sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Renato Benvindo Frata (Nosso labirinto particular)


Relendo a História de Minotauro antes de Teseu e analisando seu sofrimento por ter nascido diferente dos humanos - metade homem e touro, que vivia num labirinto a aprisionar e a matar para se alimentar, vem a pergunta: por que as pessoas se arriscavam nos estreitos corredores do labirinto, sabendo-o perigoso? Por curiosidade. Acreditavam que as paredes contavam o futuro de cada um em histórias fantásticas, daí a motivação. Creta, então, vivia o dilema: possuía uma riqueza especial com paredes falantes e, também um monstro horroroso.

Minotauro, na porção humana, era triste, pensativo e, sabendo da imperfeição em relação a outros, se tornou soturno, tomado pela necessidade de compreensão, de amor, de conexão que o fizesse se não igual, ao menos aceitável. E ali, no labirinto, com somente ele sabendo da entrada e da saída, fizera seu abrigo. Em contraste, também sua prisão em meio às pedras especiais. Estava destinado a viver só, com o amargor de pensamentos, desejos e sensações.

Sua história é linda e em muito se assemelha à de cada um de nós respeitada a individualidade. Ele sonhava em poder sair, vencer seus muros, apreciar o sol, lua, estrelas, sentir o perfume da relva em manhã de orvalho. Ter alguém com quem dividir a alegria, a tristeza que tece a vida como a um quebra-cabeças, e que faz do ser humano o único capaz de resolver tão intrincadas coisas que constroem. O ser humano era aguerrido, insatisfeito com o que fazia, por isso inventava. Ele gostaria de fazer o mesmo que o lenhador, o oleiro, construir com tijolos sua proteção, afiar uma faca para melhor cortar, arredondar o quadrado para melhor conduzir. Mas sua imperfeição corporal não o permitia. Por isso a imorredoura tristeza, a revolta e a agressão contra aqueles que lhe invadiam seu único espaço.

Trazendo o mito desse “monstro” solitário que vive em nós, e analisando as noites insones que nos pegam por horas encontrar, na penumbra, a solução ao que tira nosso sono, podemos dizer que cada um, nessa condição, constrói seu próprio labirinto, onde conviverá com seus defeitos ou deficiências em auto piedade enquanto se inunda de tristeza e faz da situação, a eterna prisão, ou agir com sabedoria como Ariadne, que entregou ao amado Teseu um rolo de barbante orientando-o a que amarrasse uma ponta na entrada do labirinto e a esticasse aonde fosse, para encontrar o caminho de volta.

O labirinto de Minotauro era tão misterioso como é nossa mente; intimamente ele buscava a saída não somente da prisão/abrigo, das paredes invisíveis que construíra dentro de si, assim como nós ao supervalorizar os problemas diários, as perdas, as lutas inglórias, os chororôs do insucesso, as pendências financeiras ao ponto de trocar horas de nosso sagrado repouso, ao ruminá-los sem sucesso.

Diz com sabedoria ‘MC Von Zuben’, no trabalho “O Nó(s) que Nunca Desata: o Fio de Ariadne e o Labirinto do Autoconhecimento” – que merece ser lido. - Contempla em resumo que: todos e cada um estamos conectados em um nó que nunca desata. Nossas relações, por mais complexas, não podem ser apagadas: há um fio invisível a nos unir e um labirinto para cada um. Esse fio sempre nos leva até nós mesmos; e só podemos lutar contra nosso Minotauro com a força animalesca que temos, guiados pelo fio para sair do ‘labirinto’. Desprovido dele, continuaremos a vagar pelo escuro como temos feito indefinidamente, razão de nossa amarga insônia.
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RENATO BENVINDO FRATA (79) nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.
Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

José Feldman (No coração da arte)

Texto construído tendo por base a trova de Antônio Juraci Siqueira (Belém/PA)
Mata a revolta em teu peito,
não a deixes florescer:
rio com pedras no leito
não pode alegre correr!...
Em uma cidade do interior, onde a vida pulsava em cada esquina e as cores das flores enfeitavam os jardins, havia um ar de expectativa. No entanto, sob a superfície dessa beleza, muitas pessoas carregavam revoltas silenciosas. A cidade, com suas ruas movimentadas e sorrisos superficiais, escondia angústias que frequentemente se manifestavam em olhares tristes e conversas sussurradas.

Entre os habitantes, estava Daniel, um jovem artista cujas obras refletiam a complexidade da vida ao seu redor. Ele era conhecido por sua sensibilidade e por captar a essência das emoções humanas com suas pinceladas. Mas, nos últimos meses, Daniel se sentia cada vez mais frustrado. A pressão da sociedade, as expectativas familiares e a luta por reconhecimento como artista o deixavam inquieto. Sua alma criativa, antes livre, agora estava aprisionada por uma revolta crescente.

Certa manhã, enquanto caminhava pela feira local, Daniel viu algo que o tocou profundamente. Uma mulher idosa, com o rosto marcado pelo tempo, estava vendendo flores. Seus olhos, embora cansados, brilhavam com uma sabedoria única. Ela sorria para cada cliente, oferecendo não apenas flores, mas esperança. Daniel parou para admirar a cena, mas logo a revolta em seu peito começou a se manifestar. “Por que as pessoas não veem a beleza que realmente importa?”, pensou, sentindo-se frustrado com a superficialidade ao seu redor.

A mulher percebeu sua inquietação e, quando ele se aproximou, disse: – Caro jovem, mata a revolta em teu peito, não a deixes florescer. 

As palavras dela ressoaram em sua mente, como um eco de sabedoria. Daniel hesitou, mas decidiu compartilhar suas preocupações. 

– Sinto que a arte e a sinceridade estão se perdendo nesta cidade. Todos parecem tão focados em seguir o que é esperado, esquecendo-se do que realmente importa.

A mulher sorriu com ternura. 

– A vida é como um rio, meu jovem. Se o leito do rio está cheio de pedras, ele não pode correr alegremente. Se você deixar a revolta dominar, não conseguirá fluir. A arte deve ser um reflexo da vida, e a vida é feita de altos e baixos. Encontre beleza nas pedras e transforme-as em parte da sua jornada.

