domingo, 24 de novembro de 2024

Ronaldo Henrique Barbosa Júnior* (A um passarinho)


Mal pus os pés no chão, ouvi um barulho diferente vindo da janela da sala de estar. Eu ouvia periódicas batidas no vidro, no que me apressei em afastar as cortinas para descobrir a causa de tal barulho.

A manhã ainda guardava uma névoa da madrugada, e o sol era apenas uma fresta a dar um tom azul-grisalho para o céu, ostentando suas dimensões nas peculiaridades infinitas: cada canto era um novo sabor a inundar os olhos, alumiando as retinas recém-acordadas.

O visitante que batia no vidro tinha a beleza de uma pétala e a efemeridade de uma gota de orvalho: um canário vinha chamar a atenção nas vidraças repleto de fugacidade a ensolarar aquele pedaço de manhã.

Minha primeira reação foi de espanto; não se tratava de uma visita típica, e o sabor da primeira vez possui nuances de felicidade.

Desde então, recebo-o todos os dias por volta do mesmo horário, como se viesse a mando do sol para anunciar a vida, repleto da leveza e da altivez própria dos pássaros, sempre trazendo o aprazimento que incendeia o espírito com seus manifestos trilantes.

Tenho para mim que ele vem me visitar por uns versos: a inspiração bate asas e toca com o bico na janela de casa, voando para o fio com sua beleza fundamental quando me aproximo para lhe contemplar.

Eu, no entanto, dou-lhe esta prosa na esperança de que retorne na próxima manhã e me traga as boas-novas do dia, extraindo de mim um primeiro riso a caçoar do tempo, posto que o vento me traz um suspiro de enlevo a me tornar locupleto.

As aves são fascinantes; fico a observar os serelepes passarinhos a sobrevoar a praça; os inquietos cantores no alto das árvores; e até aqueles que, podendo voar, arriscam-se a passear no chão, em pulinhos sem rumo à procura de algo para beliscar.

Meu visitante é um desses tantos pequeninos – fragmento de natureza - a traduzir seus sentimentos em cantos, numa pureza intocável, vítima da selvageria cega, incapaz de poluir a própria alma com mazelas do mundo: ele absorve as misérias e as dissipa pelo universo, talismã que é.

Queria eu poder não ser notado para abrir a janela e observá-lo calmamente mais de perto, pois pedaços do céu não ficam por muito tempo: esvoaçam no primeiro olhar de um admirador terreno - mal sabe que o quero era liberdade!

Há quem não entenda a beleza das aves; presas em gaiolas, são bibelôs a simbolizar o cárcere, pois desconhecem os infinitos azuis e cantam pela alforria num divino lamento. Soltas, guardam latente o lirismo que traduz a alma, são versos insensatos a nos advertir sobre o valor da existência - basta ter ouvidos para suas batidas na janela.
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* O autor é de Campos dos Goytacazes/RJ

(esta crônica obteve o 3. Lugar no Concurso de Crônicas Adulto Nacional “Foed Castro Chamma”, em 2020, com o tema Aurora)

Fontes: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Vereda da Poesia = Henriette Effenberger (Bragança Paulista/SP)



Sílvio Romero (O Sargento Verde)


Havia um homem rico que tinha uma filha muito formosa. Apareceu uma vez um moço que também era muito bonito, que quis casar com ela. Combinaram o casamento. Mas Nossa Senhora, que era madrinha da noiva, lhe apareceu e disse:

 — Minha filha, tu vais te casar com o cão. Quando for no dia do casamento, depois da festa acabada, teu marido há de querer te levar para casa dele; tu, então, deves dizer a teu pai que só queres ir no cavalo mais magro e feio de todos, e quando chegares a um lugar da estrada onde faz cruz, teu marido há de tomar pela esquerda, tu deves tomar pela direita e mostrar-lhe o teu rosário para ele estourar e sumir-se para o inferno.

Passou-se o tempo. Quando foi no dia do casamento houve muita festa e divertimento, mas a moça estava sempre triste.

Quando chegou a hora da partida veio um cavalo muito bonito e muito bem arreado para a moça se montar. Ela disse ao pai que não queria aquele, e só o mais feio e magro. O pai se espantou muito e não quis concordar, mas afinal foi obrigado a fazer os gostos da filha. Partiram os noivos e quando estavam longe da casa havia no caminho uma encruzilhada, aí o cão quis botar a moça adiante pelo lado esquerdo. Mas a moça disse:

 — Vá o senhor adiante que sabe do caminho de sua casa e não eu que nunca lá fui.

O cão se zangou, mas a moça tomou pela estrada da direita, mostrando-lhe o rosário. O cão estourou, e foi cair nas profundezas, e a moça seguiu a toda velocidade. 

Mais adiante ela cortou os cabelos e vestiu-se de homem, toda de verde. Chegando a um reino, foi servir na guarda do rei com o posto de sargento. Todos a chamavam de Sargento Verde. 

O rei tomou-lhe muita amizade, tanto que quase todas as tardes o convidava para ir passear com ele no jardim. A rainha ficou, em poucos dias, apaixonada pelo Sargento Verde. 

Uma tarde, depois de jantar, tendo-o o rei convidado para passear no jardim, ao passar ele pela rainha, ela lhe disse:

 — Olha, Sargento Verde, que lindos olhos, e que lindo corpo para me divertir contigo!

O Sargento respondeu:

 — Não sou falso a meu rei.

A rainha despeitada levantou-lhe uma injúria ao rei:

 — Saberá Vossa Real Majestade que o Sargento Verde disse que se atrevia a subir e a descer as escadas de palácio montado no seu cavalo a toda a brida, dançando e atirando para o ar três limas, e todas três a caírem num copo.

O rei ficou muito admirado e mandou chamar o Sargento Verde, e contou-lhe o caso. 

O Sargento respondeu:
 
 — Saberá rei meu senhor que eu não disse tal; mas como a rainha minha senhora disse, eu vou fazer.

Saiu muito triste, e foi ter com o seu cavalo e lhe contou tudo. O cavalo disse que ele não se importasse, que no dia marcado fosse sem medo. 

No dia marcado, o Sargento Verde apresentou-se e andou pelas escadas a cavalo, correndo para cima e para baixo, dançando e atirando para o ar três limas e aparando todas três num copo. Houve muitos vivas, e a rainha ficou desesperada. 

Passaram-se vários dias, indo o rei passear de novo com o Sargento Verde no jardim, ao passar ele pela rainha, ela lhe disse:

 — Olha que lindos olhos e que lindo corpo para divertir contigo!

