quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Luís da Câmara Cascudo (Maria Gomes)

Um homem viúvo tinha tantos filhos que não os podia alimentar nem vestir convenientemente. Quase sempre, na hora das refeições, uma das crianças ficava com fome. O Pai lastimava-se de sua miséria e, na falta de outro auxílio, deliberou abandonar um dos filhos na floresta. Tirou a sorte e recaiu na filhinha Maria que era muito inteligente, bonita e trabalhadora.

O homem levou a mocinha para a floresta e a deixou debaixo de uns pés de araçá, recomendando que se orientasse pelas pancadas do machado com que ele ia derrubar uma árvore para tirar uns favos de mel de abelhas.

Maria ficou, ficou, ficou. As horas passavam e o dia estava escurecendo quando ela ouviu umas pancadas. Procurou caminhar na direção do som e encontrou apenas o cabaço amarrado a um galho. O vento é que o fazia bater e provocava o barulho.

Vendo-se perdida, Maria andou, andou, andou e, ao anoitecer, subiu a uma árvore e de lá avistou o telhado de uma casa. Desceu e caminhou até deparar um casarão muito velho quase em ruínas, num descampado que metia medo aos mais corajosos.

Muito cansada e faminta, Maria rodeou a casa, entrou por uma porta larga e viu que as paredes estavam cheias de instrumentos de música e havia uma rede armada a um canto. A moça segurou um violino e tocou, tocou, tocou. De repente apareceu uma mesa coberta de iguarias fumegantes e apetitosas.

Uma voz misteriosa disse:

– Maria Gomes? O jantar está na mesa!

Maria jantou à vontade. Quando acabou, a voz se ouviu:

– Maria Gomes? Seu quarto é o último, no corredor!

A moça encontrou um quarto preparado de tudo, muito confortável, com roupa para mudar e objetos de uso. Deitou-se e dormiu tranquilamente.

Passaram-se muitas semanas. A moça tocava música; durante o dia, arranjava a casa, limpando-a. Não via pessoa alguma. Apenas a voz misteriosa dirigia o serviço.

Numa noite, a voz informou:

– Maria Gomes? Seu pai está doente. Quer ir vê-lo?

– Quero! – disse Maria Gomes.

A voz continuou:

– Amanhã pela manhã estará um cavalo branco selado esperando à porta. Dentro daquela gaveta há muito dinheiro. Leve quanto desejar para sua família. Tenha todo cuidado em obedecer a duas condições: primeira é não dizer onde e como está vivendo. A segunda é atender aos relinchos do cavalo. Quando ele der o primeiro relincho, despeça-se de todos. Ouvindo o segundo, esteja no meio do caminho e ao terceiro meta o pé no estribo. Se perder o cavalo nada mais posso fazer. Não esqueça!...

No outro dia tudo sucedeu como a voz ensinara. Maria encontrou o cavalo, com sela, montou-o e num minuto estava em casa do pai. 

O velho melhorou logo que a viu e recebeu muito dinheiro, ficando todos satisfeitíssimos com a visita da moça que julgavam morta e devorada pelas feras da mata.

No meio da conversa, Maria ouviu o relincho do cavalo branco. Imediatamente abraçou o pai, os irmãos e as irmãs, recusando todos os oferecimentos, e correu para a estrada. Nada dissera de sua vida, embora fosse muito interrogada. 

Ao segundo relincho do cavalo, a moça estava bem perto do animal e, mal este deu o terceiro sinal, Maria meteu o pé no estribo e foi transportada velozmente para o casarão misterioso no meio da floresta.

Assim outros tempos correram. Duas vezes Maria Gomes visitou seu pai. Na última ocasião o velho, já bem alquebrado pela idade e doença, faleceu. Maria chorou muito, agarrada com os irmãos. Soluçava tão alto que não ouviu o primeiro relincho do cavalo branco. Percebendo o segundo, correu como uma bala mas o terceiro relincho não a alcançou em ponto de montar. 

O cavalo partiu e Maria Gomes continuou correndo atrás do cavalo, gritando, chamando e chorando. Já estava exausta quando o animal voltou, coberto de espuma e se deteve esperando que ela o montasse.

– Se você não corresse atrás de mim eu voltaria para matá-la à força de coices –, disse o cavalo encantado.

No outro dia a voz explicou:

– Maria Gomes? Você já tem me servido muito. Agora eu devo ajudar você e completar minha sina. Vista-se de homem e monte o cavalo branco do qual nunca mais se separe e ouça todos os conselhos que ele lhe der. Será para sua e minha felicidade.

A voz emudeceu. Maria dormiu. Pela manhã vestiu-se de homem, encheu os bolsos de dinheiro, montou o cavalo branco e galopou até um reinado próximo.

Aí procurou empregar-se e, sendo robusto, benfeito e simpático, falando com desembaraço, encontrou o lugar de jardineiro no palácio do Rei.

O príncipe vinha todas as manhãs olhar as flores e conversar com o jardineiro com quem acabou sendo amigo íntimo. Sem saber por quê, ia-se apaixonando pelo rapaz. Os olhos do jardineiro pareciam duas joias. O príncipe dizia à rainha velha: Minha Mãe do coração, Os olhos de Gomes matam, De mulher sim, d’homem não!

A rainha velha dissuadia o filho dessa impressão, mas o príncipe teimava, teimava, teimava cada vez mais inseparável do Gomes.

Maria Gomes colocara o cavalo numa manjedoura vizinha ao seu quarto e não saía sem ele. Nunca montou outro animal apesar dos oferecimentos do príncipe.

Este vivia repetindo que os olhos de Gomes eram de mulher. A rainha velha aconselhou-o:

– Leve Gomes para uma caçada. Na hora de dormir arme as redes debaixo do jasmineiro grande que é encantado. As flores caem em cima das mulheres e as folhas em cima dos homens. Pela manhã, bote reparo onde ficaram as flores...

O príncipe foi com Gomes caçar. Armaram as redes, pela tardinha, debaixo do jasmineiro. O príncipe adormeceu logo e Gomes depois. As flores caíam na rede de Maria e as folhas em cima do príncipe. O cavalo branco que estava perto aproximou-se, relinchou e as flores caíram no príncipe e as folhas em Gomes.

Pela manhã o príncipe estava que parecia uma noiva ou um anjo, todo vestidinho de jasmins. Ficou decepcionado e voltou ao palácio sem saber da verdade.

A rainha velha deu outra orientação:

– Leve Gomes para um banho no rio. O jeito é você ficar sabendo...

Foram os dois. O príncipe caiu logo n’água e Gomes começou a despir-se lentamente, conforme o cavalo lhe dissera. Quando ficou apenas com a camisa, o cavalo começou a pular, a piafar, atirando patadas e desembestou pelo campo, obrigando Gomes e o príncipe, este nu em pelo, a correrem para aquietá-lo. Quando o conseguiram, Gomes estava molhado de suor e o príncipe cansadíssimo.

A rainha velha escolheu outro caminho:

– Convide ele para almoçar no palácio. Se for mulher sentar-se-á em cadeira baixa e esperará que a sopa esfrie.

O príncipe convidou Gomes e este foi ouvir o cavalo que lhe explicou tudo. No almoço, Gomes escolheu uma cadeira alta e tomou a sopa bem quente.

A rainha velha não desanimou:

– Quando estiverem conversando, em roda, sacuda uma laranja para ele. Se for mulher, habituada com a saia, abrirá as pernas para ter maior espaço e melhor aparar a fruta. Se for homem, juntará as pernas.

O cavalo, que adivinhava, avisou a Gomes. Sacudiram a laranja e Gomes apertou as pernas.

A rainha velha falou ainda:

– Só resta uma forma. Durma uma noite no mesmo quarto.

O príncipe convidou Gomes para um trabalho no palácio e o prolongou tanto que o falso rapaz foi obrigado a ficar para dormir nos aposentos do amigo. O príncipe esperou que Gomes adormecesse mas a moça resistiu toda a noite. Assim ainda a segunda, mas, na terceira, não podendo com as pálpebras, dormiu. O príncipe passou a mão pelo busto do amigo e encontrou a saliência dos seios.

– Eu bem sabia que você era mulher e não homem. Como estou apaixonado, prepare-se para casar comigo.

Pela manhã Maria Gomes foi onde estava o cavalo e contou tudo.

– Sei perfeitamente. Já chegou meu tempo de liberdade. Daqui a dias é 13 de junho, dia de Santo Antônio, meu padrinho. Peça ao Rei velho que marque umas cavalhadas para esse dia, convidando todo mundo. Eu comparecerei e te levarei comigo porque teu noivo sou eu!

Maria Gomes ficou radiante e foi pedir ao Rei velho que anunciasse umas cavalhadas, com jogo de argolinhas, para o dia de Santo Antônio. O Rei velho, que era muito influído para essas festas, convidou toda a gente e preparou um terreiro enorme, com arquibancadas para os fidalgos e as famílias assistirem.

No dia de Santo Antônio o terreiro ficou negrejando de gente. Cavaleiros sem conta compareceram, vestindo luxuosamente. Logo ao começar a justa surgiu um cavaleiro desconhecido, coberto de prata, magnificamente montado e correu argolinhas com todos os outros vencendo-os facilmente. Trouxe todos os adversários e pôs as argolinhas no colo do Rei muito lisonjeado.

O príncipe achou o cavaleiro muito antipático e não o aplaudiu.

No segundo dia, o cavaleiro voltou, vestindo roupa de ouro, e venceu a todos, entregando as argolinhas à rainha velha.

No último dia o cavaleiro, vestindo diamantes, derrotou todos os adversários e pôs as argolinhas no colo do príncipe, que virou o rosto para não fazer a vênia de agradecimento.

Nesse momento o cavaleiro atirou uma fita azul em Maria Gomes. Esta segurou uma ponta com o bico do pé e a outra com os lábios, fechando os olhos, como lhe dissera o cavalo, dias antes. Instantaneamente encontrou-se na garupa do cavalo que o cavaleiro montava.

Rei, rainha, príncipe, povo, todos correram para prender o raptor mas ninguém viu senão a poeira.

O cavaleiro galopou até o casarão velho. Parou e desceu Maria Gomes. Assim que esta pisou no chão, ouviu-se um estrondo e o casarão transformou-se num lindo palácio, resplandecente de luzes e cheio de criados, fidalgos e camareiros. Maria Gomes casou-se com o cavaleiro que era o cavalo encantado, e foram felizes como Deus com os anjos.
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LUÍS DA CÂMARA CASCUDO nasceu em Natal/RN, em 1898 falecendo na mesma cidade em 1986. Foi um historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista e escritor brasileiro. Passou toda a sua vida em Natal e dedicou-se ao estudo do folclore e da cultura brasileira. Foi professor da Faculdade de Direito de Natal, hoje Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cujo Instituto de Antropologia leva seu nome. Deixou obra volumosa e de grande relevância, em particular sobre história, folclore e cultura popular. Recebeu o Prêmio Machado de Assis pela Academia Brasileira de Letras, em 1956, pelo conjunto de sua obra.

Fontes> 
Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
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Estante de Livros ("Histórias de Fantasmas", de Charles Dickens)

"Histórias de Fantasmas" (Ghost Stories) é uma coleção de contos escrita por Charles Dickens, publicados pela primeira vez em 1º de janeiro de 1866, onde ele explora o sobrenatural com sua habilidade única de capturar a essência da vida vitoriana.

Dickens utiliza sua habilidade narrativa para explorar o medo e o desconhecido. As histórias são ricas em detalhes e atmosfera, mergulhando o leitor em um mundo onde o sobrenatural se cruza com a realidade cotidiana.

Temas: 
Os temas principais incluem a culpa, a vingança, o medo do desconhecido e a fragilidade humana diante das forças sobrenaturais. Dickens frequentemente retrata personagens que são assombrados não apenas por fantasmas, mas por suas próprias consciências e ações passadas.

Estilo
O estilo é descritivo e detalhado, criando uma atmosfera sombria e opressiva. Ele usa a ambientação vitoriana para adicionar autenticidade às suas histórias, muitas vezes incorporando elementos de sua própria vida e das crenças da época.

Personagens: 
Os personagens de Dickens são complexos e muitas vezes moralmente ambíguos. Eles são desenhados de forma a refletir as tensões sociais e psicológicas da era vitoriana, tornando as histórias não apenas assustadoras, mas também reflexivas sobre a natureza humana.

Impacto: 
"Histórias de Fantasmas" é um clássico do gênero e influenciou muitos autores posteriores. As histórias são não apenas exemplos brilhantes de narrativa de terror, mas também comentários sociais disfarçados de contos de fantasmas.

Resumos dos principais contos:

O Sinaleiro: 
Um sinaleiro de trem começa a ver visões de um fantasma que aparece ao lado dos trilhos. Cada vez que o fantasma aparece, um acidente trágico segue. A história gira em torno do sinaleiro e de um visitante, enquanto tentam entender e prever os acontecimentos assombrosos.

Para ser lido ao anoitecer: 
Um grupo de amigos se reúne para contar histórias de fantasmas. Um dos amigos relata uma experiência pessoal em que foi assombrado pelo espírito de um homem morto em um duelo. A atmosfera sombria e os detalhes vívidos criam uma sensação de medo e suspense.

A visita do Sr. Testator: 
Este conto fala sobre um homem que é assombrado pelo espírito de um conhecido. O espírito aparece a ele em diversas ocasiões, causando medo e incerteza. A trama explora a ideia de culpa e redenção através das assombrações.

O Beco do Fantasma: 
A história segue um homem que se muda para uma casa nova em um beco assombrado. Ele começa a perceber atividades paranormais e tenta descobrir o segredo por trás do fantasma que assombra o lugar.

A Noite de Natal: 
Neste conto, um homem tem uma série de encontros com fantasmas na noite de Natal. Cada espírito revela algo sobre seu passado, presente ou futuro, levando-o a uma transformação pessoal e moral.
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Análise do conto "O Sinaleiro" de Charles Dickens

"O Sinaleiro" é um dos contos mais emblemáticos de Charles Dickens e exemplifica sua habilidade em criar atmosferas de suspense e terror psicológico. 

Resumo: "O Sinaleiro" narra a história de um sinaleiro de trem que é assombrado por visões de um fantasma perto de seu posto de trabalho, um túnel ferroviário. As visões do fantasma são sempre seguidas por desastres ferroviários ou mortes, levando o sinaleiro a viver em constante temor. A história é contada do ponto de vista de um visitante que se interessa pela estranha situação do sinaleiro e tenta ajudá-lo a compreender as visões.

Temas:

Fatalismo e Destino: 
A inevitabilidade dos acidentes após as aparições do fantasma sugere um forte sentido de destino, onde os eventos trágicos parecem predestinados e inescapáveis.

Medo e Loucura: 
O conto explora como o medo pode levar à deterioração mental. O sinaleiro vive em constante ansiedade e paranoia, o que levanta questões sobre a linha tênue entre sanidade e loucura.

Isolamento: 
O sinaleiro trabalha em um local isolado e sombrio, o que contribui para sua sensação de solidão e desespero. Seu isolamento físico reflete seu isolamento psicológico.

Personagens:

O Sinaleiro: Ele é um homem dedicado ao seu trabalho, mas as aparições do fantasma e os subsequentes desastres o deixam em um estado de pavor constante. Sua luta para entender e controlar as visões adiciona uma camada de tragédia pessoal à narrativa.

O Visitante/Narrador: Ele serve como o ponto de vista externo, tentando racionalizar os eventos que o sinaleiro experimenta. Sua descrença inicial se transforma em uma tentativa genuína de ajudar, mas ele permanece impotente diante das forças sobrenaturais.

Ambiente: 
A ambientação do conto é sombria e opressiva, com descrições vívidas do túnel ferroviário e do posto de trabalho do sinaleiro. A escuridão e a desolação do local criam uma atmosfera de mistério e medo, realçando o terror psicológico.

Estilo e Técnica:

Narrativa em Primeira Pessoa: 
A escolha de Dickens de usar um narrador em primeira pessoa permite ao leitor vivenciar a história através dos olhos do visitante, aumentando a sensação de imersão e realismo.

Detalhamento: 
Emprega descrições ricas e detalhadas para criar uma atmosfera palpável. O leitor pode quase sentir a umidade e ouvir os sons do ambiente do sinaleiro.

Simbolismo: 
O fantasma pode ser visto como um símbolo dos próprios medos e ansiedades do sinaleiro, bem como das forças incontroláveis do destino.

Impacto e Relevância: 
"O Sinaleiro" é um conto atemporal que continua a ressoar com os leitores devido à sua exploração de temas universais como o medo, o destino e a fragilidade humana. A habilidade de Dickens em criar suspense e uma atmosfera tensa faz deste conto uma peça clássica da literatura de terror.

Fontes:
José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: Copilot. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Jerson Brito (Asas da poesia) 08


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JERSON LIMA DE BRITO, nasceu em Porto Velho/RO, em 1973, onde reside. Graduado em Administração e Direito pela Fundação Universidade Federal de Rondônia. Sonetista, trovador e cordelista, é membro fundador da Academia Brasileira de Sonetistas (Abrasso), integrante do Fórum do Soneto e Delegado da União Brasileira de Trovadores (UBT) em Porto Velho. Exerce o cargo de Técnico Federal de Controle Externo na SECEX-RO, tendo participado de algumas Mostras de Talentos do TCU. Neto de nordestinos, na infância teve os primeiros contatos com os versos, lendo os folhetos de cordel que seu pai comprava. Já na fase adulta, depois dos 30 anos, deu os primeiros passos na literatura escrevendo sobretudo cordéis. Posteriormente, aderiu aos sonetos e outras modalidades poéticas. Premiado em diversos concursos de trovas, sonetos e cordéis.

Monsenhor Orivaldo Robles (O que fica do que passou)

Tirante a amplitude da circunferência abdominal, a dificuldade de subir ladeira, a urgência em levantar à noite várias vezes, o esforço de fazer a memória pegar no tranco e a facilidade de chorar até em comercial de detergente, não posso dizer que os anos me pesem muito. Tempo houve em que tudo era mais fácil. Ainda assim, não me queixo. Aborrecem-me saudosistas de olhos sempre fixos no passado. Não sofro por não ter de volta o que já foi. “Tudo tem seu tempo” (Ecl 3,1). Comento situações que vivi porque me ensinaram alguma coisa. “O saber não ocupa lugar”, dizia o pai. Já ouvi que, se alguém fala: “Tenho muita experiência”, o que quer dizer é: “Já fiz muita burrada na vida”. Pode ser. Sem negar as tolices que cometi, entendo que a idade também me forneceu lições determinantes de bem viver.

Exemplo: quem viveu meia dúzia de décadas lembra como funcionavam as coisas em família. Pai e mãe davam ordens, filhos obedeciam. Não se respeitava a individualidade dos filhos? Pais eram dominadores? Havia casos, sim, não dá para esconder. Afinal poucos tinham ouvido falar de psicologia. Ainda hoje, apesar do muito que progredimos, quantos podem considerar-se verdadeiro pai ou mãe? Naquela época, então... Às crianças não se davam chances de escolha. Moradia, comida, vestuário, calçado, brinquedo, tudo era decidido pelos pais. Roupa e sapato passavam de filhos mais velhos para mais novos. Sem arrufo, nem esperneio. Sequer em sonho passava pela cabeça de um adulto que criança lhe questionasse uma decisão. Não há como não reconhecer a melhora que conseguimos. Hoje, pais se empenham em acertar na formação dos rebentos. Não se permitem domesticá-los. Nem agir como ditadores.

Alguns, entretanto, talvez tenham virado o fio. Na ânsia de evitar excesso de autoridade optaram por autoridade nenhuma. O ambiente familiar virou do avesso. Antes era quartel, agora virou zorra. Há famílias em que o leme de comando foi entregue a uma gracinha de três anos. Nem fala direito, mas decide tudo. Os pais se julgam antenados. Sei. Esperem mais dez anos para ver.

Outro ponto: cedo aprendi que um homem vale tanto quanto a sua palavra. As pessoas ponderavam bem o que iam falar. Porque, uma vez proferida, palavra não tinha volta. Entrava em vigor com a força de compromisso. Testemunha, assinatura, firma reconhecida, registro público, para quê? O importante tinha sido empenhado: a palavra, que outra coisa não era senão o próprio ser da pessoa externado pela sua voz. Que garantia maior exigir? Ninguém pulava para trás desdizendo afirmação anteriormente feita. Por lucrativa que fosse a vantagem ou rendoso o interesse, honra não se negociava. Ninguém punha em dúvida este aforismo: homem que se vende, ainda que por um mísero centavo, sempre recebe mais do que vale. Bom tempo, sem dúvida, em que, de olhos fechados, se confiava no que a pessoa dizia. Quem sabe, por saudade ou anseio pela volta desse tempo foi que Thiago de Mello escreveu, no Estatuto do Homem: “Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. (...) O homem confiará no homem como um menino confia em outro menino”. Em termos de recursos de comunicação hoje nos encontramos a anos-luz do passado. Ninguém há que não aprecie as fantásticas invenções da técnica e da ciência. Bom seria se o mesmo se verificasse também no respeito à verdade.
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MONSENHOR ORIVALDO ROBLES nasceu em Polôni (SP) em 1941. Estudou em Jales e Poloni e ingressou no Seminário Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto, em 1953. Cursou Filosofia em Curitiba (PR), graduando-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Mogi das Cruzes SP, com diploma reconhecido pela USP, São Paulo. Graduou-se em Teologia no Studium Theologicum de Curitiba, afiliado à Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma. Lecionou no Colégio Estadual Dr. Gastão Vidigal, e no Instituto de Educação, em Maringá (PR) (1967-1969). No Colégio Estadual e na Escola Normal de Paranacity (PR) (1970-1972). Por quase onze anos trabalhou como pároco de Marialva, de onde saiu no início de 1983 para assumir, por seis anos, o cargo de reitor do Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora da Glória - Instituto de Filosofia de Maringá. Em 1989 assumiu a Paróquia Santa Maria Goretti, em Maringá, onde trabalhou por mais de 20 anos. Desde 2009, trabalhou na Catedral Metropolitana de Maringá, exercendo a função de vigário paroquial. Foi palestrante convidado a discorrer, em colégios ou outros núcleos humanos, sobre temas ligados à cidadania, formação pessoal e sobre ética pessoal ou pública. Em 2012 teve publicado o livro "Celeiro Desprovido", com 270 páginas, contendo 118 crônicas e artigos escritos desde 1995. Em 2017, foi publicado o livro dos 60 anos da Diocese de Maringá. Foi articulista mensal ou semanal, por mais de quinze anos, de jornais editados em Maringá, além de ter matérias reproduzidas em revistas ou blogs da região.Faleceu de enfisema pulmonar, em 2019, em Maringá/PR.

Fonte:
Recanto das Letras. Publicado em 19 dez 2011.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/3395981
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

José Feldman (Esquecimento turbulento)

Era uma manhã ensolarada na cidade, e o senhor Astolfo, um avô de 71 anos com uma energia surpreendente para a idade, estava a caminho do mercado com sua neta, Clara, já na fase aborrecente. Eles sempre se divertiam juntos, e aquela manhã não seria diferente. Astolfo estava vestido com sua clássica camisa listrada e um chapéu florido que sua ex-esposa lhe havia dado, enquanto Clara usava fones de ouvido, imersa em seu mundo musical.

Assim que o ônibus chegou, eles entraram e se acomodaram em um banco perto da janela. Astolfo começou a contar histórias sobre quando ele era jovem, enquanto Clara revirava os olhos, mas com um sorriso no rosto. 

— Você sabe, Clara, na minha época, ônibus era muito mais divertido! — começou Astolfo.

— Claro, vovô! E você também caminhava 10 quilômetros na chuva, né? — brincou Clara.

— Não! Eu ia de ônibus! — Astolfo respondeu, rindo.

Depois de algumas paradas, o ônibus chegou a um ponto onde Astolfo decidiu que era hora de descer. Ele olhou pela janela e viu uma loja de ferramentas que lhe chamou a atenção.

— Vou descer aqui! — pensou e se levantou rapidamente. Mas, na empolgação, esqueceu de avisar a neta.

Ao descer do ônibus, Astolfo mal percebeu que Clara ainda estava sentada e, quando ele pisou na calçada, o ônibus começou a se afastar. 

— Clara! — gritou ele, percebendo que ela não tinha vindo junto. O ônibus começou a acelerar, e a expressão de Astolfo mudou de surpresa para pânico. Começou a correr atrás do ônibus.

— Vovô! Volta! — gritou Clara, agora percebendo que ele havia descido sem aviso. 

Ela pulou de seu assento e se aproximou da janela, olhando para ele com os olhos arregalados.

Os passageiros do ônibus, vendo a cena que se desenrolava, começaram a rir e a incentivar Astolfo.

— Vai, seu moço! Corre! — gritou uma senhora de cabelo grisalho, batendo palmas.

— Mais rápido, campeão! — gritou um jovem com um boné de lado.

Um passageiro distraído, sem estar ciente do ocorrido:

– Deixa de ser muquirana, rapaz, tá querendo economizar no ônibus? Corre atrás do táxi que economiza mais! 

Astolfo estava determinado. Com o chapéu quase caindo, ele começou a correr com todas as suas forças. O ônibus, por sua vez, parecia estar em um filme de ação, com motoristas e passageiros assistindo à cena como se fosse um espetáculo.

— Clara! — ele gritava, enquanto as pernas pareciam não responder à sua vontade de correr mais rápido. — Espera!

Clara, do outro lado, gritava:

— Vovô, vem mais rápido! O ônibus não vai esperar!

O motorista, vendo a cena no retrovisor, decidiu dar uma freada para que Astolfo pudesse alcançá-los. O ônibus parou abruptamente, e a situação se transformou em um verdadeiro espetáculo.

Astolfo, aliviado por ter conseguido alcançar o ônibus, fez um esforço final e se lançou em direção à porta. Mas, em vez de conseguir entrar, ele acabou batendo na traseira do ônibus com "cara de tacho", quase escorregando. A cena foi tão cômica que todos os passageiros explodiram em risadas.

— Olha a cara do vovô! — Clara não conseguiu conter a risada, enquanto Astolfo se endireitava, ruborizado, mas também rindo da própria situação.

— Ah, que susto! — ele disse, tentando recuperar a compostura. — Eu pensei que você iria embora!

— E eu pensei que você estava se preparando para a São Silvestre! — respondeu Clara, ainda rindo.

O motorista, com um sorriso, abriu a porta para Astolfo entrar e disse:

— Vamos lá, seu moço. Suba logo antes que eu mude de ideia!

Astolfo, agora mais calmo, entrou no ônibus, e os passageiros continuaram a rir e a aplaudir.

— Isso foi uma corrida épica! — gritou o jovem do boné.

Astolfo se sentou ao lado de Clara, que ainda estava se recuperando da risada.

— Nunca mais vou descer sem avisar você, Clara! — ele disse, respirando fundo.

— Eu espero que sim, vovô! Assim você não vira o “Super Vovô” das corridas de ônibus! — ela brincou.

E assim, enquanto o ônibus seguia seu caminho, Astolfo e Clara continuaram a rir, prometendo que, na próxima vez, ele definitivamente avisaria antes de descer. Aquele dia se tornaria uma das memórias mais engraçadas da relação entre avô e neta.

Fontes:
José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

                                                                             Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Nilto Maciel (O oráculo)

Guilhermartins orgulhava-se de sua sem par biblioteca que, de vez em quando, aparecia na imprensa. Dizia o colunista social: O intelectual Guilhermartins, dono da mais rica coleção de alfarrábios, jantava ontem ao lado da bela Antonieta Brochado. O repórter vulgava: Chega-se a duvidar da existência do Tratado do Amor do Diabo, de Abulcámim Abdelhákem, tal a sua raridade.

Ao lado das fileiras de franceses, brasileiros, javaneses, acumulavam-se pilhas de revistas e jornais: O Chauffeur Moderno, Revista do Foot-Ball, O Positivista Mineiro, Diário da América, Gazeta do País, Revue des Cinq Mondes, Il Fanfulla, La Hacienda, The Marine Engineer e outros.

Perguntado em que coisas gastara seu tempo enquanto vivera, disse que lera desde A Aarônica Aba Ababá, novela mentirosa sobre os costumes dos índios ababás, escrita pelo cearense José de Alenquer, até Zwinglio Zuruó, biografia moleque de autoria do soviético Alexey Chirikov.

Perguntado quanto tempo havia que era leitor, disse que havia oitenta ou setenta e nove.

Estas e outras perguntas e respostas encontram-se publicadas nos jornais, assim como as segundas, um tanto modificadas, como afirmações de outras pessoas, em periódicos mais antigos. Por exemplo, é da edição de 27 de novembro de 1937 do Diário da América o seguinte trecho do pesquisador Salomão Souto: “A Aarônica Aba Ababá, novela fantástica sobre os costumes dos índios ababás, foi escrita por José de Alenquer.”

A primeira refeição de Guilhermartins consistia de café com manchetes. Um gole aqui, um golpe ali, um sorvo agora, um corpo morto no canto da página, uma sorvedura apressada, uma ditadura derrubada. Dos títulos passava às matérias e o golpe se enchia de sangue, estrelas, tanques nas ruas, pronunciamentos, prisões, decretos, viva o general.

Esse hábito de não comer pão nem mamão, leite ou azeite após o sono se constituiu ao longo de décadas de falta de tempo para fazer uma refeição mais rica, porque apetite não lhe faltava, nem sua fazenda parecia pequena.

Vivendo assim, não podia sonhar senão realidades, quer dizer, realidades futuras, fatos vindouros, porém, logicamente relacionados aos do passado dia. Assim, se antes de pegar no sono lia sobre o nascimento do filho da princesa, no sonho lhe aparecia a relação dos prováveis nomes reais do infante às mãos do príncipe. Pulava da cama, agarrava os jornais e ria de mais um crime da imprensa – todos copiavam seus sonhos.

Entre suas previsões mais assombrosas citam-se o lançamento do Sputnik, a destruição de Israel, a publicação de A Cachoeira das Eras, de Carlos Emílio Corrêa Lima, e a morte de Stalin.

Um crítico, de sua amizade, chegou a chamar-lhe de o oráculo da era atômica. Guilhermartins riu e explicou: a História é uma novela; o novelista, um gênio anônimo. Os teístas o insultaram. O gênio tinha nome, sim senhor: Deus. Os ateístas defenderam-se: não existia esse tal gênio.

Disse mais Guilhermartins: considerava-se apenas o mais atento e inteligente espectador, daí poder ler o próximo capítulo antes de publicado. E recusou convites para polemizar. Faltava-lhe tempo para falar. Mandava um pequeno texto sobre a questão. Discutissem-no à vontade.

De fato, estafetas e jornaleiros não paravam de bater à sua porta, sobraçando pacotes das mais variadas procedências. Jornais da Jordânia, revistas revanchistas alemãs, boletins de laboratórios farmacêuticos, informativos panteístas, publicações de guerrilheiros e terroristas, relatórios acadêmicos e divulgações de seitas novas.

Não se esquecia de si mesmo Guilhermartins. Colecionava tudo o que a imprensa publicava sobre sua pessoa. Na primeira folha do álbum, a notícia de seu nascimento. A partir daí, entrevistas, artigos, crônicas, reportagens.

Uma dessas crônicas, do poeta Carlos André, começa assim: “Há quarenta anos conheço e pratico esse raro Guilhermartins, e ainda não me arrependi de o ter achado. Pois o achei, posto que o procurasse sem o conhecer. Valeu como achar a edição príncipe de O Grande Pânico, de Airton Monte."

Tomam três ou cinco folhas as reportagens sensacionalistas sobre seu divórcio. Num deles, sua mulher o chama de maníaco, leitor inveterado, comedor de traças, intelectual onisciente, o diabo.

Um dos artigos mais pomposos sobre sua pessoa intitula-se “O Mago Guilhermartins” e o equipara a Wronski, o inventor da máquina de predizer.

Apesar da enorme quantidade de publicações que diariamente recebia, Guilhermartins sabia de cor os nomes de todas elas e até os dias em que deveria recebê-las. Deu-se então de um dia o estafeta esquecer-se de levar-lhe o Informativo Cabalístico. O assinante vomitou insultos: irresponsável, inimigo da informação, mulherengo, nazista. E o entregador de jornais perdeu a paciência: maníaco, judeu, alienado, filho de satã. E saiu aos brados.

Fulminado por tão duras palavras, Guilhermartins sentou-se sobre os pacotes, abatido, triste, decepcionado.

– Eu, maníaco? Sim, por que não? De que me serve o conhecimento ? Para que passo a vida a ler, a me informar de tudo? Tenho vivido aqui, cercado de livros, revistas, jornais, envelhecido diante de tudo isso. Que fiz afinal da vida? Ou ainda é tempo de mudar, de fugir dessa caverna, de sair do ovo, de pular para o mundo?

E saltou para a rua, a gritar que sabia de tudo, conhecia tudo, o passado e o presente e até um pouco do futuro. Cercaram-no curiosos e ele subiu a uma janela. Pôs-se a falar de guerras e pazes, enchentes e secas, golpes e revoluções, tudo sem nenhum sentido, misturado, confuso.

– É o sábio Guilhermartins.

– Um doido varrido.

– O diabo em pessoa.

Pouco a pouco, todos se afastaram e ele se calou. Coçou a cabeça, arregalou os olhos, sorriu. E correu aos jornais e emissoras. Noticiassem: Guilhermartins convocava a população para uma conferência sobre o conhecimento humano. Na maior praça de esportes da cidade. Entrada franca. A partir do fim da tarde. Sem horário previsto para o encerramento. Podiam decretar greve geral. Assim, todos estariam livres para comparecer ao espetáculo.

Não falaram de greve, porém, milhares de pessoas se atropelaram desde o começo da noite diante do estádio. A cavalaria não sossegou de pisotear a multidão.
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Nilto Maciel nasceu em Baturité/CE em 1945. Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Em parceria com outros escritores, no ano de 1976 criou a revista Saco. Transferiu-se no ano seguinte para Brasília, trabalhando na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça do DF. Em 2002 foi para Fortaleza/CE onde residiu até a sua morte em 2014. Venceu inúmeros concursos literários, e escreveu diversos livros, tendo contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. Além de contos e romances publicados, também Panorama do Conto Cearense, Contistas do Ceará, Literatura Fantástica no Brasil. Alguns livros publicados: Contos Reunidos vol. I, são os 66 contos escritos por Nilto em seus livros Itinerário (1974 a 1990), Tempos de Mula Preta (1981 a 2000) e Punhalzinho cravado de ódio (1986). O volume II conta com 122 contos dos livros As Insolentes patas do cão (1991), Babel (1997) e Pescoço de Girafa na Poeira (1999). 
"Nilto possui esta capacidade de fazer com que nossas almas percorram desde um estado de profunda tristeza ao de êxtase. Não é apenas um escritor, são muitos escritores dentro de um só. A cada conto terminado, aflora o anseio pelo próximo. Aonde Nilto nos conduzirá agora? Cada conto é um conto, que faz com que nossa imaginação nos leve às vezes a adentrar dentro dele e participar, deixando que nos levemos pelo seu encanto, pela sua linguagem simples e deliciosa." (José Feldman, em Nilto Maciel o mago das almas, 18/12/2010)

Fontes:
Nilto Maciel. Punhalzinho Cravado de Ódio, contos. Secretaria da Cultura do Ceará, 1986. Enviado pelo autor.
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segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Luiz Poeta (Nuvens de Sonhos) 08

 

José Feldman (O Jogo das Ilusões)

Texto construído tendo por base a trova de Solange Colombara (São Paulo/SP)
O mentiroso pensou
ter enganado a donzela...
Por interesse casou,
mas quem o enganou, foi ela!

Na pitoresca vila de São Lucas, onde as casas coloridas se alinhavam como um arco-íris e as flores perfumavam o ar, havia um jovem chamado Álvaro. Ele era charmoso e tinha um sorriso que derretia corações. No entanto, por trás daquela fachada encantadora, Álvaro carregava um segredo: ele era um mentiroso contumaz. Sua habilidade de enganar os outros era quase uma arte, e ele usava isso para conseguir o que desejava.

Certa vez, durante uma festa à beira do rio, Álvaro conheceu Isabela, uma donzela de beleza estonteante e inteligência aguçada. Desde que se olharam pela primeira vez, ele ficou fascinado. Isabela não era apenas uma moça qualquer, ela tinha uma aura de mistério e uma sagacidade que o intrigava. 

Mas, como sempre, Álvaro viu em Isabela uma oportunidade. Ele decidiu que a conquistaria não por amor, mas por interesse: seu pai, um próspero comerciante, possuía uma fortuna considerável.

Álvaro começou a cortejá-la, usando todo o seu charme e persuasão. Ele contava histórias fantásticas sobre suas viagens, suas conquistas e seus planos grandiosos para o futuro. Isabela, no entanto, era mais esperta do que ele imaginava. Embora se sentisse lisonjeada pela atenção, ela percebia que havia algo de superficial nas promessas de Álvaro. Mas o jogo de sedução a divertia, e ela decidiu seguir na dança.

Com o decorrer dos meses, Álvaro foi se envolvendo cada vez mais com Isabela, mas sempre com um pé atrás. Ele a via como um meio para alcançar seus objetivos. Quando finalmente pediu sua mão em casamento, ele estava convencido de que tinha enganado a moça. 

Casaram-se em uma cerimônia belíssima, rodeados por amigos e familiares, e Álvaro não podia deixar de pensar o quanto foi bem sucedido o seu plano.

No entanto, a verdadeira trama começou a se desenrolar após o casamento. Isabela, que parecia ser a moça ingênua que Álvaro pensava ter enganado, revelou-se uma mulher astuta e determinada. Ela não era apenas uma herdeira de um grande patrimônio, era também uma empresária perspicaz, bem informada sobre os negócios de seu pai e sobre como o mundo funcionava. Aos poucos, ela começou a perceber que Álvaro não era o homem que ele havia pintado em suas histórias.

Certa noite, enquanto Álvaro se gabava de seus “feitos” em uma conversa, Isabela decidiu dar o troco. Com um sorriso enigmático, ela começou a contar histórias sobre suas próprias "aventuras". Falou sobre como havia viajado por terras distantes, feito investimentos inteligentes e se envolvido em negócios lucrativos. 

Álvaro, que estava acostumado a ser o centro das atenções, começou a se sentir desconfortável. Ele percebeu que Isabela não era uma moça desavisada, mas uma mulher que poderia, de fato, ser sua parceira em vez de apenas um troféu.

As semanas se passaram, e Álvaro se viu cada vez mais encurralado. Isabela começou a administrar os bens do casal com uma habilidade que ele nunca imaginara. As histórias de suas "aventuras" se tornaram realidade, e logo ele percebeu que sua esposa era mais do que apenas uma herdeira: ela era uma força a ser reconhecida. O que ele via como uma conquista se transformou em um desafio, e a verdade começou a emergir.

Certa manhã, enquanto Álvaro revisava as contas da casa, encontrou um documento que o deixou intrigado. Era um contrato de sociedade que Isabela havia assinado com um grupo de investidores. Ao ler os detalhes, percebeu que Isabela não apenas conhecia o valor do dinheiro, mas também sabia como multiplicá-lo. O que ele pensava ser uma vida de luxo às custas da fortuna dela se tornara uma parceria em que ele não tinha controle.

Com o passar do tempo, a confiança que Álvaro tinha em sua própria capacidade de manipulação começou a desmoronar. Ele se sentia cada vez mais impotente e, em suas tentativas de manter a aparência de um marido bem sucedido, começou a mentir indiscriminadamente. Mas, para a sua surpresa, Isabela estava sempre um passo à frente. Ela sabia de suas mentiras e, em vez de confrontá-lo de imediato, decidiu usar isso a seu favor.

Certa noite, enquanto Álvaro tentava impressionar os amigos em um jantar, ele começou a contar uma história que envolvia uma conquista de negócios que, na verdade, nunca havia acontecido. Isabela, com um sorriso no rosto, interrompeu-o. “Álvaro, você se esqueceu de mencionar aquele investimento que fizemos juntos, não é? O que você está contando é um pouco diferente da realidade.” 

O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Os amigos de Álvaro trocaram olhares confusos, e ele percebeu que a máscara estava prestes a cair.

A partir daquele momento, Isabela começou a tomar as rédeas da situação. Ela não fez um escândalo, em vez disso, usou sua inteligência e astúcia para transformar a dinâmica do relacionamento. Com um jeito gentil, mas firme, ela começou a fazer com que Álvaro percebesse o valor da honestidade. Ele, que pensava ter enganado a moça, agora se via engolido por suas próprias mentiras.

Isabela não apenas se tornou a administradora dos bens do casal, mas também a mentora de Álvaro. Com paciência e compreensão, ela o ensinou sobre a importância da transparência, da verdade e da parceria. Ele começou a perceber que suas mentiras não o protegiam, mas o isolavam. A vida a dois se transformou em um aprendizado mútuo, onde ambos se tornavam melhores a cada dia.

Com o tempo, Álvaro aprendeu a ser mais verdadeiro, não apenas consigo mesmo, mas também com Isabela. O amor que antes parecia baseado em interesses tornou-se uma relação autêntica, onde ambos se apoiavam e cresciam juntos. Ele começou a admirar a força e a determinação de sua esposa, e, mesmo que o início de sua história tivesse sido repleto de erros, o final prometia ser diferente.

Anos depois, quando olhavam para trás, ambos riam das artimanhas que haviam usado no início de seu relacionamento. Álvaro percebeu que, embora tivesse tentado enganar Isabela, foi ela quem realmente o havia ensinado sobre o amor verdadeiro. Em vez de um conto de fadas, sua história era uma narrativa de crescimento, de superação e de aprendizado mútuo.

E assim, a lição ficou clara: as mentiras podem enganar por um tempo, mas a verdade sempre se revela. Na dança do amor, quem tenta manipular pode acabar sendo o manipulado, e o que parece um jogo de interesses pode se transformar em uma parceria genuína.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, morando atualmente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes: 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Antonio Brás Constante (Bicho de pé, um mal emocional)

“De médico e de louco todos nós temos um pouco”, já dizia uma antiga frase popular. Porém, geralmente preferimos (sabiamente) procurar quem tem bastante conhecimento sobre estas especialidades (loucura e sanidade), ao invés de ficarmos nos tratando sozinhos, amparados em nosso pouquíssimo conhecimento no assunto.

Entre os diversos ramos da medicina, um que se destaca por tentar curar um mal invisível que aparentemente não é encontrado fisicamente em nosso corpo, pois fica enterrado nas sombrias alas de nossas mentes, é a psicologia e seus assemelhados.

A psicologia é algo realmente incrível, pois consegue “entrar” na cabeça de alguém (sem necessariamente ter entrado lá), desvendando seus mistérios, elucidando suas dúvidas, melhorando sua forma de viver. Tudo isto por um preço tabelado e feito em doses temporais chamadas de consultas, algumas vezes por semana.

Estes profissionais conseguem promover verdadeiros milagres em nossas mentes. Poderíamos supor que, caso pudessem se comunicar com um bicho-de-pé, por exemplo, fatalmente acabariam convencendo-o a largar do pé das pessoas, fazendo com que assumisse uma nova postura. Quem sabe até tornando-se vegetariano, trocando o pé humano por um pé-de-couve ou por um pé-de-alface.

Pode parecer bobagem, mas existe uma possibilidade mínima de que no passado o bicho-de-pé fosse apenas um bichinho qualquer, sem maiores vínculos com o ser humano, e que talvez de tanto pisarmos nele (literalmente falando), tenha se estressado e resolvido começar a pegar no nosso pé, passando a morar nele.

Os psicólogos conseguem nos explicar o inexplicável. Valendo-se do silêncio, de perguntas simples, ou de frases vagas.  Se quisessem, poderiam ilustrar a origem da vida utilizando uma toalha de crochê como modelo.

Se pensarmos bem, a origem da vida realmente poderia se traduzir em uma toalha de crochê, pois olhamos para ela sem entender como foi feita daquela forma (ao menos eu não entendo), ou pelo simples fato de se criar algo que parece ser extremamente complexo a partir de uma linha e uma pequena agulha que mais parece uma miniatura de arpão.

Talvez se mais e mais pessoas começassem a fazer crochê, conseguiríamos finalmente descobrir porque o mundo é assim, ou ao menos teríamos pessoas mais calmas, já que o crochê também é uma ótima terapia, e com isto acabaríamos causando o desemprego de inúmeros terapeutas (primos dos psicólogos), que se arrependeriam de ter um dia deixado seus parentes tentarem explicar a origem da vida através daquela forma de artesanato.

Eles passariam então a tentar proibir o crochê, insinuando que aquilo seria coisa do demônio (sabendo que as pessoas levam muito a sério estes apelos religiosos), e que poderiam explicar melhor a tal teoria em sessões de terapia pagas (mas com descontos enlouquecedores), ou poderiam eles mesmos começar a fazer crochê e assim ficaria tudo bem.

Enfim o mundo é um lugar estranho, que merece uma analise profunda. Coberto de pessoas estranhas, vivendo vidas estranhas e lendo coisas estranhas. Um lugar ideal para existência desses estranhos e maravilhosos profissionais que exercem a psicologia, psiquiatria, terapia e tantas outras “ias” mais.
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ANTONIO BRÁS CONSTANTE é natural de Porto Alegre. Residente em Canoas RS. Bacharel em computação, bancário e cronista de coração, escreve com naturalidade, descontraída e espontaneamente, sobre suas ideias, seus pontos de vista, sobre o panorama que se descortina diferente a cada instante, a nossa frente: a vida. Membro da ACE (Associação Canoense de Escritores).

Fontes:
Recanto das Letras
https://www.recantodasletras.com.br/humor/804261
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domingo, 26 de janeiro de 2025

Erigutemberg Meneses (Cascata de versos) 08


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JOSÉ ERIGUTEMBERG MENESES DE LIMA nasceu em Fortaleza/CE, radicou-se em Blumenau/SC. Advogado aposentado do Banco do Brasil, com graduação em Ciências Econômicas e Direito pela FURB - Fundação Universidade Regional de Blumenau, dedica-se às letras, escrevendo prosa na forma de crônicas, contos, ensaios, textos jurídicos e poesia, especialmente, sonetos. Publicou “Raptos Líricos” - Sonetos, 2005; Portas da Solidão pela Fundação Cultural de Blumenau, 1996.

André Giusti (O Mais Novo Grande Senhor do Tempo)

Por que resolvera, de repente, a caminho dos 40 anos, usar relógio, era para ele mesmo um mistério daqueles encruados nas cavernas das razões desconhecidas. Em toda a vida tivera um único relógio. Em algum natal bem remoto, talvez no princípio da adolescência, o pai dera-lhe um bem vistoso, a pulseira cromada, o fundo azul perolado, os minutos e os ponteiros amarelos que brilhavam com a luz apagada para que fosse possível olhar as horas até mesmo no escuro. Usou um, dois meses se tanto. Um dia foi jogar futebol no intervalo rápido do recreio na escola, uma pelada daquelas bem improvisadas com bola feita de papelão amassado e grudado com durex. Tomou um toco de um moleque maior e o pulso em que estava o relógio foi beijar a fria dureza do chão de cimento. Sobraram apenas os estilhaços do vidro. O ponteiro das horas pulou longe, jamais foi encontrado.

Nunca mais, nunca mais te dou outro, o pai sentenciou sem raiva, embora não disfarçasse a pequena mágoa pelo descaso com o presente. Se aquilo foi trauma de infância, acabou virando peculiaridade bem resolvida de adulto: cresceu com os pulsos livres, vazios daquele peso, aprendendo a calcular as horas pelo sol, feito um índio urbano. Nos dias de chuva, perguntava as horas aos apressados que perseguiam o tempo. As vitrines das joalherias nunca roubaram seus olhos. Com o passar dos anos, não usar relógio afigurou-se como um ato reservado de rebeldia. Enquanto amigos erguiam modelos caros e robustos a prova d’água, a prova de choque, a prova de tudo, ele levantava o braço, deslizava as mãos pelo cabelo, indicava com o dedo um ponto distante, enfim, fazia qualquer movimento que permitisse aos curiosos reparar em seu pulso vazio. De vez em quando pendurava ali um elástico desses de embrulho. Fazia isso para debochar não sabia exatamente do quê. Quando um primo da namorada, sujeito com quem ele não ia muito, apareceu ostentando um modelo dourado desses que valem um carro semi-novo, comprou uma fita do Senhor do Bonfim e usou-a até que praticamente virasse pó.

Portanto, qual não foi o impacto de ver e sentir aquele peso sobre o pulso que julgava fino, que em tempo algum combinou com uma pulseira ateada a uma forma esférica de metal e vidro. Por um instante teve a impressão de que não era dele o próprio braço, e sim que o membro de outra pessoa fora-lhe enxertado às pressas, trazendo de brinde o elegante modelo suíço de pulseira de couro marrom e algarismos romanos. Presente da mulher, que pousava nele uns olhos amorosos, e que no fundo eram também os olhos doces do pai, concedendo-lhe uma segunda chance. Enquanto a esposa risonha estendia-lhe a mão para que saíssem da joalheria, o ponteiro veloz dos segundos deixava cada vez mais longe o rapaz que gastava o dinheiro apenas em livros de sebo e discos de rock. Ficara sozinho - cismado em um mundo triste e apressado - o adulto que adquirira a mania de chegar na hora, encurralado pelo horário de entrar no trabalho e deixar o filho na escola.

Quarenta, cinquenta minutos andaram pelas galerias do shopping. Ele sentindo-se um comunista aceitando ideias liberais, um ateu que tenha recebido provas da existência de Deus. Ia a passos lentos e medrosos ao lado da esposa. Disfarçadamente, sem que ela percebesse, tirou o relógio do pulso esquerdo e colocou no direito para que mesmo dentro do enquadramento social pudesse ainda existir um resto de transgressão. Estranho objeto o relógio, que para ser contrário ao padrão comum precisa estar na direita.

O senhor pode me dizer que horas são? Uma gorduchinha de seus vinte e poucos anos perguntou quando encostaram em um balcão para tomar café. Olhou-a e a princípio pensou que havia engano. Deu-se conta, afinal, e disse as horas sem muita certeza do que via nos ponteiros. Quando saíram dali, ele conferiu as horas, mais calmo, reparando melhor no mostrador, no brilho dos metais e do vidro, e caminhou um pouco mais depressa como um perfeito e grande senhor do tempo.
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ANDRÉ LUIS DE ALMEIDA GIUSTI nasceu em 1968 no subúrbio carioca de Cascadura. Passou a infância, a adolescência e boa parte da vida adulta no eixo subúrbios/zona norte do Rio de Janeiro, universo que levou para seus contos, criando personagens quase sempre filhos da classe média de bairros dessa área da cidade. No começo dos anos 90, começou a escrever contos, o que veio exatamente ao encontro de seus anseios literários. Entre 1992 e 1994, escreveu os contos de seu primeiro livro, Voando Pela Noite (até de manhã). No ano seguinte, o livro foi indicado ao Prêmio Jabuti. Em 1998 mudou-se para Brasília. Impregnado de saudades do Rio, escreveu Eu nunca fecharei a porta da geladeira com o pé em Brasília, uma novela quase autobiográfica de seus primeiros meses na capital do país. Em 2009 seu quarto livro: A liberdade é amarela e conversível. Também é jornalista, com passagens por diversas rádios e TVs do Rio e de Brasília.

Fontes:
http://www.andregiusti.com.br/ . Acesso 01 fevereiro 2010
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Francisco de Morais Mendes (O Homem que Recolhia o Tempo)

Numa velha sacola de feira, ele recolhia o tempo deixado pelos outros. Como fazia isso, não se sabe. Para ele, homem solitário, que vivia entre a casa e o serviço, a palavra “repartição” não designava apenas o local de trabalho. Cabia-lhe, como servidor público, cuidar das horas, repartir o tempo entre os colegas. Havia quinze anos executava com diligência a mesma tarefa: zelar pelo ponto, abonar as faltas justificadas, converter o excedente de horas em pagamento. O tempo era público.

Contudo, sofria de um mal sem remédio. Pressentia o correr dos dias, dos meses, dos anos, como uma subtração da vida. O tempo escapava-lhe enquanto acumulavam-se coisas por fazer. A perda do tempo é individual, lamentava.

À noite, em casa, recostado à velha poltrona de couro, sentia o peso de dois mil livros não lidos. E lia metodicamente. Olhando à esquerda, um infatigável atlas oferecia-lhe países por visitar. E ele mal saíra da cidade. À direita, centenas de obras aguardavam releitura.

Pensando constantemente no tempo, observava que boa parte do que se fala contém essa palavra vaga, sem peso, sem consistência. Certo dia, num corredor da repartição, ouviu de uma grávida que faltavam quatro meses para o bebê nascer. Então ocorreu-lhe que, durante a gravidez, ela deixava sem uso um outro tempo. O que primeiro pareceu-lhe uma brincadeira, uma anedota, tomou a forma de idéia. Depois de algumas noites em que se pegava pensando na grávida, supondo que estivesse assaltado por uma paixão em todos os sentidos inoportuna, o assunto passou de idéia a teoria. Não era a grávida que o atormentava. Era o tempo.

Formulou, então, a teoria dos tempos laterais, que correm simultaneamente na vida das pessoas. Pela última vez voltou a pensar na grávida, para explicar a si mesmo sua teoria. A vida segue num tempo que ele, como todo mundo, chamava de normal, mas qualquer alteração ou acidente põe em funcionamento um tempo dos que correm lateralmente àquele, que ele chamava de tempo outro. Durante o período da gravidez, tomado como uma alteração, o tempo normal continua a passar, mas em desuso, um cão sem dono vagando por aí.

Durante alguns dias, observou o que classificou de amostras da sua teoria. Há um tempo largado aqui fora pelas pessoas que baixam ao hospital. Há um tempo de ócio enquanto trabalham. Esse tempo ocioso fica com unhas e engrenagens à espreita, aguardando que a pessoa deixe o trabalho; acompanha-a até o ponto do ônibus, e enquanto, após um banho quente, a pessoa decide se liga a tevê ou coloca um disco para tocar, ele está pronto para seguir. Em outra circunstância, enquanto a pessoa mergulha a atenção no noticiário do rádio, fica desocupado o tempo da distração. Nenhum deles deixa de correr.

Certa noite, acomodado na poltrona, voltou a refletir. Era preciso recolher o cão sem dono. A outro, não iria fazer falta. A ele, o livraria da aflição.

Na manhã seguinte, mexendo no quarto de coisas abandonadas, encontrou a sacola que passou a carregar. Das grávidas, subtraía o tempo da não gravidez. Dos colegiais em algazarra à saída da escola, recolhia variadas espécies de tempo. Do sujeito que lia no ônibus, tomava o tempo de olhar pela janela. O mais surpreendente eram aquelas pessoas que parecem pensar em coisa alguma, absolutamente desligadas. Dessas, fluíam, ou melhor, jorravam tempos em profusão. E recolhia, recolhia, recolhia.

Voltara a ler sem ansiedade, sabendo que acumulava considerável reserva de tempo. Em pelo menos um momento, levantou os olhos do livro e pensou na imortalidade. Deu um breve sorriso, sem precisar recorrer ao espelho para encontrar o que supunha um rosto rejuvenescido. Voltou a concentrar-se na leitura. O tempo, agora, não passava; vinha até ele. O cão encontrara o dono.

Certa manhã, depois de ler no jornal sobre um sujeito condenado a muitos anos de prisão, foi tomado de grande ansiedade. Ocupado em juntar os tempos dispersos no presente, não lhe ocorrera tocar num tempo futuro. Nem sequer havia pensado nisso. No entanto, vislumbrava que aquele tempo podia ser recolhido de uma única vez. Tenho que capturar o tempo que ele deixa aqui fora, mas onde estará?, pensou, quase faltando-lhe o ar. Saindo às pressas com a sacola, sem saber exatamente onde buscar aquela fatia esplêndida de tempo, distraiu-se numa travessia e, atropelado por um caminhão de mudanças, teve morte instantânea.

Corroída pelo tempo e pelo uso, ficou a sacola jogada num canto da rua. Os que olhavam em seu interior, de algum modo sabiam que vazia não estava; era um engano dos olhos. Afastavam-se ao sentir uma espécie de sufocação. A que não sabiam nomear. 
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FRANCISCO DE MORAIS MENDES é jornalista e escritor de Belo Horizonte/MG. Publicou os livros de contos “Escreva, querida” (Mazza Edições, 1996) e “A razão selvagem” (Ciência do Acidente, 2003). Vencedor dos prêmios “Guimarães Rosa”, do governo do Estado de Minas Gerais, “Cidade de Belo Horizonte”, da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, e “Luiz Vilela”, da Fundação Cultural de Ituiutaba.

Fontes:
Letras e Ponto. Acesso 28 nov 2011.
http://www.letraseponto.com.br/textos_listar.php?id=23
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