A conversa com a mulher deixou Daniel pensativo. Ele percebeu que estava permitindo que a revolta o impedisse de criar. Aquelas palavras o inspiraram a buscar a beleza nas dificuldades, a transformar sua dor em arte. Decidiu que era hora de mudar sua perspectiva e não deixar que a frustração o definisse.

Nos dias seguintes, Daniel começou a trabalhar em uma nova série de pinturas. Em vez de se concentrar apenas nas alegrias da vida, ele decidiu capturar também as lutas e as emoções complexas que todos enfrentavam. Usou cores escuras para representar a dor e a revolta, mas também introduziu tons vibrantes que simbolizavam a esperança e a resiliência. Cada pincelada era uma tentativa de mostrar que, mesmo em meio ao sofrimento, a beleza poderia surgir.

Quando chegou o dia da exposição, a cidade estava em festa. As pessoas se reuniram para celebrar a arte e a cultura local. 

Daniel estava nervoso, mas também animado. Suas pinturas, que refletiam sua jornada interna e a luta comum de muitos, começaram a atrair a atenção. As pessoas paravam diante de suas obras, algumas com lágrimas nos olhos, outras sorrindo ao reconhecer suas próprias histórias nas telas.

Uma jovem se aproximou dele e disse: – Seus quadros me tocaram profundamente. Nunca pensei que alguém pudesse expressar tão bem o que sinto por dentro. 

Daniel sorriu, sentindo que a conexão que buscava finalmente se concretizava. Ele percebeu que sua arte tinha o poder de tocar os corações das pessoas e que, ao compartilhar suas emoções, poderia também aliviar a revolta que muitos carregavam.

A exposição foi um sucesso, e a cidade começou a se transformar. As pessoas começaram a falar mais sobre suas emoções e a compartilhar suas lutas. Daniel se tornou um símbolo de coragem e autenticidade, mostrando que é possível enfrentar a revolta e ainda encontrar beleza na jornada. As conversas nas praças e cafés agora incluíam discussões sobre arte, vida e a importância de abraçar tanto as alegrias quanto as tristezas.

Certa noite, enquanto caminhava pela cidade iluminada, Daniel encontrou a mulher idosa vendendo flores novamente. Ele se aproximou e a agradeceu. 

– Você me ajudou a ver a beleza que estava escondida. Agora, consigo fluir como um rio. 

A mulher sorriu, seus olhos brilhando com a sabedoria que só o tempo pode trazer. 

– Lembre-se, jovem artista, que a vida é feita de ciclos. Sempre haverá pedras no caminho, mas é sua escolha como lidar com elas.

E assim, Daniel aprendeu que a revolta, quando bem direcionada, pode se transformar em força criativa. Pois, ao matar a revolta em seu peito, ele não apenas encontrou seu próprio caminho, mas também reacendeu a luz em outros, mostrando que, mesmo com pedras no leito, é possível fazer o rio correr alegremente.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais de grandes nomes da música brasileira. Morou na capital de São Paulo, onde nasceu, casado com a profa. da UEM Alba Krishna Topan radicou-se em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Confraria Brasileira de Letras, Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras Brasil/Suiça, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações: “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”; “Pérgola de textos” (crônicas e contos), “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas), “Chafariz de Trovas” e “Asas da poesia”.
Fontes:
José Feldman. Caleidoscópio da vida. Floresta/PR: Plat. Poe. Voo da Gralha Azul.
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Daniel Munduruku (Escrita indígena: registro, oralidade e literatura O reencontro da memória)


A escrita é uma conquista recente para a maioria dos 305 povos indígenas que habitam nosso país desde tempos imemoriais. Detentores de um conhecimento ancestral apreendido pelos sons das palavras dos avôs, estes povos sempre priorizaram a fala, a palavra, a oralidade como instrumento de transmissão da tradição, obrigando as novas gerações a exercitarem a memória, guardiã das histórias vividas e criadas.

A memória é, ao mesmo tempo, passado e presente, que se encontram para atualizar os repertórios e possibilitar novos sentidos, perpetuados em novos rituais, que, por sua vez, abrigarão elementos novos num circular movimento repetido à exaustão ao longo da história.

Esses povos traziam consigo a Memória Ancestral. Entretanto, sua harmônica tranquilidade foi alcançada pelo braço forte dos invasores: caçadores de riquezas e de almas. Passaram por cima da memória e escreveram no corpo dos vencidos uma história de dor e sofrimento. Muitos dos atingidos pela gana destruidora tiveram que ocultar-se sob outras identidades para serem confundidos com os desvalidos da sorte e assim sobreviver. Esses se tornaram sem-terras, sem-teto, sem-história, sem-humanidade. Tiveram que aceitar a dura realidade dos sem-memória, gente das cidades que precisa guardar nos livros seu medo do esquecimento.

Por outro lado – e graças ao sacrifício dos primeiros povos – outro grupo pôde manter sua memória tradicional e continuar sua vida com mais segurança e garantia. Esses povos foram contatados um pouco mais tarde, quando os invasores chegaram à Amazônia e tentaram conquistá-la, como já haviam feito em outras regiões. Tiveram menos sorte, mas também fizeram relativo estrago nas culturas locais e as tornaram dependentes dos vícios trazidos de outras terras. Foram enfraquecidos pela bebida, entorpecidos pela divindade cristã e envergonhados em sua dignidade e humanidade.

Esses povos – uns e outros – estão vivos. Suas memórias ancestrais ainda estão fortes, mas ainda têm de enfrentar uma realidade mais dura que a de seus antepassados. Uma realidade que precisa ser entendida e enfrentada. Não mais com um enfrentamento bélico, mas através do domínio da tecnologia da cidade. Ela é tão fundamental para a sobrevivência física quanto para a manutenção da memória ancestral.