— Não sou falso a meu rei — foi o que ele disse.

A rainha, despeitada ainda mais, levantou-lhe outro acinte, que foi:

 — Saberá Vossa Real Majestade que Sargento Verde disse que era capaz de plantar na hora do almoço uma bananeira no chão do palácio, e, quando fosse na hora do jantar, estar ela deitando cachos com bananas maduras.

O rei mandou chamá-lo e perguntou-lhe se ele se atrevia a tanto, e ele deu igual resposta à primeira e saiu vexado e foi ter com o seu cavalo, que o animou muito. 

No dia seguinte, na hora do almoço do rei, o Sargento Verde levou um broto de bananeira, que plantou e na hora do jantar estava caindo de carregado de bananas madurinhas. 

Houve muitos vivas e muita saúde, e a rainha ficou ainda mais desesperada. 

Passados mais alguns dias, houve novo passeio do rei e do sargento no jardim, e novo oferecimento da rainha, e igual resposta do moço. A rainha armou-lhe novo acinte, que foi:

 — Saberá Vossa Real Majestade que o Sargento Verde disse que se animava a andar montado no seu cavalo no largo do palácio, por cima de duas fileiras de ovos sem quebrar um só.

Segue-se outra cena igual às precedentes. 

No dia seguinte o Sargento Verde caminhou diante de muita gente, por cima das fileiras de ovos sem quebrar nenhum. Houve muita festa. A rainha ainda mais apaixonada ficou. 

Passados alguns dias, ela armou-lhe nova falsidade, que foi:

 — Saberá Vossa Real Majestade que o Sargento Verde disse que se atrevia a ir buscar no fundo do mar a sua irmã, a princesa encantada.

Chamado pelo rei, o Sargento Verde ficou triste, mas não negou, e foi falar com o seu cavalo que lhe disse:

 — Não tema nada, muna-se minha senhora de um garrafão de azeite doce, de um punhado de sal e de uma carta de alfinetes, monte em mim, chegue na praia, e com a sua espada corte as ondas em cruz, que as águas se hão de abrir; entre, bote a moça na garupa, e largue para trás a toda a pressa e bote sentido nas três palavras que a moça disser no caminho. Tenha cuidado com o bicho feroz que guarda a princesa, porque ele há de persegui-la atrás, largue-lhe o sal e a carta de alfinetes.

Chegado o dia, o Sargento Verde preparou-se e se pôs a caminho montado no seu cavalo, fez tudo como lhe disse o cavalo, servindo-se da espada para abrir, e do azeite para clarear o mar. Tirou a moça e largou-se para trás a toda a brida. Ao sair do mar a moça disse "Já!" — e o Sargento tomou nota. Estando um pouco adiante olhou para trás e avistou o bicho que vinha danado correndo, largou o sal e logo gerou-se no mundo um nevoeiro tamanho que o bicho não pôde romper. Continuou; adiante a moça encantada disse: "Bela!"


E ele tomou nota. Olhando para trás, lá vinha o bicho outra vez; largou a carta de alfinetes e gerou-se uma mata serrada de espinhos e a fera não pôde passar. Já perto do palácio a moça disse:

 — Tudo! — ele de novo tomou nota, e chegaram ao fim da viagem, havendo muita alegria e muitas festas, e a rainha ainda mais perdida ficou pelo Sargento Verde.

No entanto a princesa encantada não falava, estava muda. 

Em pouco tempo a rainha levantou um quinto acinte ao Sargento Verde, e foi dizer ao rei que ele se atrevia, segundo dissera, a dar fala à muda. O Sargento Verde foi, como sempre, ter com o seu cavalo, que lhe disse:

 — Não tenha medo, na hora do almoço dê com uma corda na moça, até ela dizer qual foi a primeira palavra que disse ao sair do mar, e o que ela quer dizer. No jantar faça o mesmo, e indague pela segunda e na ceia o mesmo e indague pela terceira, e a princesa ficará falando.

Assim fez ele. No almoço do dia seguinte meteu a corda na princesa com as palavras:

 — Fale, moça! Qual a palavra que disse ao sair do mar?

A moça calada, e ele a dar-lhe, até que ela disse "Já!"

— O que quer dizer?

A muito custo ela disse:

 — Já quer dizer “já estou livre de tantos trabalhos.”

No jantar houve o mesmo, e a princesa disse:

 — Bela! quer dizer “são duas donzelas, ela e o Sargento Verde que se chama Lucinda.”

Na ceia o mesmo, e ela disse a última palavra, que quer dizer:

 — Tudo! Se Lucinda fosse homem, há muito el-rei, meu irmão, seria logrado.

Houve muito espanto de tudo aquilo. 

O Sargento Verde voltou aos trajes de moça, a princesa ainda ficou no palácio e falando, e o cavalo do Sargento desencantou-se num lindo moço. 

Este se casou com a princesa desencantada, o rei se casou com Lucinda, porque a rainha morreu amarrada em dois burros bravos, por ordem de seu marido.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado em 1883.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

sábado, 23 de novembro de 2024

Erigutemberg Meneses (Cascata de versos) 02

 

José Feldman (A Última Noite de Natal)

Era uma véspera de Natal na cidade. As luzes coloridas piscavam nas janelas, e as vitrines das lojas estavam adornadas com enfeites brilhantes e delicadas árvores de Natal, mas para João, um homem idoso de cabelos brancos e mãos enrugadas, tudo isso parecia distante, quase irrelevante. Ele caminhava lentamente pelas ruas, seu coração pesado com a solidão que o acompanhava como uma sombra.

As ruas estavam repletas de famílias, risadas e abraços calorosos, mas João se sentia como um espectador em um mundo que não o incluía. Ele parou em frente a uma vitrine que exibia uma bela mesa posta, com pratos finamente decorados e presentes embrulhados com cuidado. A cena o fez lembrar de tempos passados, quando sua casa estava cheia de vida e alegria, repleta de vozes familiares e risadas. Agora, tudo o que restava eram memórias.

Continuou seu passeio, observando as luzes refletindo na água acumulada em poças. O cheiro de pinheiro e canela pairava no ar, misturado ao aroma de castanhas assadas e chocolate quente. Cada passo que dava parecia ecoar em seu coração, um lembrete doloroso de sua solidão. Ele desejou que, ao menos, alguém o reconhecesse, que alguém o olhasse nos olhos e dissesse que ainda se importava.

