássico do carnaval brasileiro que traz em sua essência a mistura de alegria e melancolia tão característica dessa festa popular. A letra da música descreve o cenário de um baile de carnaval, onde a figura do Arlequim chora por seu amor não correspondido pela Colombina, personagens tradicionais da Commedia dell'arte italiana que foram incorporados ao carnaval.

O eu lírico da canção se identifica como um pierrô, outro personagem clássico, que relembra um encontro amoroso ocorrido no carnaval do ano anterior. A 'máscara negra' que dá título à música pode ser interpretada tanto literalmente, como parte do disfarce carnavalesco, quanto metaforicamente, representando os sentimentos ocultos e a saudade que o narrador sente. A máscara serve como um elemento de anonimato que permite ao pierrô expressar seu amor e matar a saudade através de um beijo, aproveitando a liberdade que o carnaval proporciona.

A música, portanto, captura a dualidade do carnaval: a euforia coletiva e a intimidade dos encontros fugazes. 'Máscara Negra' é um retrato da efemeridade das relações humanas, da alegria passageira e da saudade que permanece, tudo sob o véu da festividade e do anonimato que o carnaval oferece.

Ainda prestigiado pelo sucesso do show “Opinião”, Zé Kéti ganhou o carnaval de 67 com a marcha-rancho “Máscara Negra”. Reproduzindo o lirismo suave que caracteriza o gênero, a composição trata do reencontro de um Pierrô com uma Colombina que conhecera no carnaval anterior.

E, ao contrário de outras canções inspiradas na commedia dell’arte, aqui é o Arlequim quem chora pelo amor de colombina. Tendo acontecido numa época em que a música carnavalesca tradicional saía de moda, o sucesso de “Máscara Negra” pode ser considerado uma façanha.

A propósito, este sucesso chegou a gerar uma polêmica sobre a co-autoria da composição, que seria de Deusdedith Pereira Matos e não de seu irmão Hildebrando, conforme consta na edição. Mas, como os dois já haviam morrido na ocasião, a questão não teve maiores consequências, entrando “Máscara Negra” para o repertório de Dalva de Oliveira como um de seus últimos sucessos 
Fontes:
A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34.

domingo, 1 de setembro de 2024

Varal de Trovas n. 610

 

Newton Sampaio (Funeral)

Damião entrou de mansinho no quarto abafado. Era mesmo verdade. O amigo não poderia resistir mais tempo. Trazia sulcos grandes no rosto. E os olhos, outrora irrequietos quando anunciavam um novo epigrama, restavam mortiços nas órbitas salientes.

O doente notou-lhe a chegada. Esboçou um sorriso em que punha toda a gratidão. E disse, balbuciante:

— Você... Meu velho amigo.

— É. Eu vim, Frederico. Eu vim.

— Muito... obrigado...

— Não precisa agradecer, não. Mas não fale tanto, Frederico. Você se vai cansar à toa. É preciso repouso, ouviu?

— Não quero.

— Descanse sim. Vai ficar bom mais depressa.

— Qual! Desta vez...

Passou a língua nos lábios secos.

— Chegou o meu dia.

— Ora. Nem diga isso.

Damião se levantou, a troco de nada. Fazia o possível para não chorar.

Frederico gemeu fundo. A testa brilhava, orvalhada. E o corpo todo queria pegar fogo, de tão quente.

Pediu água, numa angústia.

— Quero água, Damião. Bem... gelada.

— Paciência, Frederico. Não pode ser, não.

— Eu quero... Quero.

— Seja forte, menino.

Limpou-lhe o suor brandamente, e encostou um pano molhado na boca do enfermo.

— Eu quero é água.

— Logo. Logo você vai beber. Logo mais.

Revolvia-se, a todo instante, o Frederico.

Do lado de fora do quarto, a cidade sofrendo o sol medonho de dezembro. E do lado de dentro, a febre consumindo, consumindo...

De repente, levou a mão à nuca.

— Aqui.

— Que é?

— Aqui.

Arregalou os olhos.

— Vai estourar. É agora!... Ele vai estourar, já!

Pensava que ia arrebentar um furúnculo na nuca. Depois era a cabeça que estava aberta de lado a lado. A cabeça subiu, subiu. Pegou a cabeça. Atravessou o dedo no ouvido, e o dedo veio sair nos olhos. Os olhos saltaram. Ficaram dançando no ar. Caíram no chão. Era olho dançador! Era só o direito.

Mas a mulher chegou. Pisou, com raiva. Só viu água. A água estava afogando. Então, o furúnculo rompeu na ponta do nariz. Bem na pontinha. O nariz ficou compridíssimo. Chegou a bater na janela. Montou no nariz e saiu correndo. Voaram pela janela, ele mais o nariz. Mas a calçada era de quadradinhos. Deu com o nariz na pedra. Daí entrou na varanda. Socou um tapa no tio... O tio, que balançava na rede, ficou furioso. Deu-lhe uma sova tremenda. Foi aquela sova por causa do roubo da marmelada. Ora, a marmelada! Enterrou o focinho nela.

Encheu-se dela. E a marmelada virou língua. Uma língua danada, que lambia. Que lambia sempre.

Quando retomou consciência, caiu em prostração.

Damião era que sofria tanto como o amigo. Viveu o resto da tarde ali na beira da cama.

À noite, a febre diminuiu. A velha Luísa achava que aquela era a visita da saúde. A última visita. Mas não dizia, não. Podia assustar o moço...

— Você vai sarar logo. Tenho certeza disso.

— Por que, Damião? Não vou prestar mais pra nada...

— Nem fale.

— Eu sei...

Tirou o cabelo dos olhos.

— Sabe, Damião? Sou um caso perdido. Até à minha consciência eu menti sempre.

— Nada disso.

— Eu me arrependo. Fui um inútil. Paciência! Se acaso existisse uma outra vida, seria capaz de me regenerar, acredite.

Piorou, na manhã seguinte. Um febrão!

— Estou me queimando. Não aguento...

— Coragem, menino.

— Mas eu não quero morrer, ouviu? Não quero não... Me salve, Damião. Por favor!

Apenas passou a crise, tentou brincar.

— A bondade, meu amigo, é monótona. A inteligência é incômoda...

— E o romantismo é cretino (completou o outro, recordando as boas tertúlias do passado).

— Isso mesmo.

Fitaram-se longamente.

— Dê-me a sua mão. Como vou morrer logo... quero despedir-me... do único amigo que deixo na terra.

— Bobagem, Frederico.

— Dê-me sua mão. Assim.

E falou, pausadamente, como se estivesse são.

— Cria de alugado, hein? Você, cria de alugado... Lembra-se da palavra de Goethe? Ele falou mais ou menos assim: “Não creia nunca esquecer as dores da meninice...” Está certo?

— Sou capaz até de dizer a página.

Frederico quis sorrir. Mas uma dor aguda cortou-lhe a intenção. Gemeu alto. E quando dona Luísa entrou no quarto o coração do sulista não queria trabalhar mais...

Damião gastou todas as economias no funeral do amigo. Assim mesmo teve de encomendar um de classe inferior.

Os conhecidos, convidados pelo escriturário, prometeram ir, mas não foram.

O morto não deixara mesmo outras amizades. Até mesmo a Jeanette fujona, fora diabólica...

O carro levava duas coroas. E, atrás das coroas, caminhava Damião, em silêncio.

Dona Luísa — a pobre! — arquejava como quê! Só as vizinhas janeleiras é que estavam achando bom o enterro. Porque todo o pessoal as olhava — as únicas moças do acompanhamento.

Nas pernas do grande amigo do Frederico enroscou-se o Chouriço. O cachorro também sabia sentir a morte do dono.

Chouriço ganiu, longamente.

E Damião jurava que a marcha fúnebre de Chopin não podia ser mais triste, mais angustiada do que o ganido daquele vira-lata cheio de pulgas…

(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 12/11/1936)

Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Apanhei-te cavaquinho)


(Polca, 1915)

Compositores: Ernesto Nazareth e Ubaldo Mangione

Ainda me lembro,
Do meu tempo de criança,
Quando entrava numa dança,
Toda cheia de esperança,
De chinelinho e de trança,
Com Mané e o Zé da França,
Nunca tive na lembrança,
De rever esse chorinho.

E hoje ouvindo,
Neste choro a voz do pinho,
Relembrando o bom tempinho,
Da mamãe e do maninho,
Hoje sou ave sem ninho,
Sem família, sem carinho,
Mas sou bem feliz ouvindo,
O "Apanhei-te Cavaquinho"!

Hoje cantando o "Apanhei-te Cavaquinho",
Fico louca, fico quente,
Fico como um passarinho,
Sinto vontade de cantar a vida inteira,
Esta vida, eu levo de qualquer maneira,
Ouvindo a flauta, o cavaquinho e o violão,
Eu sinto que o meu coração,
Tem a cadência de um pandeiro,
Esqueço tudo e vou cantando com jeitinho,
Este chorinho,
Que é muito Brasileiro !

Hoje cantando o "Apanhei-te Cavaquinho",
Fico louca, fico quente,
Fico como um passarinho,
Sinto vontade de cantar a vida inteira,
Esta vida, eu levo de qualquer maneira,
Ouvindo a flauta, o cavaquinho e o violão,
Eu sinto que o meu coração,
Tem a cadência de um pandeiro,
Esqueço tudo e vou cantando com jeitinho,
Este chorinho,
Que é muito Brasileiro !...
(bis a 1ª e 2ª)
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A Nostalgia e a Alegria do Chorinho em 'Apanhei-te Cavaquinho'
A música 'Apanhei-te Cavaquinho', é uma celebração nostálgica e alegre do chorinho, um gênero musical tipicamente brasileiro. A letra remete às memórias de infância da narradora, que se recorda com carinho dos tempos em que dançava cheia de esperança, com chinelinho e trança, ao som do chorinho. Essas lembranças são evocadas com uma mistura de saudade e alegria, destacando a simplicidade e a felicidade dos momentos passados com a família e amigos.

No presente, a narradora se encontra sem família e sem carinho, mas encontra consolo e felicidade ao ouvir e cantar o chorinho 'Apanhei-te Cavaquinho'. A música se torna um refúgio, uma forma de reviver os bons tempos e de sentir-se viva e feliz novamente. A letra expressa como a música tem o poder de transformar o estado emocional da narradora, fazendo-a sentir-se como um passarinho, livre e leve, com vontade de cantar a vida inteira.

A canção também exalta a brasilidade do chorinho, destacando instrumentos típicos como a flauta, o cavaquinho e o violão, e a cadência do pandeiro. Ademilde Fonseca, conhecida como a Rainha do Chorinho, traz uma interpretação vibrante e cheia de vida, que captura a essência do gênero musical. A música é uma ode à cultura brasileira e à capacidade da música de trazer alegria e conforto, mesmo nos momentos mais difíceis.

A polca "Apanhei-te Cavaquinho" é a segunda composição mais gravada de Ernesto Nazareth, perdendo apenas para "Odeon". De andamento rápido (o autor recomendava semínima = 100 para as polcas e semínima = 80 para os tangos) é muitas vezes executada em velocidade vertiginosa por músicos exibicionistas, que presumem assim mostrar habilidade virtuosística.

Composta em 1915 e gravada no mesmo ano pelo grupo O Passos no Choro, "Apanhei-Te Cavaquinho" foi dedicada a Mário Cavaquinho (Mário Álvares da Conceição), um exímio cavaquinista, amigo de Nazareth (segundo Ary Vasconcelos, ele inventou o cavaquinho de cinco cordas e a bandurra de 14 cordas).

Em 1930 o autor gravou esta composição em disco de grande valor documental, que passou a servir de referência para novas execuções. Já classificado como choro, ganhou letra de Darci de Oliveira, em 1943, para ser gravado por Ademilde Fonseca.
Fontes: Cifrantiga