Se estes povos fizerem apenas a “tradução” da sociedade ocidental para seu repertório mítico, correrão o risco de ceder ao canto da sereia e abandonar a vida que tão gloriosamente lutaram para manter. É preciso interpretar. É preciso conhecer. É preciso se tornar conhecido. É preciso escrever – mesmo com tintas do sangue – a história que foi tantas vezes negada.

A escrita é uma técnica. É preciso dominar essa técnica com perfeição para poder utilizá-la a favor da gente indígena. Técnica não é negação do que se é. Ao contrário, é afirmação de competência. É demonstração de capacidade de transformar a memória em identidade, pois ela reafirma o ser na medida em que precisa adentrar no universo mítico para dar-se a conhecer ao outro.

O papel da literatura indígena é, portanto, ser portadora da boa notícia do (re)encontro. Ela não destrói a memória na medida em que a reforça e acrescenta ao repertório tradicional outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral.

Há um fio muito tênue entre oralidade e escrita, disso não se duvida. Alguns querem transformar esse fio numa ruptura. Prefiro pensar numa complementação. Não se pode achar que a memória não é atualizada. É preciso notar que a memória procura dominar novas tecnologias para se manter viva. A escrita é uma delas (isso sem falar nas outras formas de expressão e na cultura, de maneira geral). E é também uma forma contemporânea de a cultura ancestral se mostrar viva e fundamental para os dias atuais.

Pensar a literatura indígena é pensar no movimento da memória para apreender as possibilidades de mover-se num tempo que a nega e que nega os povos que a afirmam. A escrita indígena é a afirmação da oralidade. Por isso atrevo-me a dizer como a poetisa indígena Potiguara Graça Graúna:

Ao escrever,
dou conta da minha ancestralidade;
do caminho de volta, do meu lugar no mundo.
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DANIEL MUNDURUKU (61), nasceu em Belém/PA. Escritor, professor, ator e ativista indígena brasileiro originário do povo munduruku. Graduou-se em Filosofia, História e Psicologia pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo, mestrado em antropologia social e doutorado em educação pela Universidade de São Paulo, pós-doutorado em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Diretor-presidente do Instituto Uk'a - Casa dos Saberes Ancestrais na cidade de Lorena, ONG e selo editorial especializados na temática indígena, é também membro da Academia de Letras de Lorena. Autor de mais de cinquenta livros, dentre os quais: Histórias de índio (1997), Kaba Darebu (2002) Coisas de índio (2003), Todas as coisas são pequenas (2018), Das coisas que aprendi (2014), Foi vovô que disse (2014), Catando piolhos, contando histórias (2014), Vozes ancestrais: dez contos indígenas (2016) etc. Vencedor de dois prêmios Jabuti: o primeiro, com a obra Coisas de índio em 2004, na categoria livro didático, ensino fundamental e médio; o segundo, com a obra Vozes ancestrais: dez contos indígenas, em 2017, na categoria literatura juvenil.

Fontes:
DORRICO, Julie; DANNER, Leno Francisco; CORREIA, Heloisa Helena Siqueira; DANNER, Fernando (Orgs.) Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018. (ebook)
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quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Asas da Poesia * 132 *


Poema de
CRIS ANVAGO
Setúbal/Portugal

Não sou poeta

Não me considero poeta ou poetisa
Não rimo, não sigo as regras, não tenho métricas.
Sou livre nas palavras, escrevo sentimentos e emoções.
Estes sentimentos fluem, sem regras ou tabus
Não quero fama,
apenas que sintam o que escrevo
Sintam nas minhas palavras as vossas emoções 
Libertem-se e sonhem
Descubram-se por dentro
Amem e demonstrem
Por gestos e carinhos

Não sou poeta, só sinto e escrevo

Se me conseguirem ler e sentir
mesmo nos espaços vazios, 
se as minhas palavras fizerem algum bem 
fico feliz e isso basta-me!
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Poema de
CECY BARBOSA CAMPOS
Juiz de Fora/MG

Ansiedade

Fujo da escuridão!
Quero a luz do saber,
o conhecimento da verdade,
o esclarecimento das mentiras,
o vislumbrar do sol.
Não entendo os morcegos
na escuridão das cavernas
nem a busca de ilusões
que encobrem a realidade.
Abomino
a falsidade dos améns
e o disfarce dos demônios
que confundem caminhos.
Quero enxergar borboletas
e ver estrelas que existem
apesar dos edifícios
que arranham céus
e limitam horizontes.
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Poema de
ÁLVARES DE AZEVEDO
São Paulo/SP, 1832 – 1851, Rio de Janeiro/RJ

Adeus, meus sonhos

Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!

Misérrimo! votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto...
E minh’alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.

Que me resta, meu Deus?!... morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já que não levo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!
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Triverso de
CLÁUDIO FELDMAN
Santo André/SP

Desdém

Alguém deixou
O chapéu para o vento,
Que atira longe o presente.
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Soneto de
AMÉLIA TOMÁS
Cantagalo/RJ, 1897 – 1992

Panteísmo

Vem abrir para o sol os teus olhos contentes
Diante da natureza e, em profano ritual,
Alma! às árvores conta a estranha ânsia que sentes
Em cada ondulação de cada vegetal!

Onde um rumor de vento entre as folhas pressentes,
Ouves um coração que te segreda e é tal
A alta repercussão dessas forças latentes,
Que vês na árvore um templo e na folha um missal.

Talvez, há muito tempo, em séculos distantes,
Por capricho de um deus foste árvore; de então
Guardaste a compreensão dos galhos soluçantes...

E de transmigração para transmigração,
No teu sangue ainda flui, em átomos errantes,
A angústia vegetal que há no teu coração ...
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Poema de
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Itabira/MG, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ

Órion

A primeira namorada, tão alta
Que o beijo não alcançava,
O pescoço não alcançava,
Nem mesmo a voz a alcançava.
Eram quilômetros de silêncio.
Luzia na janela do sobradão.
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Trova Popular

Tudo o que é triste no mundo
tomara que fosse meu,
para ver se tudo junto
era mais triste do que eu.
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Soneto de
AMÉRICO FALCÃO
Lucena/PB, 1880 – 1942, João Pessoa/PB

Vencido

Há longos anos, num pontal vivia,
firme, na areia, intrépido coqueiro,
alto, esbelto, soberbo... e resistia
todo rigor do rígido pampeiro.