Após algumas horas vagando pelas ruas, ele decidiu voltar para casa. A caminho, as paredes de sua pequena casa pareciam ainda mais frias. Assim que abriu a porta, uma onda de calor e amor o atingiu. Sua fiel companheira, Mila, uma cachorrinha de velhos cabelos grisalhos, com seus 17 anos de idade, estava à espera. Os olhos dela brilhavam com alegria ao vê-lo, e ela foi em direção a seus pés, abanando o rabo com entusiasmo. Para João, Mila era a única que sempre esteve ao seu lado, que nunca o abandonou.

Sentou-se no sofá, e Mila se acomodou sobre suas pernas, como fazia sempre. O calor do corpo dela confortava o coração de João, que, mesmo em meio à solidão, encontrava consolo na presença da sua amiga. Ele acariciou sua cabeça, sentindo a suavidade de seu pelo. Mas, à medida que o tempo passava, uma inquietação começou a crescer dentro dele. Algo não parecia certo.

Ele olhou para Mila e, de repente, percebeu que seu pequeno peito não subia e descia. O coração de João afundou. Ele a chamou, mas não houve resposta. Com mãos trêmulas, ele a pegou e a colocou em seu colo, mas a sua fiel companheira não reagiu. O desespero tomou conta dele ao perceber que Mila havia partido.

As lágrimas escorriam pelo seu rosto enrugado enquanto ele a segurava, a dor da perda se misturando à solidão que já o consumia. Ele havia prometido que nunca a abandonaria, que sempre estariam juntos. Agora, ele se sentia perdido, sem saber como seguir em frente.

Com o coração pesado, João, segurando Mila em seus braços, em meio ao luto, começou a rezar. Com a voz embargada, pediu a Deus que o levasse também, que o levasse para estar com sua fiel amiga, onde quer que ela estivesse. Ele não queria viver em um mundo sem ela, sua única companheira que sempre o amou incondicionalmente.

“Meu Deus,” ele murmurou, “leve-me para onde ela está. Eu prometi que nunca a deixaria sozinha. Se for possível, que eu possa encontrá-la novamente.”

As palavras saíam de seu coração, um apelo de um homem que já não tinha mais a quem recorrer. O som da cidade lá fora se tornava distante, enquanto sua alma se unia em um último desejo. Ao sentir a ausência de Mila, ele sabia que o amor verdadeiro não se extingue com a morte.

Então, como se Deus tivesse ouvido sua prece, João sentiu uma paz inexplicável invadir seu ser. Seu coração, que tantas vezes havia carregado a tristeza da solidão, começou a desacelerar. Ele olhou para Mila, agora tão serena em seus braços, e um sorriso triste surgiu em seu rosto. Em um último suspiro, ele se deixou levar, o peso da vida desaparecendo enquanto se reunia com sua querida companheira de tantos anos.

E assim, naquela noite de Natal, João e Mila partiram juntos, lado a lado, em um último abraço eterno. Na quietude daquele momento, eles encontraram o que tanto buscavam: a certeza de que, onde quer que estivessem, nunca mais estariam sozinhos.
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MORAL:
O sofrimento das pessoas idosas, como João, que se sentem abandonadas por parentes e amigos, é uma realidade dolorosa e muito frequente e muitas vezes invisível na sociedade. À medida que envelhecemos, as relações podem mudar, e muitos idosos enfrentam a solidão em um momento em que mais precisam de apoio e companhia.

A falta de tempo se torna uma desculpa comum, mas, para o idoso, essa ausência pode se traduzir em solidão profunda e tristeza. A sensação de que não são mais úteis é dolorosa e pode levar a um ciclo de desânimo e depressão. Videochamadas e mensagens podem ajudar, mas nada se compara ao calor de uma visita pessoal. Para muitos idosos, a falta de interação face a face amplifica a sensação de abandono, fazendo-os sentir que seus entes queridos estão longe não apenas fisicamente, mas também emocionalmente.

A tristeza da perda de um companheiro fiel, como no caso de João, pode ser devastadora, lembrando-os da fragilidade de suas relações e da inevitabilidade da morte. A história de João e Mila é um reflexo da realidade de muitos idosos que enfrentam o abandono e a solidão. É um chamado à empatia e à ação, lembrando-nos da importância de cultivar relações significativas e de cuidar daqueles que nos deram tanto ao longo de suas vidas. Cada gesto de amor e atenção pode fazer uma diferença significativa na vida de um idoso, ajudando a transformar a solidão em conexão e esperança.

Fontes: 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por JFeldman com Microsoft Bing 

Bianca Cidreira Cammarota (Cinza)

Amanheci, esperando o sol brilhar em meu rosto. Mas não. Do cinza-chumbo nas nuvens carregadas, meu semblante mais uma vez se entristeceu. Sim... desde aquele Fatídico dia, quando as sombras espreitavam os corações, o sol não mais aqueceu mentes e almas. Ele se recolheu diante do horror que se normatizava e se normalizava em seus filhos.

O cinza-claro indicava as horas matinais e vesperais, dia interminável com muitos amanheceres monocráticos. Sem calor vivificador, apenas o mormaço apodrecendo as últimas esperanças dos que ansiavam pelo sol, enquanto fervilhava a insana maldade dos sonhos fanáticos, concretizados em filosofias macabras e ações infernais.

O cinza das cinzas de vidas escurecia no firmamento, descendo tom a tom, paulatinamente, tão imperceptível que ninguém mais discernia a partida do resto da claridade. As olheiras obscuras, escuras como a noite. O sorriso branco, afiado como presas. As mãos feitas para doar tomando tudo e a todos em um punho. O discurso odioso outrora mudo bradava agora pelos ventos da ignorância. O eu egoísta se incorporava ao nós narcisista e virulento, rugindo em sua individualidade coletiva e corporativa. Monumentos de ferro pendurados em pescoços, tingidos do sangue dos que se foram.

As horas correm com a fuligem escurecida, agora. A negridão da noite anunciada para toda uma vida, enfim, cobre os dias, sob os aplausos fanatizados dos ignorantes, Da minha janela, estranhamente as estrelas piscam para mim, saudações frias, luzes brancas, lembranças fantasmagóricas de sóis ardentes de outros tempos. Elas cintilam. Elas pulsam. Elas gritam.

Então, num rompante súbito, a lua cheia rasga o oceano noturno, explosão dourada inconcebível, uma aurora esplendorosa, gelada, mas ardente em sua luminosidade. Tinge o manto estelar em rajadas vermelhas, violetas, laranjas e douradas flamejantes.

Meu coração bate novamente em uníssono com aqueles sóis distantes, com o nosso sol vestido em trajes limares. Ele existe... Sempre esteve lá, mesmo encoberto pela noite dos monstros e pelas cinzas dos covardes.

Não espero mais o amanhecer no batente da janela. A aurora nasce em meus olhos.

A aurora sou eu.
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A autora é de Aracaju/SE

(esta crônica obteve o 2. Lugar no Concurso de Crônicas Adulto Nacional “Foed Castro Chamma”, em 2020, com o tema Aurora)

Fontes: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

A. A. de Assis (A Massa da discórdia)


A. A. de Assis (Antonio Augusto de Assis) é de Maringá/PR
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O pastel ali, esfriando, desafiando a imaginação criativa dos seis

Na hora do recreio havia sobre a mesa um prato de pastéis. Seis professores na sala, sete pastéis. Cada boca serviu-se do seu bocado, a refeição ideal para o horário. O copo de chá gelado completava a merenda. Mas o pastel estava provocativamente delicioso, deixando no gogó dos comilões aquele irresistível gostinho de quero mais.

Sobrara no prato um pastel, o sétimo, sobre o qual pousavam gulosos os olhos dos seis candidatos a saboreá-lo. A boa educação, contudo, não permitia que nenhum dos presentes se apossasse do cujo. Melhor se tivesse vindo a conta certa, assim aquela sobra não perturbaria o recreio. O pessoal conversava para distrair, entretanto a tentação era demais. Seis olhares espetando o pastel, de longe. Ah, esses bons modos…

Poderia alguém ter sugerido um sorteio. No papelzinho, no palitinho, no par ou ímpar. Qualquer coisa, desde que se definisse a quem caberia o apetitoso conjunto de carne e massa. Ninguém tinha coragem de fazer a sugestão, com medo de ser chamado de fominha.

E o solitaríssimo pastel ali se oferecendo, cheiroso, fofucho. Poderiam reparti-lo em seis pedaços. Parecia, porém, que todos achavam tal solução deselegante. Além disso, a quem caberia a azeitona? Pois é: tinha uma azeitona no enredo, para atrapalhar. Dividir uma azeitona em seis pedaços seria operação deveras complicada. Falaram de futebol, de política, de tudo. Os olhares continuavam fixos no prato. Cada parceiro na esperança de que os outros cinco saíssem da sala. Ficando sozinho, o premiado comeria o último pastel sem constrangimento algum. Mas quem disse que sairia alguém dali? Havia unanimidade na gula.

Chegaram a desejar que entrasse na sala um sétimo professor, a fim de engolir a massa da discórdia e resolver de vez o impasse. O pastel ali, esfriando, desafiando a imaginação criativa dos seis. Nenhum deles ao menos se atrevia a confessar o que estava pensando. Percebia-se apenas pelo jeitão meio vesgo. Ou era isso que uns acreditavam estar percebendo nos demais.

Tocou a sino, acabou o recreio. Última esperança de que voltasse todo mundo para o trabalho deixando apenas um na sala do lanche. Ninguém quis ser o primeiro a sair. Saíram juntos, os seis.

Minutos depois a moça da cozinha veio recolher a garrafa de chá, os copos e o prato. Pensou lá com seus temperos: “Uai, acho que o pastel não agradou… até deixaram sobra…” E sem mais indagações comeu ali mesmo o desprezado, para desocupar o prato. Alimento aliás muito providencial, visto que ela havia acordado de madrugada e o café da manhã já estava mesmo pedindo reforço.
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 (Crônica publicada no Jornal do Povo)

Fonte: Texto enviado pelo autor 

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 9 *

 

Sammis Reachers (Temos fome, fome de Esperança)

Uma pintura do inglês George Frederic Watts, atualmente exibida na famosa Tate Galery de Londres, apresenta uma significativa alegoria: uma mulher com os olhos vendados, sentada sobre o globo terrestre, tendo em suas mãos um alaúde. Todas as cordas do instrumento musical estão arrebentadas, menos uma. A mulher aparenta estar atenta à música tirada desta única corda – essa corda é a Esperança.

Vivemos tempos sombrios. A desesperança, seja ela em utopias materialistas ou religiosas campeia, alimentada pelas brasas do ódio que insiste em bradar de sarjetas a tronos, passando por (quase) todas as tribunas. O diagnóstico é triste e a pílula, difícil de engolir: nossa sociedade está doente. Doente da alma, ferida em seu humanismo no que ele tem de mais nobre e fraternal; doente de suas fés religiosas, com o uso distorcido de suas mensagens de paz para fins interesseiros e intolerantes. 

O que vemos por aí é maniqueísmo que se chama: a crença de que o bem puro e o mal puro se digladiam. Mas quem é o mal? O mal é o próximo, o outro, nunca eu. Fácil, não? Mas somos humanos, e pelo entendimento bíblico, seres transidos de fios de mal e bem, acertos e erros – sim, a Bíblia e a maioria das grandes religiões mundiais nos referem como seres em processo, cuja jornada é a própria formação. Livres em nossas circunstâncias, que nos limitam em parte e em parte condicionam, mas são impotentes para aniquilar o que temos de divino. E esse toque “divino”, fino fio que nos mantém de pé, frágil filamento que nos une uns aos outros, que conduz (para nós, através de nós e a partir de nós) uma certa pulsante corrente elétrica, é a Esperança.

É preciso esperançar. Acreditar contra nossas diferenças, resistir contra os flagelos e os flageladores, os verdugos à serviço da exclusão e do maniqueísmo. Suas agendas não são as nossas; sua estreiteza não no diz respeito. Martin Luther King, o grande pastor e líder civil da mais singular expressão, assevera: “Devemos aceitar a decepção finita, mas nunca perder a esperança infinita”. E conclui: “Se eu ajudar uma pessoa a ter esperança, não terei vivido em vão”.

Aquela única corda da alegoria de Watts, citada no início deste texto, fio solitário, é na verdade uma ponte. Sim, é uma ponte de Esperança, fio a co-ligar e conduzir o homem (indivíduo e sociedade), e cabe a cada um de nós o papel de seus arautos, de pontífices (construtores de pontes) para nosso próximo.
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Sammis é poeta, escritor, antologista e editor. Licenciado em Geografia com especializações em Metodologia do Ensino e Gestão Escolar, atua em redes públicas de ensino de municípios fluminenses. É de São Gonçalo/RJ.

Maurício Cavalheiro (O pintor de auroras)

Não conheço quem o supere nos pincéis. Não conheço quem consiga retratar com delicadeza e precisão todos os pormenores em tela. É impossível plagiar os matizes que utiliza. Ninguém, nem Monet, nem Van Gogh, Taraborelli ou qualquer outro gênio da história da arte, conseguiu se aproximar da perfeição.

De todas as telas sobre amanheceres que pintou, guardei algumas em minha memória.

Ele retrata as auroras com todos os detalhes pertinentes a cada estação. Na primavera, por exemplo, a delicadeza dos pincéis anuncia a última estrela espiando os primeiros fios solares despertarem flores e joaninhas, enquanto o riacho desassossegado escorrega da colina. Abelhas e beija-flores coletam néctar e polinizam. 

No verão, atribui cores mais intensas à aurora para registrar o sol acordando mais cedo e encontrando gatos voltando da noitada. As borboletas brincam sem se assoberbar pela beleza de seus vestuários. Os passarinhos sinfonizam orações e inauguram o voo do amanhecer.

Na aurora outonal, os matizes são gris ao reproduzirem a chuva tamborilando o telhado para desafiar o sol. O hálito fresco da brisa arrepia o arvoredo. Preguiçosamente, as nuvens se deslocam e permitem que o astro rei reassuma o comando. O cachorro brincalhão corre atrás do coelho assustado.

No inverno, o sol nasce devagarinho, tímido, e vai diluindo, aos poucos, o orvalho que aveluda o rendilhado das aranhas. O vento, indomesticável, assobia canções polares. As nuvens são cachecóis que envolvem a montanha.

Da janela do meu quarto, nessa casa sem requintes, mas aconchegante, observei e observo as telas desse grande artista. Da janela do meu quarto, observo as magníficas obras de arte produzidas por... Deus.
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O autor é de Pindamonhangaba / SP

(esta crônica obteve o 1. Lugar no Concurso de Crônicas Adulto Nacional “Foed Castro Chamma”, em 2020, com o tema Aurora)

Fontes: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

José Luiz Boromelo (A mulher sem rosto)

Cinco horas da manhã. Nem precisava de despertador, pois o som característico do calçado de salto alto indicava que a mulher sem rosto descia a rua sem pressa, mostrando confiança. Por muito tempo, o ruído inconfundível do caminhar da vizinha de algumas casas acima martelou em minha cabeça. Nunca a via pessoalmente, nem eventualmente pela cidade. Mas sabia que era ela. E que possuía muitos calçados, pois tinham timbres diferentes e bem definidos. 

“Deve ter bom gosto”, pensava eu. E dinheiro para comprá-los, evidentemente. 

Frequentemente imaginava a figura quase surreal daquela que sem saber, substituiu meu despertador por anos a fio. Seria uma morena de olhos verdes, cabelos longos e bem cuidados, pele naturalmente bronzeada e um sorriso de fazer qualquer homem derreter-se por dentro? Ou a misteriosa de costumes matutinos apareceria como uma loira fatal, olhos azuis como o céu, batom vermelho nos lábios e pose de madame? Usaria um perfume de fragrância marcante, típico das mulheres que detêm o poder em todas as circunstâncias? O tempo se encarregaria de dar a resposta, que muitas vezes não corresponde com nossas expectativas, uma vez que procuramos criar uma imagem que atenda aos devaneios da mente.

Mas ela era real e sua pontualidade impressionava. Nem a agitação natural dos animais de estimação conseguia dissimular sua presença. Tomei conhecimento somente tempos depois que trabalhava numa usina de açúcar a alguns quilômetros da cidade. Decerto exercia funções administrativas, a julgar pela indumentária, obviamente analisada de baixo para cima, única referência possível até o momento. Ocuparia algum cargo no setor de recursos humanos, departamento pessoal, financeiro, gerência ou até mesmo na diretoria? Essa dúvida me levou a algumas tentativas para desvendar o mistério da madrugada, sem sucesso.

Eis que numa bela ocasião a dama da noite materializou-se diante de meus olhos. Fui tomado pela ansiedade ao ouvir aqueles passos ritmados, procurando visualizar antecipadamente o vulto da diva imaginária que povoava meus pensamentos. O que teria a lhe dizer, se me permitisse tal ousadia? Como seria retribuído, uma vez que jamais havia lhe dirigido uma palavra sequer?

 Finalmente, aquela que por muito tempo foi a responsável por determinar o início dos meus dias de trabalho estava bem à minha frente. E para minha surpresa, estendeu-me a mão num cumprimento cordial, elogiando minha disposição em levantar tão cedo. Era uma simpática velhinha de origem nipônica e compleição mirrada, calçando um tamanco característico daquele país oriental. Contratada como cozinheira, fazia do trabalho uma terapia em sua vida. Estava desfeito o mistério da mulher sem rosto. E de todas as que passaram pelas calçadas de minha vida. Sejam elas loiras, morenas ou ruivas, com ou sem o aroma perfumado do imaginário humano. Hoje não ouço mais aqueles passos em minha calçada. A vovó deve ter se aposentado. Que pena!

Estante de Livros (3 livros de Herman Hesse)


As obras de Hermann Hesse são profundas explorações da condição humana, abordando temas como a busca por identidade, a luta entre o dever e o desejo, e a necessidade de autoconhecimento. Hesse combina narrativa rica e filosófica com uma prosa poética, criando histórias que desafiam o leitor a refletir sobre suas próprias experiências e escolhas na vida.

1. Rosshalde
Narra a história de Gustav von Aschenborn, um pintor de renome que vive em uma propriedade chamada Rosshalde, com sua esposa, bela e jovem, e seu filho, Bruno. Apesar de seu sucesso artístico, Gustav sente-se preso em sua vida e em suas relações. O romance é ambientado em um período de crise pessoal e artística para Gustav, que se vê confrontado com a insatisfação em seu casamento e o desejo de liberdade criativa.

A obra explora os conflitos internos de Gustav, que se sente dividido entre suas obrigações familiares e sua necessidade de expressar-se artisticamente. A complexidade de seus relacionamentos, especialmente com sua esposa, se torna um reflexo das tensões entre o mundo exterior e sua vida interior. À medida que a história avança, Gustav toma uma decisão que mudará sua vida — ele abandona Rosshalde e sua família em busca de sua própria identidade e de um significado mais profundo.

"Rosshalde" é uma profunda exploração da busca pela autenticidade e da luta entre a arte e a vida pessoal. Hesse utiliza o personagem de Gustav para refletir sobre a tensão entre o dever e o desejo, a liberdade e a responsabilidade. O ambiente de Rosshalde simboliza tanto a segurança quanto a prisão, enquanto a arte de Gustav representa a busca por expressão e verdade.

A relação entre Gustav e sua esposa é central para a narrativa, ilustrando como as expectativas sociais e as pressões familiares podem sufocar a individualidade. A obra também aborda temas de autoaceitação e a importância de seguir o próprio caminho, mesmo que isso signifique deixar para trás pessoas amadas.

Hesse utiliza uma prosa lírica e rica em simbolismo, criando uma atmosfera que ressoa com a busca interna de Gustav. O romance é uma meditação sobre a condição humana, a criatividade e a necessidade de encontrar um propósito que transcenda as convenções sociais.

2. Siddhartha
É um romance que narra a jornada espiritual de um jovem chamado Siddhartha durante o tempo do Buda. Siddhartha, um filho de um brâmane, é inteligente e ambicioso, mas sente-se insatisfeito com a vida de prazeres e rituais convencionais. Ele decide deixar sua casa e seus privilégios, em busca da iluminação e do verdadeiro significado da vida.

Siddhartha se junta a um grupo de ascetas, praticando a renúncia e a meditação, mas logo percebe que essa caminho não leva à verdadeira realização. Em seguida, ele encontra Gautama, o Buda, mas mesmo assim sente que a iluminação não pode ser ensinada, apenas vivida. Siddhartha continua sua busca, experimentando a vida material e amorosa ao se envolver com Kamala, uma cortesã, e se tornando um homem de negócios.

Após anos de excessos, Siddhartha se sente vazio e decide se retirar para a margem de um rio, onde encontra um barqueiro sábio que o ajuda a compreender a natureza do tempo e da existência. Através desse encontro, Siddhartha alcança a iluminação, reconhecendo a unidade de todas as experiências e a interconexão da vida.

É uma obra rica em filosofias orientais e reflexões sobre a busca espiritual. A jornada de Siddhartha é uma metáfora para a busca de cada indivíduo por significado e compreensão. Hesse utiliza elementos do budismo e do hinduísmo para explorar a ideia de que a verdadeira sabedoria vem da experiência pessoal e da introspecção.

O romance destaca a importância do autoconhecimento e da aceitação das dualidades da vida — prazer e dor, amor e perda. Siddhartha é um personagem que representa a universalidade da busca humana por propósito, e sua jornada é uma reflexão sobre como cada um de nós deve encontrar seu próprio caminho.

A prosa de Hesse é poética e contemplativa, criando uma atmosfera meditativa. O simbolismo do rio, que representa o fluxo da vida e a continuidade da existência, é central para a obra, refletindo a ideia de que cada experiência, por mais desafiadora que seja, contribui para o crescimento e a compreensão.

3. O Jogo das Contas de Vidro
Esta é uma obra futurista que se passa em uma sociedade utópica chamada Castália, dedicada ao desenvolvimento da cultura e do intelecto. A história gira em torno de Joseph Knecht, um talentoso jogador das contas de vidro, uma prática que combina música, matemática e filosofia em uma forma de arte elevada. Knecht é escolhido para se tornar um mestre do jogo, mas à medida que avança em sua carreira, começa a questionar o papel da arte e do intelecto na vida humana.

Ao longo da narrativa, Knecht reflete sobre suas experiências e sua relação com a sociedade, incluindo seus amigos e mentores. A obra é dividida em três partes, cada uma explorando diferentes aspectos da vida de Knecht e sua busca por significado. Ele acaba se afastando do sistema rígido de Castália, buscando uma conexão mais profunda com a vida fora da academia.

A história culmina em sua decisão de deixar Castália e se tornar um simples educador, reconhecendo que a verdadeira sabedoria vai além do conhecimento acadêmico. Knecht entende que a vida deve ser vivida plenamente, e não apenas contemplada.

"O Jogo das Contas de Vidro" é uma reflexão profunda sobre o papel da arte, da educação e da espiritualidade na vida moderna. Hesse critica a elitização do conhecimento e a desconexão entre o intelecto e a experiência vivida. A obra é uma meditação sobre a busca pela autenticidade e a necessidade de integração entre o intelecto e a vida prática.

O jogo em si, com sua complexidade e beleza, simboliza a busca pela harmonia e pela compreensão profunda da existência. Através de Knecht, Hesse explora a tensão entre o idealismo e a realidade, questionando se é possível encontrar um equilíbrio entre o intelecto e a vida emocional.

A prosa de Hesse é rica em simbolismo e filosofia, desafiando o leitor a refletir sobre suas próprias crenças e valores. A obra é considerada uma das mais ambiciosas de Hesse, abordando questões existenciais e espirituais que continuam a ressoar com leitores contemporâneos.

Fontes: José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por JFeldman a partir de fotografia da estante de livros

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

José Feldman (O Natal de Seu Miguel)

Era véspera de Natal e a cidade estava envolta em uma atmosfera mágica. As luzes piscavam nas janelas, as ruas estavam decoradas com guirlandas e as pessoas se apressavam para comprar os últimos presentes. No entanto, na pequena casa de Seu Miguel, a única coisa que iluminava o ambiente era a presença de sua fiel companheira, a cachorra Lili.

Seu Miguel era um homem idoso, com cabelos brancos e mãos calejadas pelo trabalho de uma vida inteira. Ele havia se casado, cerca de  25 anos depois o amor que um dia o aquecera se afastara sendo uma lembrança distante daqueles momentos. Seus irmãos, que moravam em outro estado, não o visitavam desde que ele se casou. A solidão tornara-se sua única companheira, e a casa, antes cheia de risadas e alegria, agora ecoava o silêncio de sua tristeza.

Lili, uma simpática vira-lata, estava sempre ao seu lado. Com seus olhos brilhantes e o jeito carinhoso de se aconchegar a ele, ela trazia um pouco de luz aos dias sombrios de Seu Miguel. Ele costumava dizer que ela era o único presente que realmente importava. Ao olhar para ela, ele sentia um amor incondicional que aquecia seu coração.

O quarto de Seu Miguel era acolhedor, mas carregava a marca do tempo e da solidão. As paredes eram de um tom suave de azul desbotado, com algumas manchas de desgaste que contavam histórias de muitos anos. Um quadro antigo, com uma paisagem de verão, pendia um pouco torto acima da cama, lembrando dias mais alegres.

A cama de casal, coberta por um edredom de retalhos. Ao lado da cama, uma pequena mesa de cabeceira sustentava um abajur de luz amarelada, que iluminava suavemente o ambiente ao entardecer. Sobre a mesa, havia um livro aberto, suas páginas amareladas pela passagem do tempo, e uma xícara de chá fria, esquecida em um canto.

O chão era de madeira, com algumas tábuas rangendo sob o peso dos passos, e um tapete desgastado cobria parte do espaço, dando um toque de calor ao ambiente. Perto da janela, uma cortina balançava suavemente com a brisa, permitindo que os as gotas de chuva que caíam lá fora fossem visíveis.

Em um canto do quarto, uma prateleira abrigava souvenirs e fotografias emolduradas, capturando momentos de felicidade que agora pareciam distantes. Havia um porta-retratos com uma imagem de Seu Miguel e sua ex-esposa, sorrindo em uma praia.

No chão, ao lado da cama, estava a caminha de Lili, um acolchoado simples, mas confortável, onde a cachorra costumava descansar. O ambiente, embora nostálgico e um tanto triste, tinha um toque de amor e lembranças que preenchiam o ar com uma sensação de lar.

Na véspera de Natal, enquanto a chuva começava a cair lá fora, Seu Miguel sentou-se na poltrona ao lado da lareira. Ele olhou para o pinheiro que havia montado, uma árvore simples, já sem enfeites para alegrar o ambiente, mas, naquele momento, ela parecia mais uma lembrança dolorosa do que um símbolo de celebração.

Ele fechou os olhos e fez um desejo silencioso. Queria sentir o abraço da família novamente, ouvir as risadas que preenchiam a casa, e quem sabe até mesmo ouvir os filhos e netos de seus irmãos correndo pelo lugar. A saudade o apertava como um nó no peito, e ele não conseguia evitar que as lágrimas escorressem pelo seu rosto.

Lili, percebendo seu desânimo, levantou-se e se aproximou. Ela encostou a cabeça em seu colo, como se dissesse: "Eu estou aqui, não se preocupe." 

Seu Miguel sorriu, acariciando o pelo macio da cachorra. Ela era a única que o compreendia, a única que não o abandonara.

A noite avançava e, enquanto a neve cobria a cidade, Seu Miguel decidiu preparar um pequeno jantar. Ele fez um prato simples, mas saboroso, e dividiu um pouco com Lili, que se deliciou com cada pedaço. Durante a refeição, ele contou histórias para a cachorra, compartilhando memórias de tempos mais felizes. Lili parecia atenta, como se entendesse cada palavra.

Após o jantar, ele pegou um cobertor e se acomodou na poltrona, enquanto a lareira crepitava suavemente. A melodia suave de canções de Natal vinha das casas vizinhas, e, por um momento, ele se deixou levar pela nostalgia. As músicas o transportaram para um tempo em que a vida era mais cheia e as preocupações pareciam distantes.

Mas a realidade logo o trouxe de volta. Ele olhou para a árvore e, em meio à tristeza, sentiu uma onda de gratidão por Lili. Ela era sua luz nos dias escuros, seu motivo para levantar da cama todas as manhãs. Apesar da solidão, ele ainda tinha alguém que o amava.

Enquanto a chuva caía suavemente lá fora, a música de Natal envolvia a casa de Seu Miguel em um manto de nostalgia e esperança. Ele fechou os olhos por um momento, permitindo que o cansaço o levasse, quando um toque suave na porta interrompeu seu pensamento. 

Seu coração disparou. Quem poderia ser? Nunca ninguém o visitava. 

Ele hesitou, mas Lili, sempre curiosa, correu até a porta, latindo.

Ao abrir, Seu Miguel se deparou com seus irmãos, acompanhados de suas famílias. Eles estavam com sorrisos largos e braços abertos, prontos para abraçá-lo. A surpresa tomou conta dele, e a tristeza que há tanto tempo o acompanhava começou a se dissipar.

— Feliz Natal, Miguel! — gritaram.

Ele mal podia acreditar. O abraço apertado de seus irmãos, os risos das crianças e a alegria contagiante daquela noite o envolveram como um cobertor quente. Lili, animada, pulava ao redor, recebendo carinhos e afagos.

Naquela noite, a casa de Seu Miguel se encheu de amor e risadas. As memórias dolorosas foram substituídas por novas, e a solidão deu lugar à alegria.

Mas, de repente, a cena começou a desvanecer. As vozes dos familiares se tornaram ecos distantes, e a luz da árvore, que antes brilhava intensamente, começou a se apagar. Seu Miguel tentou chamar seus irmãos, mas suas palavras não saíam. Ele se viu sozinho novamente, perdido na escuridão.

Quando finalmente despertou, a realidade o atingiu como um balde de água fria. A sala estava silenciosa, e a única luz vinha da lareira, que agora crepitava suavemente. Lili, sua fiel companheira, estava deitada ao seu lado, olhando para ele com olhos cheios de preocupação.

A tristeza tomou conta de seu coração. Ele olhou ao redor e percebeu que estava novamente sozinho, sem os abraços calorosos de sua família. Um nó se formou em sua garganta, e as lágrimas começaram a escorregar por seu rosto.

Os olhos, grandes e expressivos de Lili, se iluminaram ao ver que o velho estava acordado. Com um leve abanar de rabo, ela se levantou de seu canto e se aproximou, suas patas macias fazendo pouco barulho no chão.

Lili cheirou o ar ao redor de Seu Miguel, como se buscasse entender suas emoções. Ao notar as lágrimas em seu rosto, ela pousou a cabeça suavemente em seu colo, olhando-o com um olhar preocupado. Seu coração canino parecia sentir a tristeza dele, e ela se aconchegou ainda mais perto, buscando confortá-lo.

Lili lambeu a mão dele, como se dissesse: "Estou aqui, não precisa ficar triste." Sua presença calorosa e carinhosa trouxe um alívio instantâneo ao coração de Seu Miguel. Ela se aninhou nele, oferecendo seu amor incondicional, e ficou atenta, como se estivesse pronta para proteger seu amigo de qualquer dor.

Com um suspiro profundo, ele envolveu os braços em torno de Lili, apertando-a contra seu peito. Naquele momento, ele fez uma promessa a ela:

— Nunca vou te abandonar, Lili. Você é minha única amiga, minha luz em meio à escuridão. Não importa o que aconteça, sempre estarei aqui para você, assim como você sempre esteve para mim.

Ele sentiu a presença calorosa da cachorra, e um conforto profundo começou a preencher o vazio da solidão. Ali, no silêncio da pequena casa, Seu Miguel percebeu que, mesmo sem a família por perto, ele ainda tinha um amor sincero e verdadeiro.

E assim, enquanto a chuva continuava a cair lá fora, ele e Lili se aconchegaram juntos, prontos para enfrentar o Natal e todos os dias que ainda estavam por vir. 

Seu Miguel sentiu uma onda de gratidão. A maneira como Lili reagiu, com sua lealdade e compaixão, fez com que ele se sentisse menos sozinho. Ela era uma luz em sua vida, sempre disposta a estar ao seu lado. E naquele momento, ele soube que, independentemente da solidão que o cercava, ele nunca estaria verdadeiramente só, enquanto tivesse Lili.

E assim, enquanto as estrelas brilhavam no céu, ele fez um novo desejo. Enquanto tivesse sua fiel companheira, seus dias seriam sempre iluminados, não apenas naquela noite, mas em todos os dias que viriam. Afinal, a verdadeira magia do Natal reside nas conexões que cultivamos e no amor que compartilhamos, mesmo quando a vida nos parece solitária.
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Nota do blog:
Infelizmente esta é uma realidade cada vez mais constante nos dias de hoje, principalmente em pessoas idosas que não tem filhos.

O Natal é uma época de celebração, amor e união, mas para muitos idosos, essa época do ano pode ser repleta de solidão e tristeza. Infelizmente, muitos deles se encontram abandonados por seus familiares, sentindo-se esquecidos e desamparados.

Se você conhece algum idoso que está sozinho, uma simples visita pode fazer toda a diferença. Ouvir suas histórias e compartilhar momentos pode trazer alegria a seus corações.

Oferecer seu tempo para atividades ou até mesmo um café da tarde pode iluminar o dia de alguém.

Muitas vezes, a falta de apoio é resultado de desinformação e preconceitos. Vamos mudar essa narrativa!

É fundamental que, como sociedade, estejamos atentos a essa realidade. Os idosos merecem carinho, respeito e atenção, especialmente em momentos que deveriam ser de alegria. O abandono pode afetar profundamente a saúde emocional e física dessas pessoas, tornando o Natal uma lembrança dolorosa em vez de uma celebração.

Fontes: 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Daniel Maurício (Poética) 79

 
 

José Feldman (Um terminal rodoviário muito louco)

Era uma manhã ensolarada quando um grupo de estranhos se reuniu no terminal rodoviário da pequena cidade de Pensamento, interior do Paraná. O terminal, com seu cheiro de café requentado e a música de um artista local tocando no fundo, estava prestes a se transformar em um palco para uma série de eventos engraçados.

Primeiro, Dona Edna, uma senhora de cabelos grisalhos e óculos enormes, que sempre se sentava da mesma forma: com um mapa amassado na mão e uma expressão de quem estava prestes a conquistar o mundo. Ela estava em busca de sua neta, que supostamente iria chegar em um ônibus vindo da capital.

Ao lado dela, estava Tiago, um jovem estudante que, com seu fone de ouvido e olhar perdido, parecia estar no mundo da lua. Ele estava tão concentrado na música que não percebeu que seu ônibus tinha mudado de plataforma. Quando finalmente se deu conta, já era tarde demais.

Na outra extremidade do terminal, um homem de terno e gravata, que se apresentava como Dr. Fernando, estava tentando fazer uma ligação importante. Ele falava alto demais (quase aos berros), e sua conversa sobre "negócios internacionais" estava atraindo a atenção de todos ao redor. Mas era impossível não notar que, a cada palavra, ele gesticulava de tal forma que parecia estar tentando voar.

Enquanto isso, o ônibus de Dona Edna chegou, mas, para sua surpresa, não havia sinal de sua neta. Desesperada, ela começou a questionar todos ao redor, incluindo Tiago, que tentava se concentrar em sua música. 

“Você viu uma garota de cabelo cacheado, mais ou menos assim?” ela perguntava, fazendo gestos exagerados. 

Tiago, sem perceber, respondeu: “Desculpe, senhora, estou procurando por um ônibus.”

Nesse momento, Dona Edna decidiu que ele deveria ser um "detetive" e começou a dar instruções absurdas sobre como encontrar sua neta. 

Tiago, confuso, apenas concordou e saiu em busca de informações que não existiam.

Enquanto isso, o Dr. Fernando, tentando se fazer notar, decidiu que era hora de fazer uma apresentação. Ele subiu em uma das cadeiras e começou a falar sobre sua "brilhante carreira" e como estava prestes a fechar um grande negócio. 

O terminal, que estava calmo, agora estava uma balbúrdia. As pessoas aplaudiam de forma sarcástica, e Tiago, ao ouvir o barulho, se aproximou, perguntando se havia um show.

“É claro! Você não sabia? É o show do Dr. Fernando, o empresário que voa alto!” alguém gritou, e todos começaram a rir.

Finalmente, a neta de Dona Edna apareceu correndo, com uma mochila gigante e um sorriso no rosto. 

Ela avistou a avó e, enquanto corria, esbarrou em Tiago, que estava tão perdido em seus pensamentos que quase caiu. 

“Desculpe!” ela exclamou, mas Tiago, em vez de se irritar, respondeu: “Não se preocupe, eu sou apenas um detetive à procura de uma missão.”

Dona Edna, ao ver sua neta, deu um grito de alegria e começou a dançar como se tivesse ganhado na loteria. 

“Minha neta! Finalmente! Agora podemos ir embora!” Ela abraçou a menina, que estava um pouco confusa, mas feliz.

Enquanto isso, Dr. Fernando, percebendo que sua apresentação não estava indo como planejado, decidiu descer da cadeira. Ele tropeçou, e em um momento digno de um filme de comédia, caiu de cara no chão. Todos riram, e até mesmo o homem mais sério do terminal não conseguiu conter o riso.

Tiago, agora em um espírito de camaradagem, se aproximou de Dr. Fernando e disse: 

“Se você precisar de um detetive para seus negócios, eu posso ajudar!” 

O empresário riu e, fora de si, convidou todos para um café na lanchonete do terminal.

Dona Edna, sua neta, Tiago e até mesmo Dr. Fernando acabaram se sentando juntos, compartilhando histórias e risadas. 

O terminal rodoviário, que parecia um lugar comum, havia se transformado em um espaço de amizade e absurdos, onde pessoas de diferentes lugares se uniram através de uma série de imprevistos e risadas.

E assim, entre uma xícara de café e outro, o terminal se tornou um lugar de memórias, onde cada um saiu com uma história para contar — e uma nova amizade para cultivar. Afinal, às vezes, as melhores aventuras começam nos lugares mais inesperados.

Fontes: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing