sexta-feira, 7 de março de 2025

Antonio Brás Constante (Você sabe distinguir entre o certo e o errado?)

O ser humano é capaz de agir de acordo com um princípio moral coerente? E você? Você acredita ter a capacidade necessária para resolver seus próprios dilemas éticos? Outro dia li sobre um estudo feito por um pesquisador chamado Hauser, através do livro “Deus, um Delírio”, do escritor Richard Dawkins, onde foram colocados alguns dilemas morais a uma série de indivíduos, buscando respostas para estas perguntas.

No primeiro dilema haviam cinco pessoas presas aos trilhos de uma ferrovia, e você (sim, você leitor) tinha acesso ao centro de comandos dos trilhos. Um trem desgovernado vinha em direção a essas pessoas, e somente você poderia desviá-lo para uma linha secundária salvando a vida dessas pessoas, porém, na linha secundária também havia uma pessoa presa aos trilhos, ou seja, salvando as cinco pessoas você mataria o infeliz que estava sozinho, sabe-se lá fazendo o quê, nos outros trilhos. De acordo com o livro de Dawkins, diante deste dilema, aproximadamente 90% dos entrevistados, optou por sacrificar aquela pessoa solitária para salvar as outras cinco.

No segundo dilema havia cinco pacientes em um hospital que precisavam de transplante, cada um necessitava de um órgão diferente, você era o médico-cirurgião responsável pelo hospital, e descobriu que havia uma pessoa na sala de espera que era compatível com aqueles cinco pacientes, a pergunta agora é, se não existissem complicações jurídicas, apenas morais, você sacrificaria essa pessoa para salvar as outras cinco? Em torno de 97% dos entrevistados disse que era imoral matar alguém para salvar os pacientes.

Agora vamos misturar tudo e colocar os cinco pacientes no trilho principal do trem e o homem da sala de espera no trilho secundário, neste caso haveria ou não problemas na morte do homem sozinho para salvar os outros? Pode-se notar que no primeiro caso o arauto da morte é um fator externo (o trem) e que todos são vítimas sem qualquer conexão com o artefato, já no segundo caso o fator “morte” está intrínseco a cada um dos cinco doentes, como uma espécie de sina destinada a eles, neste caso pareceria injusto que outro indivíduo fosse sacrificado para salvá-los.

Na reflexão sobre estes dilemas o peso da decisão tende a se alterar quando novos elementos são apresentados, tais como: E se algum dos cinco pacientes fosse próximo a você (mãe, irmão, sogra, namorado cabeludo e tatuado da sua filha, etc), e o homem sozinho fosse um total desconhecido, ou quem sabe um corrupto, ou até sua ex-mulher? E se fosse o contrário? No caso dos trilhos, e se os cinco indivíduos fossem procurados pela polícia? E se a pessoa sozinha fosse uma criança? E se você tivesse que arremessar a pessoa nos trilhos para salvar as outras? E se essa pessoa fosse Madre Tereza de Calcutá? Ou Hitler? Ou se fosse seu filho...

Nossa mente vai dançando conforme as situações que vão se apresentando, onde o certo e o errado vão mudando de lado a cada nova informação, mas no fundo o resultado final é sempre o mesmo, trocar cinco vidas por uma ou vice-versa. Outro fator interessante é que quando apresentado em pequenas proporções, muitas vezes não nos damos conta do que podem representar tais escolhas, mas quando multiplicamos os números, nossa percepção muda, por exemplo, ao invés de cinco pessoas aumente para cinquenta milhões, e troque o indivíduo solitário por uma minoria de alguns milhões de habitantes, e perceberá como estas escolhas soam parecidas com aquelas difundidas pelas tiranias, para justificar seus genocídios históricos.

Dispomos em nossa herança genética de vínculos relacionados ao senso moral inerente a cada indivíduo. Algo forjado nos mesmos primórdios que definiram os sentimentos e sentidos de autopreservação de nossas vidas. Apesar de entendermos muitas de nossas escolhas como emocionais, elas acabam tendo raízes bem mais profundas e desconhecidas dentro de nossa frágil cabeça, do que podemos imaginar.

Somos um produto da evolução, que nos moldou tal qual um boneco de barro para se chegar até onde nós chegamos. E apesar de ser desprovida de qualquer mágica, o resultado de toda esta ciranda existencial é algo verdadeiramente encantador em seu produto atual e não final, pois assim como o universo, nós também somos obras inacabadas do ponto de vista macro de nosso desenvolvimento como raça, porém, finalizados diante de nossa finita condição humana.
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ANTONIO BRÁS CONSTANTE é natural de Porto Alegre. Residente em Canoas RS. Bacharel em computação, bancário e cronista de coração, escreve com naturalidade, descontraída e espontaneamente, sobre suas ideias, seus pontos de vista, sobre o panorama que se descortina diferente a cada instante, a nossa frente: a vida. Membro da ACE (Associação Canoense de Escritores).

Fontes:
Recanto das Letras. 16 agosto 2009.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/1756856
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terça-feira, 4 de março de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 23 *


 

Manuel de Oliveira Paiva (Pobre Moisés que não foste!)

A janela estava aberta ao luar: porém, de uma grande amendoeira, que subia quase apegada aos altos muros da casa, caíam sombras negras fazendo lavores imensos no pano do caiamento, e assim, era numa grande mancha, preta como uma nuvem de chuva, que a janela emoldurava-se, adquirindo as parecenças de um remendo quadrilongo, de um tampo de fogo, sobre um pano de trevas. Uma cabecinha loira despontou do ambiente luminoso, e rapidamente fechou-se. Ficou tudo no escuro cá fora, a não ser a face dos corpos onde batia o luar. O murmurejo das ondas ressoava como a escoar pelo chão.

O regato achatava-se morno e quase invisível sob rijos golpes de sombra. Um corpo alvo se encaminhava por ele acima, e ouvia-se o chape-chape dos pés.

A intervalos, o corpo resplendia de luar.

Depois, a janela abriu uma greta, como uma larga fita de fogo, e a fita fez-se mais larga, e em seguida, de modo que rasgou-se e desapareceu. Ficou tudo no escuro outra vez, a não ser a face dos corpos onde batia o luar.

No dia seguinte, a noite estava zangada. A lua, que ontem era a princesa de pezinhos pequenos, hoje era a Maria Borralheira; tudo era cinza no seio do luar, nem as lindas sombras negras e nem os coloramentos mágicos porejando encantos de poesia e saudosa tristeza. O céu queria chover, o céu queria chorar, o céu queria mais proteger a virgem que lhe confidenciara na janela aberta.

Virgem?!

Pois quem é que não conhece na vila o velho Antônio Faraó? É aquele que habita no sítio cheio de canaviais. Ele é o senhor da mulher loura que apareceu na janela. É um homem sem mácula. Jesus, então, por que é que a janela não se tornou a abrir? Pois aquilo não era a alegria dos raios da luz e a predileção das sombras da amendoeira? A amendoeira? Cortaram-na!

E quem era aquele que subia a corrente fazendo chape-chape? Ele amava muito a mulher loura. Um dia ela disse-lhe: — Quando vires a luz na minha janela, sobe a amendoeira, e apega-te ao lençol que penderá da sacada.

E ele viera; mas, quando tornou a desaparecer na corrente, fazendo chape-chape, jurou a si que ali não voltava mais. "Tu me enganaste! dissera ele, ao despedir-se dela. — Meu pai só planta em roçado novo. A capoeira é para se dar aos cavalos."

"Não compreendo" — respondera-lhe a amante. — E logo desatou a chorar.

O homem tinha o coração de fogo, porém a decepção apagou. E ficou de gelo. Assim, para nunca mais, desapareceu na corrente, fazendo chape-chape.

— O velho Antônio Faraó quase endoideceu. A mulher loura botou-se a ele como uma fera e disse-lhe:

— "Desgraçado!"

E calou-se. Não disse mais, porque estava toda cheia, desde o cérebro até ao ventre. Caiu para trás, e pediu veneno a ele — que pelo amor de Deus matasse-a! Mas, neste ponto, ajoelhou-se, pôs as mãos, e pediu-lhe, cheia de lágrimas, que a deixasse viva, porque, santo Deus, no seu corpo de mulher palpitavam dois corações vivendo um da vida do outro.

Contudo, era tremendo e feroz o olhar que ela flechava para o pai de seu filho. E achava horrível a ideia dele, a de ter aberto a janela para a entrevista de um inexperiente mancebo, afim de salvar a honra.

"E então? blasfemara o velho, chacoteando, a remexer num saco de dinheiro — Porventura José não é o pai de Jesus?..."

Hediondo!

E os meses corriam, bem como as águas do riacho. Uma vez, vinha rompendo a aurora, e foi a primeira vez que a janela se abriu, desde que o mancebo veio e foi para nunca mais. Foi também a primeira vez que a mulher loura sorriu, desde aquela cena com o António Faraó. Agora ela podia morrer, porque os dois corações que palpitavam no mesmo corpo se tinham separado: o seu filhinho nascera! E foi por isso que o sorriso da mocidade reabriu-lhe os lábios secos de mártir.

Mas era preciso salvar a honra de Antônio Faraó. A mulher loura desmaiara num frouxo de sangue. Nesse ínterim, desapareceu o seu filho. Ela acorda, ergue-se pálida, grita por ele, e acima de suas forças, corre à janela donde sentia-se cheiro do rosicler da aurora, se debruça, estira o pescoço, aflita...

Nas praias do riacho cavava um homem, com a ponta de um facão, uma covinha onde se poderia sepultar um botão de rosa.

Com as suas praias lavadas, o riacho parecia um poço comprido e interminável, manso, com uma correnteza que lhe esflorava apenas, e umas tremulações de quando um líquido quer abrir a fervura; de modo que as ondulações eram antes efeito de um ventinho que a ameaçava engrossar. As águas, em si, aparentavam uma quietude, uma pachorra admiráveis.

O lugar, onde o homem cavara uma covinha, era sob o dossel de uma bananeira. O sol, no limbo de uma larga folha de tinhorão, avivava transparências, desenhava-lhe velames como em fina cútis de moça, e projetava embrazinhas, que o vento movia tremendo, para o pequeno cômoro que entupira a covinha onde sepultar-se-ia um botão de rosa.

Por cima do bosque o dia empoeirava deslumbramentos sem par. As flores se destacavam nas polpas enormes da folhagem, e pareciam rir de inocência.

Mais tarde caiu a chuva e o riacho encheu, subiu, trepou, até as moitas do bananeiro. Agora, mourejava nas areias do leito a ação de uma volumosa corrente, improvisando cômoros e os desfazendo.

Nos tapumes, ao passar entre as estacas, a água se abria como dedos, a espumar e a marulhar. Escavava canais, espraiava e revolvia-se no polme (massa líquida) do enxurro. A superfície líquida não era mais uma casquinha de espelho que em seu seio recebia um paraíso ideal pintado para debaixo do chão a golpes de sol e de claridade.

O turbilhão montava. E parecia um rio de lama, chicoteado pelos cordõezinhos da chuva. Caía sobre a natureza uma zoada infernal.

O sol, pé ante pé, rasgando uma brechinha entre as altas nuvens de repouso, furava pelo dossel do bananeiro e descia até ao lugar do cômoro que encobria a covinha onde poder-se-ia sepultar um botão de rosa. "Nada. Aqui não está coisa alguma." O sol falava consigo mesmo, gesticulando como um espião, na pontinha dos pés, com um olhar tão vivo que abria transparências no limbo das grandes folhas. Foi adiante.

O riacho tomara juízo, recolhendo-se ao seu leito modesto e voltando à pacatez de bom colega. Recebeu o sol com todas as cortesias. Acendeu rebrilhamentos à tona, encheu-se de imagens que pareciam um paraíso debaixo do chão, mostrou que imensamente amava aos seus amigos a ponto de conservar dentro de si o retrato vivo do bananeiro, e dos tinhorões verdes e púrpuros, e das touceiras de borboletas, de tudo e de tomos, até do próprio céu que bem alto mora.

Porém ambos se retraíram quando avistaram, passando o caule do coqueiro caído que servia de ponte, a mulher loura que habitou a janela do castanheiro cortado. A imagem caía de águas a fundo com a cabeça para baixo. Aqui o sol acendeu-se mais, a fim de que o riacho gozasse da aparição, e pintasse grandes segredos, e fartasse o peito nela toda. Ela passou e foi direitinha ao lugar onde vira o homem cavando com um facão uma covinha onde poder-se-ia sepultar um botão de rosa. E deu um grito, abugalhou os olhos, e caiu de joelhos, mãos postas para o céu:

— Ah! Ela olha para cima, o seu olhar se parece comigo, os seus cabelos são meus irmãos. Implora para cima, é a mim que ela pede, porque aqui quem manda sou eu — disse o sol, incandescendo raios de alegria.

— O que ela quer sei eu, que vi tudo — respondeu o riacho. — E cochichou com o sol, que se estendia sobre ele, num amplexo dourado.

Vamos, protejamos a pobre mãe!

— Mas olha, não vês tu aquele sujeito que atravessa a ponte e segue os mesmos passos da mulher loura?

— Que importa! Protejamos a pobre mãe! Ela é a judia cativa, tu és o Nilo, e eu sou o grande Deus dos oprimidos! Anda! Revolve-te!

Sobre a água estendiam-se natas de claridade trêmula ao fremor da corrente. Folhas maduras do bananeiro e tudo o mais ao redor, como que era chupado para o fundo, em perspectiva. E as águas em comoção pareciam de bronze dourado, pareciam de seda furtiva entre verde e cor de fogo. E esse manto com modos que se ia rasgando. O zéfiro soprava embalamentos doces na folhagem. O sol tremia paternalmente. E num grande riso de luz e de marulhos, o riacho apresentou ao sol, de repente, no chamalote encantador das águas, o corpo encantador de um cupidozinho de espumas.

A mulher soltou um grito alegremente desvairado e saltou para as águas. Porém não pôde. O homem que, armado de um facão, abrira a covinha onde poder-se-ia sepultar como um botão de rosa o corpinho encantador de uma criança morta, estava ali e agarrou-a.

Ela ficou esbugalhando um olhar de pedra para a tumidez das águas. Ele também olhava assim. E a corrente lhes parecia membrana viva de um animal, de modo que o lombo chato de uma cobra que não acabava de passar, de uma cobra insinuante, fascinadora, que hipnotiza.

Assim, deslizava o riacho por entre a vegetação, como uma serpe. E ali, estava a mulher loura tolhida pelo homem do facão, semelhante um jacaré sob as garras de uma onça.

E o cupidozinho foi, foi, foi, e sumiu-se nas águas onde quando a gente andava fazia chape-chape.

Fontes:
Manuel de Oliveira Paiva. Contos. Publicado originalmente em 1888. Disponível em Domínio Público.
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Paulo R. O. Caruso (Cordel de aprendizado)


Quando eu era criancinha,
aprendi uma lição:
eu poderia plantar 
um pezinho de feijão 
num copinho de café,
mostrando ali minha fé
no Senhor, com gratidão. 

O grãozinho de feijão 
com água e algodãozinho
com o tempo despertou
do delicado soninho,
abriu braço, espreguiçando-se
e foi logo então mostrando-se
verdejante bebezinho.

Os meus olhos de criança 
mal podiam ver então 
um broto pequenininho
num tiquinho de algodão,
uma base ao crescimento
e com água e sentimento
ter uma suave explosão!

Depois do braço miúdo
que cresceu e se mostrou 
ser o caule de uma planta 
uma folhinha brotou 
como espinafre, verdinha,
alegrando a criancinha,
dando um baita sorrisão!

Claro, por falta de espaço,
e por ser experiência
com algodão e não terra,
o pé demonstrou carência
e de fato não vingou,
o que então me demonstrou
biologia em excelência.

Mais tarde tive um canário
que nem chegou a durar 
um mês na “sua” gaiola,
vindo o tal a então tombar 
com um mês de aprisionado
sob um facho acalorado
do sol do seu libertar...

Logo depois um coleiro 
eu ganhei de um primo meu
e fiquei muito feliz,
pois nova vida se deu 
lá em casa, na gaiola:
um coleirinho de gola
filhotinho se prendeu...

Eu ainda era criança
e de fato não sabia 
que tristeza era manter
uma ave qualquer dia 
na gaiola, aprisionada;
mantive então a empreitada
e segui com alegria.

O bichinho tinha um canto
alto e forte toda vida!
Parecia um tenorzinho 
com a voz fortalecida 
pelo alpiste e pela água,
não mostrando muita mágoa
por ter a vida apreendida...

Claro, o bicho nem lembrava 
a vida fora das grades!
Quando vira aprisionadas
todas as suas verdades, 
ele era um filhotinho 
frágil e muito novinho,
sem conhecer liberdades...

Porém, ele foi crescendo
sem carinho pela mão 
que sempre o alimentava,
tentando com atenção 
bicá-la sem demonstrar 
qualquer remorso ao tocar,
não aceitando perdão.

Quando eu tirava a banheira
para pôr água limpinha,
ele voava pra longe,
ao teto da gaiolinha,
tentando fugir de mim,
do monstro de carmesim 
que ia contra a sua vidinha...

Quando eu tirava seu forro
de jornal para trocar
por um limpo e higienizado,
ele seguia a voar 
para o teto da gaiola
nada feliz, nem gabola,
até tudo se findar. 

O jiló eu descascava,
e não satisfeito ainda,
deixava à mostra sementes
para a criatura linda
logo bicar e encontrar 
muitas sem nem precisar 
se sentir numa berlinda!

Eu ficava imaginando 
como ele se sentia
ao saber que passarinhos
voavam à luz do dia 
para todo e qualquer canto
e tinham no bico o canto
de estar livre em alegria!

Justo quando eu fui crescendo
percebi que o passarinho
não teria namorada, 
nem ao menos o seu ninho 
com filhotes para amar,
o que me fez enxergar
não ser bom o seu caminho.

Mas como é que eu poderia
libertá-lo da prisão,
se ele já praticamente 
lá nascera sem senão?
O coitado morreria 
no escuro ou à luz do dia
sem defesa e sem perdão!
 
Era um animal herbívoro
que se tornaria caça
de algum gato ou de coruja,
de algum rato ou de trapaça
que o levaria de novo 
a outra gaiola, meu povo!
Tudo na cabeça passa!

Os anos foram passando
somente comendo alpiste
e jiló na tal gaiola,
o que me deixava triste 
por ele jamais poder 
deixar a prisão e ver
o que de mais belo existe!

No final da sua vida,
nos poleiros não subia,
ficando só lá no fundo 
da gaiola e já não via 
nada à volta, só “sentava”
quieto e velho e esperava 
o fim da sua agonia. 

Três dias longos assim
se passaram ao coitado,
que num sábado morreu
e por mim foi enterrado
na calçada de uma escola
de minha infância gabola.
Foi o fim deste pecado.

Eu vi o pranto incontido
de minha mãe e minha irmã,
mas eu só senti alívio
naquela dita manhã,
pois não mais iria ver 
aquele imenso sofrer
que não era o meu afã. 

Nós pusemos logo fora 
aquela podre prisão 
para nunca mais mantermos 
qualquer ave sem razão
encarcerada a sofrer 
e sua beleza perder 
por tristeza e depressão. 

O que ganhamos em troca
Minha irmã, minha mãe e eu
Foi algo nunca pensado
Que do nada aconteceu
E pode sempre ocorrer 
Quando quiser vir nos ver!
Eu te conto o que se deu.

O que ganhamos então
eu te digo já risonho:
uma coruja aparece 
lá em casa (não em sonho!) 
sempre que lhe dá na telha,
mostrando que a casa velha
não é um lugar medonho!

E a cada vez que observo 
uma gaiola a ostentar 
uma criatura indefesa, 
um passarinho a cantar
fico triste de repente 
por saber que a dita gente 
ainda ama aprisionar.  
 
Um recado que aqui deixo 
é que não prendas ninguém
numa gaiola apertada,
mas sim faças sempre o bem
de tão somente aplaudir 
do que é belo o ir e vir 
livre, não sendo refém! 

Outro recado bem simples 
é que procures plantar 
uma árvore na vida,
porque Deus vai se orgulhar,
como um ipê que eu plantei
quando um dia me lembrei 
do feijão a não vingar.

Fontes:
Enviado pelo autor.
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domingo, 2 de março de 2025

Adega de Versos 129: Luiz Poeta

 

José Feldman (Contos em versos diversos) Apenas uma mão


Era um senhor de roupas gastas,  
com o andar lento e olhar cansado.
Na calçada, suas memórias vastas  
contavam histórias de um tempo amado.  

Um dia, tropeçou, a queda foi dura,  
e junto ao muro lá ficou a gemer.  
Clamava por ajuda em sua amargura,  
mas ninguém o ouvia, mesmo vendo-o sofrer.  

Os passantes, apressados, viam um mendigo,  
e o ignoravam, sem parar para olhar.  
Pensavam que era só queria um abrigo,  
um bêbado perdido, sem lar para ficar.  

Mas eis que um jovem com olhar atento,  
se aproximou, perguntando com bondade:  
“Senhor, precisa de algum auxílio ou alento?”  
A voz sincera trouxe-lhe felicidade.  

“Só preciso de ajuda para me levantar,”  
disse o velho, com um sorriso tímido.
O rapaz com força, o pôs a caminhar,  
e juntos seguiram num passo decidido.  

Chegaram a um palacete, imponente e belo,  
o jovem, espantado, não podia crer.  
“Este é meu lar, um lugar singelo,  
venha, entre, e vamos nos conhecer!”  

O jovem, surpreso, aceitou o convite,  
e um laço de amizade começou a florescer,  
contaram histórias, entre risos sem limite…  
Um encontro de almas, um novo amanhecer.  

Mas a moral que ecoa em nossos corações,  
é que a compaixão é um bem que se retrai,  
pois muitos, em meio às suas aflições,  
ignoram o próximo, uma vida que se esvai.  

Que possamos, como o jovem, olhar além,  
e estender a mão aos necessitados,  
pois cada ser humano tem um valor também,  
e a bondade é a luz dos seres abençoados.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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A. A. de Assis (O quase herói do vale)

Sumago é até hoje lembrado como quase herói em todo o vale da Barrinha – história que vem sendo repassada de geração a geração desde o dia em que, puxado pela correnteza, desabou pela cachoeira. Deu-se isso faz coisa de uns 70 anos, num tempo em que ainda não se entendia que caçar era coisa feia. Segundo ele contava, rolara uns 50 metros embolado nas águas se esfregando nas pedras, porém sobrescapara vivinho e ledo.

Campeiro valente, zunia nos pastos, serra acima, serra abaixo, cavalgando atrás das cabras. Nos dias de folga costumava caçar: conhecia a mata como a palma da mão; pontaria firme, acertava o alvo a espichados metros da mira. 

Medroso não era, jurava que não. Além do mais aquela mata fazia tempo estava “desonçada” e outros bichos não o assustavam, nem tamanduá-bandeira.

De onde surgira então aquela pintada? Tudo que era caçador garantia que onça havia acabado ali – a última tinha sido assada pelo Tonhão Tripeiro uns quinze anos passados. Não era possível ter sobrado filhote pra crescer e agora aparecer num de repente assim. Só podia ser assombração, queria ele imaginar. Mas não era não. A baita miou, partiu pra cima do caçador, que depois de tremendo berro se jogou mata abaixo, pulando troncos e pedras, a perversa atrás, o pavoroso miado, o vulto medonho, pega que pega...

Sumago na afobação perdeu a espingarda, rasgou a camisa, enroscou a calça num espinhal, o fôlego a toda, se livrou nu, a onça atrás, gulosa, miando.

Se alcançasse o rio, estaria salvo; era a sua esperança, arranhado, os pés arrebentados, serra abaixo, a onça nos calcanhares dele, cadê esse rio que não chega? Olha lá... só mais um tiquinho e pronto, a baita preparando o bote, ele enfim saltou na água... ti-bum. Salvo?

Salvo coisa nenhuma. A malvada pulou atrás, nadava ligeiro ela, ele a sessenta braçadas por minuto, ela encostando com os dentões arreganhados, faminta, Sumago aguentando mais do que aguentava, a resistência acabando, vontade de se entregar logo à ferona, terminar de vez aquela briga doida... Seria afinal o dia da caça...

A correnteza puxando, já bem pertinho a cachoeira. Caindo no precipício seria morte certa. Mas pouco importava, pensava ele. Melhor se esborrachar nas pedras do que virar comida de onça. Logo ele, caçador de fama. Queria tudo, menos sofrer tamanha humilhação.

Rolaram os dois corpos pela cachoeira, Sumago e a baita. Milagre? O caçador sortudo caiu na água macia, foi ao fundo, voltou revivo. A onça? Até hoje ninguém sabe. Simplesmente sumiu.  

O brioso rapaz espalhou a notícia – tinha tudo para com essa virar herói no vale. Pena que, por falta de testemunha, a vizinhança reagiu meio assim, meio duvidante. Ficou a fábula no ar.
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Antonio Augusto de Assis (A. A. DE ASSIS), poeta, trovador, haicasta, cronista, premiadssimo em centenas de concursos nasceu em So Fidlis/RJ, em 1933. Radicou-se em Maring/PR desde 1955. Lecionou no Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maring, aposentado. Foi jornalista, diretor dos jornais Tribuna de Maring, Folha do Norte do Paran e das revistas Novo Paran (NP) e Aqui. Algumas publicaes: Robson (poemas); Itinerrio (poemas); Coleo Cadernos de A. A. de Assis - 10 vol. (crnicas, ensaios e poemas); Pomica (poemas); Caderno de trovas; Tbua de trovas; A. A. de Assis - vida, verso e prosa (autobiografia e textos diversos). Em e-books: Triversos travessos (poesia); Novos triversos (poesia); Microcrnicas (textos curtos); A provncia do Guair (histria), etc.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.
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Conto das Mil e Uma Noites (Destino ou merecimento?)

Minha história é simples. Fui um cordoeiro por toda a minha vida, especializado em cânhamo, como meu pai e meu avô tinham sido antes de mim. Minha renda mal dava para sustentar a mulher e os filhos. Mas como não tinha capacidade para exercer outra profissão, estava satisfeito e não me queixava a Deus nem atribuía minha pobreza senão à minha ignorância e estupidez. 

Conheci dois homens ricos, Saad e Saadi, que vinham habitualmente descansar e conversar perto de minha loja e assim tornaram-se meus amigos. Um dia, ouvi-os discutir um assunto que me interessou: 

– Será a riqueza adquirida por certos homens o resultado de sua capacidade e aplicação ou um presente do destino? 

- Ó Saadi, disse finalmente Saad, vejo que nenhum de nós irá convencer o outro sem provas. Proponho, portanto, que localizemos um homem pobre e honesto e coloquemos um pequeno capital em suas mãos. O estado de sua fortuna nos meses seguintes provará quem de nós dois está certo: tu que deixas tudo por conta do destino, ou eu que acredito que cada homem é o arquiteto de sua vida. 

Escolheram-me para sua experiência e deram-me duzentos dinares de ouro, perguntando: “Achas que com este capital poderás desenvolver teu negócio e tornar-te rico?” 

Respondi: “Serei mais rico que todos os cordoeiros de Bagdá juntos.” 

Ao ver os dinares de ouro na mão, senti-me num êxtase e procurei escondê-los em algum lugar seguro. Após muito deliberar comigo mesmo, tirei dez dinares para minhas despesas e coloquei o restante nas dobras da barra com que costumo envolver meu turbante. Depois, comprei um lombo de carneiro e dirigi-me para casa. 

Mas enquanto caminhava, a cabeça agitada por sonhos de riqueza, um falcão faminto desceu do céu e, antes que me desse conta do que estava acontecendo, arrebatou meu lombo de carneiro no bico e meu turbante nas garras e voou. 

Após gastar os dez dinares, recaí na miséria anterior. 

Dez meses depois, os dois amigos vieram visitar-me para verificar quem deles tinha acertado. Recebi-os com olhos baixos, e disse-lhes: “O destino continuou a antagonizar-me, e estou em piores condições do que antes.” E contei-lhes o que havia acontecido. 

Saadi sorriu maliciosamente pela decepção do amigo. Mas Saad disse-me: “Não duvido de tuas palavras, embora possa suspeitar que gastaste os duzentos dinares na devassidão. Seja como for, não quero deixar meu amigo Saadi triunfar tão facilmente. Eis outros duzentos dinares de ouro. Tenta novamente a sorte, e não vás escondê-los no teu turbante.” E foram embora. 

Voltei para casa, procurando onde esconder o dinheiro. Reparei numa velha jarra cheia de farelo. Amarrei o dinheiro num pano e enfiei-o no fundo da jarra. Enquanto saí para fazer compras, um vendedor ambulante passou na rua, vendendo pacotes de um preparado de ervas com o qual as mulheres lavam o cabelo no hammam (sauna a vapor). Não tendo dinheiro, minha mulher trocou dois pacotes daquela pasta pela jarra de farelo. 

Quando voltei, procurei a jarra com os olhos para me tranquilizar e, não a vendo, perguntei à mulher por ela. Contou-me. 

“Ó mulher desafortunada!” gritei. “Trocaste meu destino, teu destino e o destino de nossos filhos por um punhado de ervas.” 

Sabendo o que fizera sem querer, ela pôs-se a lamentar-se, censurar-me por não lhe ter revelado o segredo em tempo e falar sem parar como fazem as mulheres diante das desgraças. “Uê! Uê! Vendi o destino dos meus filhos a um mascate que não conheço e que nunca poderei encontrar de novo.” 

Quando, longos meses depois, Saad e Saadi reapareceram, recebi-os com ar ainda mais constrangido e contei-lhes o que acontecera. Saad disse que não iria refazer a experiência mais uma vez; mas Saadi declarou: “Ó Hassan, eu também gostaria de ajudar-te. Como não sou tão favorecido quanto meu amigo Saad para seguir-lhe o exemplo, só posso dar-te este pedaço de chumbo que algum pescador parece ter perdido quando arrastava sua rede pelo caminho. Se tal for o decreto do destino, este pedaço de chumbo virá a ser-te mais útil que minas de prata.” 

À noite, voltei para casa, coloquei o pedaço de chumbo em qualquer lugar, julgando que de nada me serviria, e dormi. Ora, na manhã seguinte, ao preparar sua rede, um pescador vizinho reparou que faltava nela o pedaço de chumbo indispensável, e veio perguntar-me se dispunha, por acaso, de tal pedaço. Dei-lhe o pedaço que Saadi me oferecera. 

Grato, o pescador disse-me: “Jogarei a rede da primeira vez em teu nome e o que recolher será teu.” 

O curioso é que, o dia todo, ele pescou peixes pequenos e, somente na primeira vez, apanhou um peixe grande, de um cúbito de comprimento, e fiel à sua promessa, trouxe-me. O peixe sendo maior que nossas panelas, minha mulher teve que cortá-lo em pedaços para fritá-lo. Dentro dele encontrou uma bola de vidro do tamanho de um ovo de pomba. 

À noite, essa bola de vidro iluminou a casa mais que a lâmpada. No dia seguinte, a história de nossa descoberta espalhou-se por toda a cidade graças à língua comprida de minha mulher. Logo recebeu ela a visita de uma certa judia da vizinhança, cujo marido era um joalheiro. Após contemplar longamente a bola de vidro, disse à minha mulher: “Agradece a Deus esse pedaço de vidro sem valor. Tenho outro igual e gostaria de completar o par. Ofereço-te, pois, por esta coisa insignificante, a enorme importância de dez dinares de ouro.” 

Minha mulher, preferindo usar a bola como lâmpada, recusou a oferta. Quando voltei para casa, contou-me. Disse-lhe: “Se a coisa não tivesse valor, jamais uma filha de judeus ofereceria dinheiro por ela. Tenho a certeza de que ela voltará e aumentará sua oferta. Aconselho-te a não vender a bola sem me consultar.” 

Falei assim, lembrando-me das palavras de Saadi de que aquele pedaço de chumbo me tornaria rico se o destino assim o determinasse. Por Alá, a judia voltou e, usando as mesmas manhas e chamando a joia “aquela coisinha sem valor” e “aquela miséria”, ofereceu por ela assim mesmo cem dinares de ouro. Era óbvio naquela altura que o achado era uma joia rara, de valor inestimável. 

Ofereci-a à judia por 100 mil dinares, dizendo: “Outros joalheiros que conhecem essas raridades melhor que teu marido me ofereceriam mais ainda. Mas eu nunca fui ganancioso. E juro por Alá que não aumentarei este preço.” 

Após protestar como diante de uma ousadia escandalosa, a judia disse: “Comprar e vender não é comigo. Falarei a meu marido. Se ele se interessar, virá procurar-te. Até lá, promete-me não vender a outrem esse vidrinho de nada.” 

Prometi, e a mulher saiu apressada. Como previra, o joalheiro apresentou-se em nossa casa naquela mesma noite. Via-se no seu rosto toda a astúcia de seu povo e sua determinação de arrancar-me o destino das mãos. Após queixar-se do tempo, dos maus negócios, das dificuldades que atravessava, após dizer que mal ganhava o pão dos filhos, jurando constantemente por Aarão e Jacó, disse que só queria aquela brincadeira de vidro para agradar à mulher grávida, pois “nós os homens devemos submeter-nos às fantasias de nossas esposas nesta fase, senão corremos o risco de ter filhos deformados.” 

Pediu-me ver o ovo. Mandei tirá-lo das mãos das crianças que brincavam com ele; fechei portas e janelas e coloquei o ovo em cima de um consolo. A casa ficou iluminada como se fosse meio dia. O judeu ficou tão maravilhado que deixou escapar o segredo de que aquela bola era uma das joias que haviam pertencido a Soleiman (Salomão). Lamentou, logo em seguida, suas palavras, mas não soube como retirá-las. 

Finalmente, perguntou-me que preço pretendia pelo ovo; respondi: “100 mil dinares, como disse à tua mulher. E se não tivesse dado minha palavra, que um bom muçulmano sempre respeita, aumentaria o preço dez vezes ou mais, agora que sei que a joia pertenceu a Soleiman.” 

O joalheiro levantou-se com ar trágico: “Queres arruinar-me?” perguntou. “Se vendesse minha joalheria e minha casa e meus filhos e minha mulher e a mim mesmo, não conseguiria juntar esta soma. Pensei que a tivesses mencionado a minha mulher por brincadeira.” 

Vendo-me, todavia, firme, e receando que eu voltasse atrás na minha palavra, disse: “O dinheiro está aí.” E chamou pela janela seus servidores que esperavam com sacos cheios de dinares. 

Achando-me assim fabulosamente rico, parei de trabalhar, fechei a loja e construí uma casa suntuosa. Dei à minha família todo o conforto e luxo possíveis e distribuí presentes generosos a
parentes, amigos e aos necessitados. 

Um dia, Saad e Saadi procuraram saber de mim. Encontrando a loja fechada, pensaram que eu tinha morrido. Mas os vizinhos indicaram-lhes minha nova morada. Vieram até mim, surpresos e alegres e, após ouvirem minha história, Saadi regozijou-se e disse triunfalmente a Saad: “Vês?” 

Estávamos ainda conversando, quando meus filhos que brincavam no jardim entraram em casa, carregando o ninho de uma grande ave que um de meus escravos apanhara no alto de uma palmeira. Para meu espanto, verifiquei que este ninho tinha sido construído na base de uma banda de turbante - minha banda e meu turbante. Dentro deles encontrei os cento e oitenta dinares embrulhados exatamente como os havia colocado. 

Não tínhamos ainda nos recuperado da excitação produzida por esse milagre, quando um dos meus servidores entrou com uma jarra de farelo que reconheci logo ser aquela jarra. 

O servidor explicou que a comprara para um de nossos cavalos. Procurei dentro da jarra e encontrei os duzentos dinares. Desde então, eu e meus dois amigos temos dirigido nossas vidas pela hipótese de que ninguém é capaz de prever as maravilhas do destino quando ele for generoso. 

Saad, que era um pouco poeta, compôs estes versos: Quando o destino for generoso para contigo, sê generoso para com os outros: Nem a liberalidade te perderá se ele for favorável; nem a parcimônia te salvará se e1e for adverso.

Fontes:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público
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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Adega de Versos 128: Jerson Brito

 

José Feldman (Contos em versos diversos) O Desconfiado


Em um lar onde o amor reinava,
um homem, de coração aflito,
sentia que a esposa o enganava,
sentindo em si grande conflito.

Os olhos dela, em certos momentos,
eram nuvens que ocultavam o sol,
e os sorrisos em novos sentimentos,
pareciam dançar em um arrebol.

Certa noite, a dúvida o tomou,
decidiu então, segui-la ao luar,
escondido nas sombras ele ficou,
e viu a esposa se deixar levar.

Com um homem bonito, jovem e audaz,
ela se entregou em longo abraço,
o coração do marido em meio à paz,
desabou, sentindo-se ele um bagaço.

Quando ela voltou, ele a esperava,
o olhar ardente, a voz em fúria,
“Traidora!”, bradou, enquanto ela falava,
e a casa virou um palco de penúria.

Acusações voaram como flechas cortantes,
e a vizinhança começou a se aglomerar,
os gritos ecoavam em tons vibrantes,
o homem em chamas não parava de gritar.

Mas, logo à porta, o jovem se apresentou,
com um sorriso que apagava o temor,
“Sou irmão dela, aquele que se afastou,
mais de vinte anos, sem saber de seu amor.”

O marido, atônito, não entendia nada,
a vergonha o envolveu como um véu,
a esposa, com lágrimas, a história contada,
derrubou o peso que pesava no céu.

O homem galante, era apenas um irmão,
sorrindo, enquanto a tensão se desfazia,
o esposo, com vergonha, em confusão,
não sabia onde a sua cara metia.

E assim, a noite se transformou em paz,
com conversas e memórias a ressoar,
o amor, que antes parecia fugaz,
renovou-se, como o sol a brilhar.

O desconfiado, agora em reflexão,
aprendeu que, às vezes, tudo é ilusão,
e que o amor verdadeiro em sua missão,
supera os medos e traz renovação.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Aparecido Raimundo de Souza (O velho balanço)

ÀS VEZES, na minha saudade cheia de pesadas digressões e insípidos detalhes, recordo a infância distante, perdida, agora, na poeira do tempo. Dentro dessa saudade, afrontando perigos terríveis os mais diversificados, me transporto (como num sonho bom), levado que sou pelas asas coloridas da fantasia dimensional. Nessa viagem minhas prerrogativas se propagam e então, extasiado, alcanço os primórdios daquela quadra risonha e feliz, onde, pés descalços, palmilhando sofregamente a terra batida passava os dias brincando contente, numa adolescência puramente bucólica e envolvente destituída da maldade dos adultos e da perversidade dos homens sem lei.

Claro como a luz incandescente que abrasa meus dias atuais, vai se desenrolando, com a nitidez de uma reconstituição inesperada, uma espécie de visão cadente. Dentro dela, vejo o alpendre com as mesas e as cadeiras em madeira pura, a pinguela sobre o córrego junto aos canaviais, o curral, o paiol de guardar mantimentos (que, de tão antigo, se debruçava no peso de sua própria caducidade) e o monjolo que funcionava incansável, às margens de um riacho de águas límpidas e brilhantes, onde no começo de noite, por volta das dezoito, uma lua bonita vinha refletir a sua resplandescência. A tudo sinto claramente, como se tivesse vivendo aquele momento (tal e qual aconteceu exatamente) sessenta e quatro anos atrás.

Mas esperem! Falta uma peça importante para completar esse jogo de recordações que invade meu “eu” entorpecido. Não consigo encontrar esse elo ausente, esse brinquedo que durante anos a fio representou a minha verdadeira razão de existir. Falo de um balanço. De um velho balanço que vivia escondido, lá bem longe da casa grande (mais para perto dos campos cobertos de primavera), quase a roçar nos trilhos da velha Maria Fumaça, que propriamente do imenso quintal que adornava a galeria em torno da construção principal. Todo cair de tarde, por volta das quatro horas, quando vinha descansar da estafa da escola primária, era naquele balanço de correntes enferrujadas, meu passatempo preferido. 

Vezes sem conta, me punha a balançar em ritmo coordenado e eloquente, esquecido de tudo, da vida, das lições chatas de matemática (de português não, adorava as aulas de redação), da professora de história, da merenda ruim e repetida, dos colegas brigões e dos castigos impertinentes com joelhos ao milho (rosto colado à parede), ou quando, por qualquer besteira, extrapolava além da conta, entrava em cena, a admoestação endossada pela abusada e temida palmatória. Naquele vai e vem mavioso, algo bom e sensível espantava para as colinas verdes e adornadas de esperança, as intempéries e incertezas de meus dias memoráveis.  

Dava a impressão em minha desenvoltura espiritual, meus tesouros de astúcia e fertilidade de imaginação, que no “vai”  alcançava um futuro muito além das minhas possibilidades de menino sem dono. Como se, num repente, topasse com outro mundo paralelo e desconhecido, esmagando taciturnamente meus sonhos desordenados. Na verdade, era mais feliz o “vem,” porque novamente retrogradava, recuava no tempo, passava pela infância querida, batia os pés no meu chão vermelho e tudo, tudo como num passe de mágica, se transformava. 

Nessa conversão, voltava a ser criança outra vez. Dentro de mim, me sentia gente, apesar de morar com vovô João, senhorzinho encurvado pelo peso dos janeiros, seu rosto congelado sob as rugas, como o de um ser sem vida, entretanto, simples de alma e humilde de coração. Retinha dentro de sua fragilidade meu querido avô, uma paciência de Jó. Parecia um personagem saído de uma canção carnavalesca dos tempos do “ronca”. Na pele de um rei, me via poderoso, apesar de não ter mamãe por perto, papai ausente e separado dela, de não existir, tampouco, nenhum irmão da minha idade ou qualquer outra criança que me viesse fazer companhia. Embora prevalecesse essa lacuna, me aquilatava exaltado. De certa forma, fortalecido e solenizado. Como era bom estar de volta ao aconchego familiar! Vovó Martinha, entrincheirada nas suas horríveis dores de coluna, não regateava a atenção para comigo. 

Sinto, por todas essas coisas, uma falta tremenda de seus pães quentinhos, do café feito na hora, de seus doces, da sua comida no fogão à lenha. Por volta das oito horas, logo depois do jantar, tendo por companhia a lareira, vovô João, acomodado em sua espreguiçadeira, fazendo prevalecer a sua imaginação, botava pra fora histórias fantásticas, inventadas, contos classificados no prodigioso fichário que se transformara a sua memória.  Hospedeiro aos extremos, lhano e sociável, agarrado a esses enredos de espantos crescentes, criavam vida e forma, em suas palavras, bruxas e príncipes, fadas encantadas e cinderelas que se viam presas em castelos, por mãos de homens de corações maus, que transportavam criaturas inocentes em carruagens vermelhas, com cavalos de duas cabeças para um planeta desconhecido, cuja entrada ficava numa caverna, em meio da floresta densa e intocável...

Nesse retornar, me sentia envolvido pelo calor daqueles que me cercavam de carícias e afetos. Esses mimos se faziam quase opressivos, contudo, dentro de uma ansiedade que não chegava a ser tirana. Tarde da noite (não poderia me esquecer desse detalhe), meu Deus do céu... os vagalumes do campo vinham enfeitar a sacada, onde me sentava antes de dormir, para espiar longamente o tempo. Tinha a impressão de que o céu caía inteiro do infinito e se postava, vencido, aos meus pés descalços de pobreza. Apesar dessa desproteção, eu era capaz de viver, numa única existência, uma série de outras realidades num percurso que se me abria com infinitas sucessões.  

Como se fosse o apertar de um gatilho de uma arma poderosa, quebrava o marasmo, algo parecido com uma bala zunindo sons estranhos, libertando as vozes eufóricas dos sapos enterrados no brejo, dos grilos perdidos nas folhas das árvores e fazendo voar, num deslocamento pesado, os morcegos irrequietos que durante o dia dormiam negligentes e omissos na hospedagem do monjolo. Esses fatos, em conjunto, provocam uma espécie de explosão momentânea. 

Em mil pedaços me reparto agora, me desdobro, me compartilho. Ao fazê-lo, me vejo correndo feito guri daninho, de um lado para outro do passadiço. A todo custo, pretendo reter a noite, com todos os seus segredos. Guardar tudo numa caixinha de madeira velha, que mantenho escondidinha debaixo de minha cama. Porém, as mãos trêmulas de moleque encapetado não me permitem tal façanha.  Agora, quando passados tantos e tantos janeiros, percebo, com certa tristeza, todas essas coisas se foram, se perderam, sumiram no abismo imensurável e não volta mais. Abobalhado, de queixo caído, me questiono: por Deus, todas essas relíquias para onde foram? Em que parte de mim está escondida aquela quadra risonha que fazia parte do meu dia a dia? Essas indagações giram em minha cabeça no ritmo de um motor sendo acionado numa aceleração sôfrega. 

Talvez seja por isso, que às vezes, na minha saudade, angústia imensa como um mar proceloso de encontro a restos de um naufrágio, recorde a infância distante, perdida, agora, na poeira do tempo…

Como é bom, como faz bem viajar ao passado! Encontrar o chão de terra vermelha (nele o pomar de laranjas e as bananeiras), entremeado entre as duas velhas montanhas rochosas que os dominavam do alto. De roldão, o abacateiro florido onde eu subia e rasgava as calças. Havia também, as galinhas, os patos, marrecos e porcos que vovó Martinha juntava no terreiro, quando saia à porta da cozinha, sem deixar de lado as pedras e bugigangas rejeitadas que colocava nos trilhos dos trens que cortavam a herdade...

Nessa minha agonia imorredoura e atroz, sempre falta o velho balanço, com seu barulho tênue que ficava esquecido nos fundos do quintal. Essa peça enferrujada, que me fazia sentir mais criança que o moleque peralta existente dentro de mim. Cadê o velho balanço? Em que cantinho oculto de minha alma, em que desvio da minha lembrança, em que atalho nesse meu agora ele se quedou adormecido e estático? Indubitavelmente, era nesse velho balanço que viajava para o futuro. 

No mesmo passo, montado nele, andejava desenredado. Roubava, com uma só mão segurando a corrente, o espaço distante, as nuvens que voavam baixinhas, o sol gostoso, o ar mormacento que respirava o vento ameno que tocava nas folhas, e também o calor que aquecia meus cabelos. Confortavelmente sentado nesse brinquedo, acomodado com todas as minhas quimeras e esperanças, a cabeça jogada para trás, roubava com arrojo o azul mavioso do infinito e, de contrapeso, a paz enternecedora dos olhos de Deus para enfeitar os caminhos incertos e desconhecidos da minha louca imaginação.
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APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA, natural de Andirá/PR, 1953. Aos doze anos, deu vida ao livro "O menino de Andirá," onde contava a sua vida desde os primórdios de seu nascimento, o qual nunca chegou a ser publicado. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal "Municípios em Marcha" (hoje "Diário de Osasco"). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista "QUEM" (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal "O Dia, no Rio de Janeiro." Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Aparecido Raimundo de Souza. Travessuras de Mindinho e Fura—Bolos (Textos para se ler dentro do ônibus escolar). Enviado pelo autor.
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