Depois, frágil, sem vida se sentia,
pois, lentamente, o velho mar traiçoeiro
todo o seivoso pé lhe carcomia,
para vê-lo cair como um guerreiro!

E numa tarde lúgubre de agosto
fê-lo tombar exânime, na areia,
envolto na penumbra do sol-posto.

Houve uma cena trágica e sublime.
Chorava, de saudade, a maré cheia...
De certo o mar, se arrependeu do crime.
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Haicai de
CLÍCIE PONTES
Santo André/SP

Relãmpago na noite!
Revelando na colina
A capela branca...
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Poema de
PAULO LEMINSKI
Curitiba/PR, 1944 – 1989

A lua no cinema

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que tinha
cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
Amanheça, por favor!
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Soneto de 
ANTONIETA BORGES ALVES
Cruzeiro/SP, 1906 – ???, Diadema/SP

Crepuscular

No silêncio da tarde azul de fevereiro,
o horizonte irradia esplendor de cristais!
Até um sabiá que mora no coqueiro
suspendeu, enlevado, os ritmos tropicais...

Tanta calma faz crer que, sob o céu fagueiro,
as almas sem amor já não existem mais,
que a paisagem deslumbra e, pelo mundo inteiro,
todos sabem sentir amenos vesperais!

Mas, enquanto lá fora as nuvens do poente
põem limalhas de céu no espelho da lagoa
e põem no entardecer primícias de arrebol,

tu vais sem perceber o espaço reluzente,
sem prever que não é, não pode ser à-toa
que existe fevereiro e existe a luz do sol!...
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Haicai de
DÉBORA NOVAES DE CASTRO
São Paulo/SP

concha perolada
descoberta pelos ventos
soprar das areias
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Poema de
SYLVIO VON SÖHSTEN GAMA
Maceió/AL, 1923 – 2013

Abandonei

Abandonei a infância,
ainda cedo,
porque me fiz precoce.
Abandonei a adolescência
na excelência
de seu pleno gozo,
porque ao meu destino quis dar posse.
Abandonei a luta pela vida
quando senti cansaço.
E quanto a esta velhice?
Que é que eu faço?
Se a abandono…
Da vida passo.
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Soneto de
JOSENIR LACERDA
Crato/CE

Anseio

Quem me dera os adereços mais sutis
Para enfeitar meus versejos acanhados
Bastaria, perfumes primaveris
Ou os alcantis de um agreste abandonado.

Quem me dera o farfalhar de antigas sedas
Melodias de cantos gregorianos
O frescor mais ameno das alamedas
Abrigando sons e cores dos ciganos.

Da musa, verto o carinho e os afagos
O cantar inebriante das sereias
O encanto lúdico da arte dos magos

O uivar dos ventos das praias nas areias
Reflexos da lua no espelhar dos lagos
Calmaria logo após as marés cheias.
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Poema de
JUDAS ISGOROGOTA
(Agnelo Rodrigues de Melo)
Traipu/AL, 1901 – 1979, São Paulo/SP

O herói

"— Papai, o que é um herói?
Eu pergunto porque tenho grande vontade
De ser herói também ...

Será que posso ser herói sem entrar numa guerra?
Será que posso ser herói sem odiar os homens
E sem matar alguém?"

O homem que já sofrera as mais fundas angústias
E as mais feias misérias
Trabalhando a aridez de uma terra infecunda
Para que não faltasse o pão no pequenino lar;

O homem que as mais humildes ilusões perdera
No seu cotidiano e ingrato labutar;
Aquele homem, ao ouvir a pergunta do filho:
— "Papai, o que é um herói?"
Nada soube dizer, nada pôde explicar...

Tomou de uma peneira
E cantando saiu, outra vez, a semear!
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Soneto de
CRUZ E SOUZA
Florianópolis/SC, 1861-1898, Antônio Carlos/MG

Acrobata da Dor

Gargalha, ri, num riso de tormenta,
Como um palhaço, que desengonçado,
Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
De uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
Agita os guizos, e convulsionado
Salta, gavroche, salta clown, varado
Pelo estertor dessa agonia lenta ...

Pedem-se bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
Nessas macabras piruetas d’aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
Afogado em teu sangue estuoso e quente,
Ri! Coração, tristíssimo palhaço.
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Hino de 
Pilar do Sul/SP

Do brilho do esplêndido azul,
Da harmonia do verde horizonte,
Da vida que segue serena e feliz:
E os rios que fluem
Unindo a região,
A cidade ao nosso sertão

Pilar do Sul,
Nascente querida,
Que acolhe a todos nós!
Viver aqui é ser feliz,
Sempre juntos numa só voz:

Pilar do Sul
Nascente das águas,
Aqui é nosso lar!
E na paz de todo amor,
Para sempre vai brilhar

Um povo querido e acolhedor,
Na cidade, no campo, trabalhador.
Ao som do berrante, tropeira tradição,
Essência em meu coração.
Na lua,
Poesia de clara melodia ...
Do leste ao poente o sol maior!
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Poema de
MARLENE BERNARDO CERVIGLIERI
Ribeirão Preto/SP

As marcas na parede

Ainda estão lá, as marcas na parede.
Dizem alguma coisa, bem sei,
É justamente para eu não esquecer!
Estão firmes e posso vê-las,
De qualquer lado, até no espaço!

As marcas na parede...
Representam um lugar no meu coração,
Num passado distante,
Onde foram guardadas
As grandes e eternas ilusões...

Representam a captação de momentos
Preciosos, talvez
Aparentes também,
Não sei.
São marcas na parede.

Volto ao presente e, indolentemente,
Vou guardando o que sobrou das
Marcas ainda permanentes
Dos retratos!
Um a um, amarelados pelo tempo,
Que agora só deixam marcas
No espaço, e nas paredes.
Do tempo que há muito já se foi.
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Haicai de
EUNICE ARRUDA
Santa Rita do Passa Quatro/SP, 1939 – 2017, São Paulo/SP

No campo queimado
ainda uma leve fumaça
Tronco resistindo
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Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O leão e o pastor

Sendo furtado um cordeiro
Por fero, voraz leão,
O bazófio pegureiro,
Cheio de raiva e paixão,
Clama: «ó Jove justiceiro,
Se me entregas o ladrão,
Dou-te o mais gordo cordeiro
Que tenho no meu rebanho!
Ah! Que se entre as mãos te apanho,
Traidor que o meu ódio excitas,
À força de bordoada,
Faço-te o corpo em salada!»
Palavras não eram ditas,
Quando vê dum arvoredo
Sair o bravo leão!...
Eis convulso o fanfarrão,
Ficando a tremer de medo,
Olha d’um e d’outro lado
Para poder descobrir
Algum tronco onde subir;
Mas teme ser apanhado.
Em tão fera colisão,
Exclama: «Ó Jove sagrado,
Eu te ofertei um carneiro
Se o ladrão me descobrisses;
Agora o rebanho inteiro
Te dava se me acudisses!»
O generoso leão
Observando um tal receio,
Teve dele compaixão
E voltou por onde veio.

Lances de aperto e de horror
A pedra de toque são
Onde a fraqueza ou valor
Sinais de si logo dão.
Defronte do contendor,
Redobra o forte a coragem;
E o fraco blasonador
Muda, ao vê-lo, de linguagem.
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Monsenhor Orivaldo Robles (Dois beijos)


Presenteou-me a vida não com muitos, mas com bons amigos. Alguns, melhores do que mereço. Amigos cuja companhia o passar dos anos não submerge na rotina, mas renova como viço de planta nova.

Lá nos distantes idos dos anos sessenta conheci um. Ocupava o microfone da mais importante emissora local de rádio. Era exemplar no cumprimento de suas tarefas, que desempenhava com dignidade e nobreza iguais às de um porta-voz da BBC de Londres.

Eram outros os tempos, em nada parecidos com os de hoje. Já lá se vão quarenta e três anos, espaço de uma vida. Encontrávamo-nos com a assiduidade que permitiam compromissos da agenda rala e os espaços amplos de uma cidade rústica em que, para a gente se topar, bastava sair à rua.

Separou-nos a vida, senhora de imprevistos e dissabores. Por completo descuido ou propósito insondável, ela conseguiu embaraçar a urdidura do fio das Parcas, guiando-nos por rumos ditosos ou adversos, não traçados por nosso alvitre.

Não feneceu, contudo, em nenhum momento, a amizade; que esta nem os anos vividos nem as provações superadas lograriam mesmo alterar. Se mudança houve, foi para amadurecer entre nós uma estima que o tempo só aduba e fortalece.

As ruas desta cidade querida, em que Deus nos permitiu viver, teimam em fazer-nos ocupar amiúde a mesma calçada. Seu sorriso, de longe, apenas nos avistamos, irradia um facho de brilho, que doura de luz um fugidio encontro de minutos.

Num desses gratos momentos, na espontaneidade que nada ensaia, brindou-me com afirmação repentina, capaz de me fazer surpreso e edificado. Quando me afastava, recomendei: “Dê um beijo na Cida”. Ele, no estalo, o rosto inteiro iluminado: “Dou dois: um seu e um meu”.

Quando nos atinge o inesperado, quedamo-nos absortos num vácuo de surpresa, que nos colhe sem aviso. Prossegui meu caminho, garimpando agora reflexões antigas, que, de repente, se faziam novas: “Que coisa! Depois de anos a fio ouvindo e aconselhando casais à beira de um rompimento sem volta, me aparece assim na rua, sem aviso nem preparo, clara como manhã de sol, uma mostra do que devia ser a coisa mais natural do mundo. Como o amor de marido e mulher que une esses dois”.

Estão juntos há mais de cinquenta anos. Já casaram os três filhos. Desfrutam hoje daquele tempo que Deus concede a avós para contar aos netos uma infância e adolescência, há muito, vencidas. Dos primeiros tempos de casados o romantismo e a paixão cristalizaram um amor maduro e generoso. Feito de entrega e desprendimento, sem desilusão nem volta. Que se revela autêntico em cada momento, por desprezível que pareça.

Pegou-me desprevenido a declaração simples e pura, sem rebuço nem alarde, de uma grandeza que não tem vergonha de se mostrar. De algo puro, vivido no dia a dia. Que dispensa roteiros de propaganda, porque a verdade não carece de script para consumo externo. Isso, aliás, sempre me deixaram ver, embora nunca se preocupassem de mostrar. O que é transparente não precisa de vitrine. Está à vista de quem observa com atenção. Basta ter olhos e abri-los.
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Monsenhor Orivaldo Robles nasceu em Polôni (SP) em 1941. Estudou em Jales e Poloni e ingressou no Seminário Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto, em 1953. Cursou Filosofia em Curitiba (PR), graduando-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Mogi das Cruzes SP, com diploma reconhecido pela USP, São Paulo. Graduou-se em Teologia no Studium Theologicum de Curitiba, afiliado à Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma. Lecionou no Colégio Estadual Dr. Gastão Vidigal, e no Instituto de Educação, em Maringá (PR) (1967-1969). No Colégio Estadual e na Escola Normal de Paranacity (PR) (1970-1972). Por quase onze anos trabalhou como pároco de Marialva, de onde saiu no início de 1983 para assumir, por seis anos, o cargo de reitor do Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora da Glória – Instituto de Filosofia de Maringá. Em 1989 assumiu a Paróquia Santa Maria Goretti, em Maringá, onde trabalhou por mais de 20 anos. Desde 2009, trabalhou na Catedral Metropolitana de Maringá, exercendo a função de vigário paroquial. Foi palestrante convidado a discorrer, em colégios ou outros núcleos humanos, sobre temas ligados à cidadania, formação pessoal e sobre ética pessoal ou pública. Em 2012 teve publicado o livro “Celeiro Desprovido”, com 270 páginas, contendo 118 crônicas e artigos escritos desde 1995. Em 2017, foi publicado o livro dos 60 anos da Diocese de Maringá. Foi articulista mensal ou semanal, por mais de quinze anos, de jornais editados em Maringá, além de ter matérias reproduzidas em revistas ou blogs da região. Faleceu de enfisema pulmonar, em 2019, em Maringá/PR.

Fontes:
Recanto das Letras do autor. 27.01.2012.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/3464877
Imagem criada por Jfeldman

Newton Sampaio (Sonho verde)


Ao penetrar na mata opulenta, a estrada se transformava sem matizes em simples filete de solo, onde a vegetação não se desenvolvia pelo pisar e repisar contínuo dos colonos que, no trote inalterável dos cavalos, iam ou à vila fazer compras, ou à casa de Oscar de Oliveira — cuja fazenda os caboclos, por pilhéria ou por espírito de simplificação, denominavam “a fazenda do Nhô Ó”.

Também, era só no trilho que faltavam os rebentos do solo exuberante. De um lado e doutro surgiam caules dos mais variados aspectos — transformando-se para cima naquela disposição confusa de ramos robustos, de galhos menos viçosos, de esgalhos tenros (que por vezes silhuetavam sobre o caminho estreito uma abóbada rendada, por onde o sol conseguia filtrar-se nas tardes ardentes), e resolvendo-se abaixo da superfície em um emaranhado de raízes profundas, abundantes em seiva.

O porte das plantas comumente não atingia grandes proporções. O que, porém, elas perdiam em tamanho recuperavam em abundância, dispondo-se tão próximas que, sem exagero, o passante poderia supor a existência de um só tronco a perfurar avidamente a terra para nutrir toda aquela aglomeração de organismos famintos.

O riacho, muito tacitamente, esgueirava-se por aqui, por ali, até atingir a estrada, continuando a arrastar-se depois sobre o leito humilde e sinuoso.

Do solo, a umidade parecia elevar-se em emanações sensíveis.

Também, onde só penetrava uma amostra de sol (como diziam os caboclos), e assim mesmo só depois do meio-dia, não se poderia esperar outra coisa. Não era como nos lugares descampados, onde os raios ardentes se casavam com o bafo tépido da terra ressequida.

De repente, ainda desta vez sem matizes preliminares, a estradinha abria-se em um claro espaçoso, desnorteante, indesejável, para não mais retornar à semi-escuridão de outra mata silenciosa e fértil.

E ali, próxima à boca do caminho, uma habitação rústica erguia-se, insulada pela cerca baixa, de ripas paralelas.

Àquela hora parecia estar deserta, apesar das duas janelas, abertas com discrição, montarem guarda, uma de cada lado, à porta escancarada.

No terreiro, onde emergia atrás da casa o vulto esguio e nu da palmeira, só uma galinha, que não quisera procurar alimento mais para longe, ciscava o chão.

Por fim, violando aquela paz admirável, ecoa tênue uma vozinha de mulher. E sem muita demora, sai da mata uma figura delicada de cabocla que, ao surgir dentre as árvores, sente dilatar-se na clareira do terreno a cançoneta bucólica que trauteava com indolência.

— Arre! (exclama quando vê a casinhola modesta) que a minha cabeça não é de ferro.

E passa a carregar a vasilha na mão. Entra na cozinha desassoalhada. Despeja meia caneca d’água na panela de feijão. Olha ligeiramente os outros cozimentos. Depois volta. Mas sem cantarolar mais. Enxuga as mãos no vestido, feito de chita salpicada de bolinhas verdes. Atira os cabelos fartos e desalinhados para trás. E vai recostar-se no mourão da cerca, destinado à articulação do portão.

Descalça, os braços completamente nus, o colo, muito alvo, negligentemente descoberto em parte, e um cinto sem luxo ressaltando as formas jovens, Tinoca, na posição em que ficara, era bem um enfeite à paisagem que a rodeava.

O vento, soprando às vezes com um pouco de energia, fazia flutuar-lhe os cabelos longos para, desordenadamente, os atirar depois, como em desmaio, no dorso macio, e imprimia-lhe dobras graciosas nas vestes. Ela, então, sorrindo, uma vez ou outra, apertava com as mãos abertas, por pudicícia pueril, a saia rebelde que queria enrolar-se-lhe nas pernas.

— O Luís eu sei que só pode voltar de noite. Mas o pai... Há que tempo já aprontei a janta!

A cabocla, ensimesmando-se naquela atitude singela, estende os olhos negros pela verdura simétrica do cafezal imenso, sem parecer avistar os pés de milho, muito flavos, que, plantados no entremeio, lhe ressaltam o paralelismo caprichoso.

Lá em cima as baitacas, em colmeiação instantânea, verdejam por um momento o firmamento e, quais matracas aladas, enchem o ar com a desagradabilíssima voz.

E Tinoca pensa.

Pensa naquela sua vida solitária, passada entre dois homens, o pai e o irmão, que quase só apareciam em casa para comer e dormir.

Liberta depois o anseio incaracterístico, o prurido ingênuo de qualquer coisa vaga, que ela não sabia explicar ainda e que fosse como um raio de sol a brincar, muito ardente, na mata querida, sobre verde folhinha.

Por fim, ruborizada de leve a face morena, deixa talhar-se no coração palpitante a figura máscula e simpática do Jovino.

— O Jovino... Há quatro meses que está lá na cidade, servindo no exército... Mas o Jovino voltará logo. Ele me disse, antes de partir, na festa de São Sebastião. Quando ele voltar... Ninguém desconfiou ainda. E se o pessoal soubesse o que nós conversamos naquela noite...

Feliz, continua Tinoca o devaneio. Imagina uma porção de coisas. Depois lhe parece luciluzir no meio da visão caleidoscópica, emergindo do amontoado de ideias, o sorriso do Jovino, já de volta da Capital, oferecendo o coração generoso e apontando para ambos uma pletora de venturas. Figura na mente enxameada de sonhos o espanto do povo quando ele viesse pedir a permissão do pai para ampará-la nos braços robustos durante a existência toda.

— E papai, ao nos ver celebrar o noivado mais ditoso deste mundo, abençoará com um sorriso de bondade a felicidade de sua querida Tinoca. Quando, bem de tardinha, depois de mourejar valentemente o dia inteirinho para poder sustentar com vantagem a situação próxima, o Jovino me vier dar o presente de seus olhares, nós sairemos por aí, sorvendo o perfume destes pagos, gozando as belezas das tardes do meu sertão, acariciados pela frescura da mata irmã, onde nos abraçaremos pelos olhos, no mutismo bom de dois amores inestioláveis. Quando, nos domingos bonitos com que a imensa bondade de Deus premia os esforços do homem do sítio, nós formos à vila assistir à missa, ouviremos o pregão de casamentos. Depois, todos manifestarão no “bom-dia” rude o desejo de ver realizada nossa grande felicidade. E quando, ao outro janeiro, o São Sebastião, todo cheio de frechas, os braços arroxeados, as pálpebras semi-cerradas pela dor, for colocado com seus farrapos no andor florido...

...E continua Tinoca a sonhar...

O fazendeiro Oscar de Oliveira não era homem de tolerar ninharias. Se, em horas de serviço, atingia excessos de exigência, quando chegavam os momentos de diversão, queria que os colonos se divertissem à farta. Nem que fosse preciso sacrificar uma boa parte de seus teres e haveres.

Por isso eles ansiavam por qualquer festa protegida pelo patrão, porque tinham por certo que a coisa deixaria saudades.

Não permitindo seus recursos uma festa digna do casamento da filha, o velho Malaquias decidir-se-ia a expor a situação a seu Oscar. E numa tarde de sábado vai surpreender o patrão despreocupadamente recostado na rede do terraço, a afagar a negrura esquerda do bigode.

— Tá descansando da lida, patrão?

— É verdade. Estive percorrendo o cafezal para arranjar outros planos.

— Ahn!

O velho, após uma pausa, parece tirar a timidez com o pigarro:

— Patrão. Eu vim aqui tratar de um negociozinho com o senhor...

— Desembucha, homem. Este fazendeiro velho não quer segredos entre si e os colonos.

— É que... O Jovino, aquele seu afilhado, sabe?... O filho do compadre Henrique... Pois ele foi lá em casa pedir pra casar com a minha menina...

— Chê! Malaquias. E você não tem tristeza em ficar sozinho no rancho? O Luís daqui a pouco zarpa também. Já está passando da idade de arranjar mulher!

— Sim. Eu bem que pensei nisso. Mas o pobre do caboclo nessas coisas tem coração de galinha. Eu vi que ele queria, que ela também queria...

— E pra quando marcaram a festa?

— A Tinoca me disse que fez uma promessa de se casar no dia de São Sebastião.

— Eh! Está bem perto!

E enrolando o comprido cigarro de palha, silencia por um momento. Depois:

— Nós precisamos dar um jeito nisso. É falta de caridade separar-se você da menina, para viver na solidão, sem mulher em casa. Se a pobre de sua patroa ainda vivesse...

O caboclo roda o chapéu de palha nos dedos. Treme levemente.

— Ainda hoje eu estive pensando em derrubar um pedaço daquela moita perto de sua casa, para aumentar o terreno vazio do lado, e encher tudo isso de café. Não quero mais terras pra bonito. Preciso plantar, plantar...

E com expressão de simpatia:

— Malaquias. Que tal se o Jovino tomasse essa empreitada? Ele está mesmo livre agora... E assim ficariam todos morando juntos.

Num ofego de gratidão e de indisfarçada alegria, Malaquias sorri, suspirando depois baixinho:

— Que alma de pomba esta do patrão...

Na noite de São Sebastião, noite quente de janeiro, a casa grande da fazenda apresentaria festivo aspecto. Nenhum caboclo, desde a última safra, se “enforcara” no casamento para proporcionar uma festança daquelas, e desta vez o patrão se empenharia em fazer um colosso. Solenizando a festa do padroeiro, protege o afilhado em segundo paraninfado. Até a Nirinha, sua filha, não sei por que cargas d’água, desta vez tira da cabeça original ideia. Traz da cidade próxima, em jovial alarido, um magote de rapazes fanfarrões e moças alegres. E organiza dois salões de danças. Um para as pessoas da cidade e outro para a caboclada do sítio.

Lá pelas seis horas, mais ou menos, serve-se o jantar.

Jantar farto, sem pratos finos, mas tudo com grande abundância. Carnes pletoradas de gordura são desagregadas no grande tacho ajeitado no terreiro. As caboclas encarregadas do serviço desdobram-se em solicitude. A mulatinha da casa, sem tréguas, atende à mesa para avisar as cozinheiras logo que, retirada da mesa cada leva de pessoas, seja necessário trocar os pratos usados, reencher as travessas, servir novamente a broa ou o pão à nova turma de convidados.

E depois, debaixo do plenilúnio branquejando lá em cima num sorriso de bênção e de alegria também, os dois bailes prosseguem animados.

Na sala do pessoalzinho da cidade uma vitrola das grandes comicha com seus sambas pererecas as pernas daquela mocidade despreocupada.

E, no salão improvisado e vasto dos sertanejos, a sanfona e o cavaquinho fazem girar no assoalho desparelho, donde surde irrepressível o pó, aquela turba de corpos suarentos, rudes, meio abrutalhados, sensuais, que afogueadamente aconchegam espáduas, embatem dorsos, entrechocam ancas.

De tempos em tempos percorre a sala o garrafão da “fervida”, da qual todos participam, o que aumenta ainda mais o ardor da dança pesada, lenta, deselegante, mas plena de alegria cabocla, de arfares sorridentes, de desejos esbatidos.

Assim a música da cidade e a música da roça se consubstanciam nos ares da pacífica fazenda do “Nhô Ó”, segregando, por assim dizer, ao ouvido do observador silencioso, que o amor existe tanto numa como noutra e, ao mesmo passo que no burburinho dos centros, gera a alegria no recesso do sertão.

Noite alta. Os pares do salão dos sertanejos acham-se diminuídos. A sala dos da cidade resta abandonada e escura.

No interior da casa grande a Nirinha corre de um lado e doutro para promover a acomodação de seus convidados.

Tinoca, muito bonita nos enfeites de noiva e mais corada ainda pelas sensações novas do dia, sente-se cansada. Ardem-lhe os olhos. Procura um canto solitário. E medita.

Ela... Como era feliz! Merecer esta festa do patrão... E o despeito das outras caboclas, então. Como se sentia orgulhosa de ser invejada!

Bem que vira o jeito da antiga namorada do Jovino. Bem que vira. Mas se limitara apenas a sorrir sobranceira, no gozo intenso de sua dita mais intensa ainda.

E a ideia da Nirinha? Quando é que outra cabocla tinha fruído, no dia do casamento, a presença de pessoas da cidade? Nunca! Só ela. Mais ninguém!

Além disso, como não se sentir orgulhosa com o discurso do tal de Humberto, um dos moços da cidade? Ele, num momento dado, durante o jantar, levantara-se. E, entre dois copos de cerveja, dissera meia dúzia de palavras que aos outros poderia provocar risadas. Mas que a ela encheria de uma infinita alegria.

Imaginem só! Um discurso feito por um rapaz da cidade!...

Para Tinoca, todas essas pequeninas coisas, esses acidentes insignificantes, teriam importância enorme. E ela acalentaria no cérebro, monopolizado pelas ideias de sua felicidade, este pensamento sutil:

— Ah! O meu casamento será lembrado aqui durante muitos anos.

A casa do fazendeiro Oscar de Oliveira não seria suficiente para abrigar todos os convidados da Nirinha. E (que fazer?), entre as mil e uma desculpas desta, uns seis rapazes resolvem passar o exíguo restante da noite no automóvel. Vão. Mas apenas silenciam, desacomoda-se o Humberto, o títere da turma, e diz num sorriso:

— Que tal? Vamos “sapear” o baile dos caboclos? Quem sabe encontramos lá qualquer morena alinhada, e então...

Visível agrado acolhe a ideia.

— Também, de que adianta dois segundos de olho fechado? A lua ainda não quis fechar o seu...

Saem os rapazes. Passam por detrás da casa, onde alguns tições ardem debaixo dos tachos. Atravessam o pátio iluminado pelo luar muito claro. Entram no salão de baile. Poucos pares. O homem da sanfona, abrindo e fechando o fole, de vez em quando ginga o corpo de sono. E os dançadores conservam ainda o gesto afogueado de juntar sensualmente os corpos. Continuam no mesmo bamboleio pesado, lento, deselegante do começo.

Logo ao entrar, Humberto avista uma caboclinha dengosa, de fita em diadema e farta de seios.

Reúne-se o grupinho a um canto, como que acossado. E o folgazão do orador segreda:

— Na outra marca eu vou pegar aquela morena de olhos tentadores.

Os outros riem da audácia.

— Cuidado, que qualquer galã daí te vira no avesso.

Humberto sacode os ombros. Sorve um trago da “fervida”, pigarreando.

E ao sanfoneiro:

— Maestro. Uma valsinha, agora.

O gaiteiro inicia uma peça batidíssima.

Aproxima-se o moço da morena. E balbucia numa reverência irônica:

— Senhorita...

A cabocla, aturdida, enleada, cora imediatamente, dizendo num gaguejo:

— Mas... eu...

Nesse momento o seu par de há pouco, um “cabra” espadaúdo, de fisionomia carregada, e que lhe dera as costas logo após o final da música anterior, vira-se bruscamente:

— Como é? O que é que o senhor está dizendo?

Sem esperar resposta, vermelho de cólera, e já no começo da embriaguez, fita o audacioso de alto a baixo. Encosta-lhe o peito, com desplante inaudito.

E como um trovão:

— O quê? Então minha noiva é mulher para dançar com almofadinha de meia-tigela?

Humberto, no auge do espanto, dá um passo para trás, estarrecido.

Onde o assoalho para pisar? Onde os companheiros para conter aquele brutamontes raivoso?

Os sertanejos olham mudos a cena, que se tornara angustiante para os jovens intrusos.

E só a entrada casual do fazendeiro no salão impede que a coisa adquira mais amplas proporções.

Depois que, corridos de vergonha, desaparecem por detrás da casa os rapazes da cidade, Tinoca pensa com seus botões:

— E mais esta briga, ainda, para fazer com que o meu casamento seja lembrado por muitos anos...

O sol já deixara de coar-se na abóbada do caminho estreito. As baitacas não mais traçavam um rastilho verde no céu do sertão. Os cafezais não eram agora senão retas escutas que punham relevo nas primeiras projeções da lua cheia.

Recostada no mourão da cerca que completava o insulamento daquela casinhola modesta, construída no claro desnorteante, a cabocla em silêncio prossegue na cisma.

Cabrioleiam-lhe os cabelos no colo meio descoberto. Saltitam-lhe depois nas espáduas macias enquanto alguns fios mais longos acariciam os braços nus, em tentação de amplexos amorosos. A saia, vira-mexendo sem cessar pelo sopro do vento, teima em lhe cingir as pernas, ondulando-se, como em desmaio, no regaço apenas esboçado.

E Tinoca, sob o branquejar do plenilúnio tão lindo quanto desejara na feliz noite de São Sebastião, continua a ninar aquele sonho rendilhado de esperança, verde como as baitacas vesperais que antes passavam em bandos, verde como a simetria caprichosa do cafezal em frente, como as bolinhas verdes do seu vestido de chita...
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Newton Sampaio natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 01/07/1933.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing