quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

José Feldman (As Sombras da Solidão)

(a crônica abaixo, infelizmente, são fatos comuns hoje em dia, alguns elementos a mais fazem parte desta história, mas boa parte deles são componentes do cotidiano de muitos outros idosos)

Seu nome é Lúcio, um homem que aos 71 anos de idade, vive sozinho em uma pequena casa no interior do Paraná. Para muitos, sua vida pode parecer simples ou até mesmo pacata. Mas, para ele, cada dia é uma batalha silenciosa contra a solidão. Durante mais de uma década, sua única companheira tem sido Sol, uma cadela, que, com seu olhar amoroso e sua presença constante, é a única luz nesta escuridão.

Dezembro chega com a sua fanfarra de luzes cintilantes e sorrisos forjados, uma estação de rádio que só toca a melodia da sua solidão. A proximidade das festas de final de ano não traz alegria; traz uma maré crescente de desânimo e uma depressão silenciosa que se senta com ele à mesa de jantar vazia. Uma onda de melancolia toma conta. É uma época em que todos parecem se reunir; os sorrisos, as luzes, os abraços calorosos. Mas ali, dentro das quatro paredes de sua casa, a realidade é bem diferente. As ruas decoradas e cheias de vida contrastam bruscamente com o vazio do seu lar. Seus familiares, que vivem longe em outro estado, nunca vêm para o visitar. Suas desculpas são sempre as mesmas: “Não posso agora; estou ocupado”, “O trânsito é terrível nessa época”, “É muito longe”. A verdade, que ele já conhece, é que não há espaço para ele na vida deles.

Desde a morte de sua mãe, sete anos atrás, sentiu como se um pano escuro tivesse sido puxado sobre sua existência. Ela era seu porto seguro, a única que o entendia sem precisar de palavras. Com a sua partida, um pedaço dele se foi, e com ele, a conexão com o resto da família. Ele só queria um toque humano, uma palavra amiga, alguém que dissesse que se importava. Mas, em vez disso, o eco do silêncio se tornou seu único familiar.

O casamento com Clara não sobreviveu ao peso das expectativas e dos sonhos desfeitos. Quando conversava com ela, sentia o abismo entre eles, maior que qualquer distância física. Ela fala com um tom sereno, mas em suas palavras há uma nota de superioridade que o fere, quase como se ele fosse um projeto inacabado em comparação aos seus sucessos. Por Lúcio não ter um diploma universitário, a seus olhos era apenas um homem que fracassou em vários aspectos da vida. Ela tem o seu diploma universitário, a sua carreira, a sua vida estruturada, e não perde a oportunidade de lhe fazer sentir a sua falta de instrução. As conversas são um exercício de paciência; ela fala sobre as conquistas e seu trabalho, e ele escuta, tentando encontrar sua voz entre as lembranças que a cercam. Em dias como esses, a saudade se mistura com um profundo desânimo. É uma dança estranha: enquanto ela compartilha sua vida, ele é um espectador, preso em polaroides de um passado que não consegue mudar. Apesar disso, se mantém conectados, a sua conexão distante com o resto do mundo. Neste momento, ela é a ponte que liga seu presente ao passado, embora ele saiba que essa ponte balança sob o peso de suas frustrações.

Sol, por outro lado, não se importa com diplomas ou conquistas. Para ela, ele é suficiente. Quando olha nos olhos dela, percebe que, apesar da dor e da solidão, é amado de uma maneira pura e verdadeira. Ela não sabe das cicatrizes que ele carrega, dos fantasmas que habitam a sombra de sua vida. Para ela, não importa se o Natal não terá presentes, árvores decoradas ou ceias fartas. O que importa é estarem juntos, no calor do seu pequeno lar, onde ele faz o melhor que pode para garantir que ela se sinta amada tanto quanto ele sente.

Refletindo sobre todos esses anos, recorda de um tempo em que também foi pai. Sua filha, que não viveu o suficiente para conhecer o mundo, deixou uma cicatriz que nunca se apagará. Ela foi brutalmente levada dele com apenas alguns meses de vida, O destino, porém, tinha planos cruéis. A sua menina, a sua preciosa filha, foi-lhe tirada de forma brutal, assassinada com apenas alguns meses de vida. Suas esperanças, sonhos e anseios se desfizeram em um instante, como se um vendaval tivesse passado e levado tudo que ele mais amava. A dor foi insuportável. A mãe da menina, a mulher que ele amava, afundou na escuridão da sua própria dor. A perda dela foi o último golpe, e ela decidiu que não queria mais viver, preferindo a escuridão eterna à dor insuportável da realidade. Enquanto a via partir, entendeu que a vida era feita de uma montanha-russa de alegrias e tristezas, mas ele parecia viver só a parte mais pesada da queda, deixando-o num desespero que ainda hoje molda o seu ser. Esse capítulo da sua vida é uma ferida que nunca cicatriza, um lembrete constante da fragilidade da felicidade.

Agora, aqui está, um homem de 71 anos que vive cercado por sombras do passado. À medida que o Natal se aproxima, as memórias se tornam mais intensas: o cheiro da comida que sua mãe preparava, os cafés à tarde, as brincadeiras que ecoavam pela casa, o calor dos abraços de sua esposa. Essas lembranças são tanto o seu consolo quanto a sua condenação. O tempo não apagou a dor, ele apenas a tornou parte de quem é.

Nesta véspera de Natal, enquanto Sol se aconchega ao seu lado no sofá, sente a solidão se instalar ao seu redor. Neste momento, não tem presentes para dar. Não há árvores cheias de enfeites, nem laços coloridos. Passarão as festas juntos, no silêncio da sua casa, observando o mundo lá fora celebrar uma união que não lhes pertence. Ao invés disso, o que há é a promessa de mais um dia juntos, uma certeza que, apesar de tudo, traz um leve sorriso aos seus lábios. Ao olhar pela janela, as luzes piscantes da cidade não lhe atraem mais. Em vez de lembrar do que perdeu, sente uma alegria ainda que transitória de estar com seu amor maior, sua cadela Sol.

Percebe que, mesmo sem a presença da família, tem Sol, sua única família presente, verdadeira, que sempre estará ao seu lado, com seu amor incondicional. Ela é a única razão pela qual ainda levanta da cama todos os dias. Ela é o seu raio de sol que lhe aquece as manhãs.

Eles, na certa, se aconchegarão em um canto do sofá, com um filme antigo na televisão e o coração esperançoso, mesmo que ligeiramente quebrado. Porque a vida, com todas as suas durezas, ainda tem seus pequenos momentos de alegria. E enquanto Sol estiver ali, ele não estará completamente sozinho.

Ah, como gostaria de viver por um momento, a festa que tanto anseia. Mas o que ele tem é uma xícara de chá e a alegria simples que Sol traz para os seus dias.

Afinal, Lúcio e Sol são uma dupla imbatível, navegando em mares de solidão. E quando der meia-noite na certa ficarão deitados lado a lado como dois seres que se amam muito e esperando o sono os levar a um mundo de sonhos, de felicidade, de amor, de amizade, de espíritos livres.

No final, o que mais poderia desejar além disso? Um amor simples, uma amizade leal, e a esperança de que um dia, as sombras do passado possam dar lugar a dias mais iluminados. Para ele, isso deve ser suficiente.

***********************************************************
JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado  em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais e oficina de trovas. Morou 40 anos na capital de São Paulo, onde nasceu, ao casar-se mudou para o Paraná, radicando-se em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence à Confraria Luso-Brasileira de Trovadores (SP), Academia Rotary de Letras, Artes e Cultura (SP), Academia Movimento União Cultural (SP), Academia Virtual Brasileira de Trovadores (RJ), Confraria Brasileira de Letras (PR), Academia de Letras de Teófilo Otoni (MG), Academia de Letras Brasil-Suiça (em Berna), Casa do Poeta "Lampião de Gaz" (SP),, Ordem dos Cavaleiros Templários, Ordem Sagrada do Templo e do Graal. Possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, Voo da Gralha Azul (com trovas de trovadores vivos e falecidos). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações: 
Publicados: “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”.
Em andamento: “Pérgola de textos”, "Chafariz de Trovas", “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas), “Asas da poesia”, "Reescrevendo o mundo: Vozes femininas e a construção de novas narrativas", "Almanaque Poético Brasileiro vol. 1".

Fonte: José Feldman. Caleidoscópio da Vida. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2025.
Imagem obtida com Microsoft Bing

domingo, 21 de dezembro de 2025

Asas da Poesia * 144 *


Poema de
DJALMA PASSOS
Boca do Acre/AC 1923 – 1989, Rio de Janeiro/RJ

Procedência

Venho do mundo dos desiludidos,
De onde a vida se tornou amarga e inconcebível,
De onde a tristeza estendeu suas asas negras
Como um pássaro agoureiro e cruel
Sobre os homens e as cousas...
Venho de um submundo abandonado
Onde não há Deus nem manhãs de sol,
Nem noites de luar nem dias sem crepúsculos,
Onde tudo vaga sem destino,
Sem finalidade e sem conforto...
Trago na garganta o gemido dos aflitos,
No peito a tortura dos injustiçados
E no olhar a mensagem dos eternamente perdidos...

É por isso que a minha alma tem essa vontade estranha
De pairar acima do infinito
E de viver no fundo dos abismos...
 = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de
CECÍLIA UGALDE
Rio Branco/AC

Urgência de você

Tenho fome de tua boca, da tua pele,
De sentir no meu corpo tua ousada mão
Ando com fastio de outros alimentos
Já não me sustenta o sagrado pão.

Estou faminta do teu sorriso inebriante,
Dos teus cabelos feitos de raios de sol
Caminho pelas ruas como um vigilante
Farejando o som distinto dos teus pés.

Busco teus traços na manhã que chega
Quero me alimentar da tua mente atrevida,
Da tua fúria no meu corpo confidente e solto

Quero respirar o sabor que me adoça a vida
Vestir o segredo do teu corpo soberbo e nu
Até saciar a fome que existe em mim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
EDMILSON FIGUEIREDO
Xapuri/AC

Bicicleta

Da primeira bicicleta
tive medo,
era enorme para mim.
Maior que o mundo,
não alcançava a sela.
Mas foi com ela
que percorri a rua,
dobrei esquina,
rompi fronteira,
senti o vento,
a sombra do sol...
Na chuva,
cheguei nas nuvens.
                Visitei estrelas,
                pus os pés no céu,
só porque
venci o medo!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Popular

Essas meninas de agora,
todas querem se casar;
põe a panela no fogo,
e não sabem cozinhar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de
DALMIR FERREIRA
Rio Branco/AC

Soneto

Um soneto como qualquer poema
Pouco representa para um ouvido
Que sem a sensibilidade ao tema,
Não é de separara música de ruído.

A indiferença que pro saber acena
Insensível a mente do ser instruído
Sempre incorrerá na terrível pena
De não discernir a fala de um latido

Qualquer arte, só entrará em cena,
Quando em pé, liberto do grunhido,
Capaz de fala, de decifrar o fonema,

O homem, já sapiens tenha banido,
Dele a fera ou a tenha feito amena,
E em si um espírito haja reconhecido.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova do
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Bem no centro da moldura,
tua foto me sorria;
nunca vi tanta ternura
numa só fotografia.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
GLÓRIA PEREZ
Rio Branco/AC

Limbo

nem sabia o nome dela
Gostei dos seus olhos vagos
das bobagens que fazia
pensando que impressionava

       um dia assim de repente
sorriu com jeito de amante
eu o beijei como amada
pediu com fome de um dia
lhe dei com a de toda a vida

       ele ficou mais calado
e tem andado arredio
coma medo que eu me apaixone
e venha a lhe criar caso

       é tão menino, tão verde
nada sabe da paixão
— apenas me rói entranhas
sem tocar no coração
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de
RICARDO CAMACHO
Rio de Janeiro/RJ

Destemido 

Nada há que me machuque ou que me vença,
Que me enclausure num caixote preto,
Que me proíba de fazer soneto
Ou que me faça sucumbir à crença

De ser um mal a perfeição pretensa,
Muito maior que o fútil e obsoleto...
Portanto, nestes versos, pois, prometo
Não desistir da evolução intensa!

Sou eu o autor do próprio desempenho,
Eu organizo as letras... vou e venho
Feito um soldado da arte nas estradas...

Concedo ao meu leitor o acolhimento,
Tirando-o da tristura ao dar o alento
Na porta das saudáveis madrugadas!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
HELOY DE CASTRO
Rio Branco/AC

Ah... você calou meu canto,
vestiu de pranto o meu olhar,
eu era o mundo a lhe abraçar
um peito amigo a quem buscar
minha saudade é ímpar
meu organismo é meio
meu complemento é você...
seu lindo corpo é arma
meu ego me desarmou,
vai amante, fica amada
na luta sou perdedor
você, amor precoce
você, questão de sexo...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de
GILLIARD SANTOS
Fortaleza/CE

Ampulheta

A areia ali se move lentamente
Neste artefato frágil e incolor...
E em sua ação mecânica e silente,
Vai alcançando o bojo inferior.

Os grãos de areia nunca irão se opor
À lei da gravidade contundente...
Transcorrem, exercendo seu labor,
Cumprindo sua sina, tão somente.

Naquele artigo que hoje adorna a sala
A areia nunca volta, nunca entala
E vai, por ele, sendo consumida.

O tempo, em categórica faceta,
Trabalha assim, conforme essa ampulheta,
Levando, pouco a pouco, nossa vida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
JOÃO PAULO SALES DA SILVA
Rio Branco/AC

Sinceridade e paixão

Mesmo parecendo ilusão
O que eu sinto é paixão
Deixaria tudo por você

O que quiseres de mim te darei
O que pedir para mim eu farei

Sinto ciúmes porque te amo
Suas beldades, seu jeito
Tudo em você é perfeito
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Aos bons sonhos agradeço, 
mas às insônias também... 
– Ah, quantos versos eu teço 
enquanto o sono não vem! 
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Galope à Beira-mar de
JOSÉ LUCAS DE BARROS
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

Eu fiz bons estudos à luz da candeia,
andei muitas léguas com os pés no chinelo,
fiz carros de tábuas batendo martelo
e cintos de couro torcendo correia;
enchi as veredas de açudes de areia,
sonhando que um dia pudesse pescar
com redes de linhas que voam no ar
ou grandes tarrafas jogadas no rio,
até que enfrentasse maior desafio
em cima de um barco nas águas do mar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Hino de 
Campos do Jordão/SP

Campos do Jordão
Maravilha da minha terra
Campos do Jordão
Joia do Alto da Serra
Campos do Jordão
Obra suprema do divino mestre
Que fez de ti um paraíso terrestre!

Entre as matas verdejantes
E os pinheirais gigantes
Correm rios murmurantes
Sob o céu primaveril
És o meu rincão paulista
O encanto do turista
E o orgulho do Brasil!

Campos do Jordão
Maravilha da minha terra
Campos do Jordão
Joia do alto da serra
Campos do Jordão
Obra suprema do Divino Mestre
Que fez de ti um paraíso terrestre!

Há no alvor das floradas
Poesias imortais
E no tempo das geadas
Lindas manhãs hibernais
Pôs em ti a natureza
Reuniu tanta beleza
Que ninguém esquece mais!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
NAYLOR GEORGE
Rio Branco/AC 1956 – 2019

Atração Fatal

Não foi um beijo no sol
Que me fez arder na lua
E te amava andando numa rua
Onde não morava o ódio

Nem foram teus olhos de fera
Me fotografando inteiro
Nem os gestos verdadeiros
Que habitam os vultos raros

Foi o teu esgar, teu gemido de fera, teu cheiro moreno
Exalando ao vento norte
Tangendo as sombras da morte
Trazendo de volta o sossego...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O velho, o rapaz e o burro

O mundo ralha de tudo,
Tenha ou não tenha razão,
Quero contar uma história
Em prova desta asserção.

Partia um velho campônio
Do seu monte ao povoado;
Levava um neto que tinha,
No seu burrinho montado.

Encontra uns homens que dizem:
«Olha aquela que tal é!
Montado o rapaz, que é forte,
E o velho trôpego a pé!

— Tapemos a boca ao mundo,
O velho disse: — rapaz,
Desce do burro, que eu monto,
E vem caminhando atrás.»

Monta-se, mas dizer ouve.
«Que patetice tão rata!
O tamanhão, de burrinho,
E o pobre pequeno à pata!

— Eu me apeio, diz, prudente,
O velho de boa fé;
Vá o burro sem carrego,
E vamos ambos a pé.»

Apeiam-se, e outros lhes dizem:
«Toleirões, calcando a lama!
De que lhes serve o burrinho?
Dormem com ele na cama?

— Rapaz, diz o bom do velho,
Se de irmos a pé murmuram,
Ambos no burro montemos,
A ver se ainda nos censuram.»

Montam, mas ouvem de um lado:
«Apeiem-se, almas de breu,
Querem matar o burrinho?
Aposto que não é seu!

— Vamos ao chão, diz o velho,
Já não sei que hei de fazer!
O mundo está de tal sorte,
Que se não pode entender.

É mau se monto no burro,
Se o rapaz monta, mau é;
Se ambos montamos, é mau,
E é mau se vamos a pé!

De tudo me têm ralhado;
Agora que mais me resta?
Peguemos no burro às costas,
Façamos ainda mais esta!

Pegam no burro; o bom velho
Pelas mãos o ergue do chão,
Pega-lhe o rapaz nas pernas,
E assim caminhando vão.

«Olhem dois loucos varridos!
Ouvem com grande sussurro, —
Fazendo mundo às avessas,
Tornados burros do burro!»

O velho então para, e exclama:
«Do que observo me confundo!
Por mais que a gente se mate,
Nunca tapa a boca ao mundo.

Rapaz, vamos como dantes,
Sirvam-nos estas lições:
É mais que tolo quem dá
Ao mundo satisfações.»
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = =

domingo, 14 de dezembro de 2025

Autor Anônimo ( Fábula do Rei e suas 4 Esposas)


Era uma vez... um rei que tinha 4 esposas.

Ele amava a 4ª esposa demais, e vivia dando-lhe lindos presentes, joias e roupas caras.

Ele dava-lhe de tudo e sempre do melhor.

Ele também amava muito sua 3ª esposa e gostava de exibi-la aos reinados vizinhos.

Contudo, ele tinha medo que um dia, ela o deixasse por outro rei.

Ele também amava sua 2ª esposa. Ela era sua confidente e estava sempre pronta para ele, com amabilidade e paciência. Sempre que o rei tinha que enfrentar um problema, ele confiava nela para atravessar esses tempos de dificuldade.

A 1ª esposa era uma parceira muito leal e fazia tudo que estava ao seu alcance para manter o rei muito rico e poderoso, ele e o reino. Mas, ele não amava a 1ª esposa, e apesar dela o amar profundamente, ele mal tomava conhecimento dela.

Um dia, o rei caiu doente e percebeu que seu fim estava próximo.

Ele pensou em toda a luxúria da sua vida e ponderou:
- É, agora eu tenho 4 esposas comigo, mas quando eu morrer, com quantas poderei contar?

Então, ele perguntou à 4ª esposa:
- Eu te amei tanto, querida, te cobri das mais finas roupas e joias. Mostrei o quanto eu te amava cuidando bem de você. Agora que eu estou morrendo, você é capaz de morrer comigo, para não me deixar sozinho?

- De jeito nenhum! – respondeu a 4ª esposa, e saiu do quarto sem sequer olhar para trás.

A resposta que ela deu cortou o coração do rei como se fosse uma faca afiada.

Tristemente, o rei então perguntou para a 3ª esposa:
- Eu também te amei tanto a vida inteira. Agora que eu estou morrendo, você é capaz de morrer comigo, para não me deixar sozinho?

- Não!!! - respondeu a 3ª esposa.– - A vida é boa demais!!! Quando você morrer, eu vou é casar de novo.

O coração do rei sangrou e gelou de tanta dor. Ele perguntou então à 2ª esposa:
- Eu sempre recorri a você quando precisei de ajuda, e você sempre esteve ao meu lado. Quando eu morrer, você será capaz de morrer comigo, para me fazer companhia?

- Sinto muito, mas desta vez eu não posso fazer o que você me pede! – respondeu a 2ª esposa. – O máximo que eu posso fazer é enterrar você!

Essa resposta veio como um trovão na cabeça do rei, e mais uma vez ele ficou arrasado.

Daí, então, uma voz se fez ouvir:
- Eu partirei com você e o seguirei por onde você for...

O rei levantou os olhos e lá estava a sua 1ª esposa, tão magrinha, tão mal nutrida, tão sofrida... 

Com o coração partido, o rei falou:
- Eu deveria ter cuidado muito melhor de você enquanto eu ainda podia... 

Na verdade, nós todos temos 4 esposas nas nossas vidas...

Nossa 4ª esposa é o nosso corpo. Apesar de todos os esforços que fazemos para mantê-lo saudável e bonito, ele nos deixará quando morrermos... 

Nossa 3ª esposa são as nossas posses, as nossas propriedades, as nossas riquezas. Quando morremos, tudo isso vai para os outros.

Nossa 2ª esposa são nossa família e nossos amigos. Apesar de nos amarem muito e estarem sempre nos apoiando, o máximo que eles podem fazer é nos enterrar...

E nossa 1ª esposa é a nossa ALMA, muitas vezes deixada de lado por perseguirmos, durante a vida toda, a Riqueza, o Poder e os Prazeres do nosso Ego... Apesar de tudo, nossa Alma é a única coisa que sempre irá conosco, não importa aonde formos...

Então... Cultive... Fortaleça... Bendiga... Enobreça... sua Alma agora!!! É o maior presente que você pode dar ao mundo... e a si mesmo. Deixe-a brilhar!!!

Fonte:
Vários autores. Lendas para reflexão.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Hans Christian Andersen (No quarto das crianças)

 

O papai e a mamãe e os irmãos tinham ido ao teatro. Só ficaram em casa a Ana, que era muito pequena, e  o avô.

   Mas o avô disse:

   - Nós também havemos de ter uma comédia. E vai começar já, já.

   - Mas nós não temos teatro - disse a menina.- E não temos ninguém para representar... A minha boneca velha não pode, porque ela é muito feia; e a nova, a nova não há de amarrotar assim o vestido, que é tão fino...

   - Ora, atores a gente arranja: é só contentar-se com o que tem. Vamos construir o teatro. Aqui vai este livro de pé, lá outro, e mais outro...uma fila oblíqua. Agora  outros  três do outro lado, assim. Pronto: já temos os bastidores. Aquela caixa velha pode servir de fundo: é só virar o fundo para cima. O cenário representa uma sala, isso logo se vê. Precisamos agora arranjar os personagens. Vejamos o que há nesta caixa de brinquedos... Primeiro, os personagens, depois faremos a comédia: uma coisa depois outra, e tudo sairá bem. Aqui está um fornilho de cachimbo, e ali uma luva sem par: serão pai e filha.

  - Pois sim, vovô!  Mas são só dois...Oh! Aqui está o colete velho do meu irmão... Ele poderá também desempenhar um  papel?

   - Tem tamanho suficiente para isso... Pode fazer o galã. Não tem nada nos bolsos, e isso não deixa de ser interessante: é a metade de um namorado infeliz... E aqui temos um quebra-nozes em forma de bota, e com espora. Arre! Como a bota se pavoneia, e pisoteia tudo... Pois ela vai ser o pretendente antipático, que a mocinha aborrece... E agora que gênero de peça preferes?  Uma tragédia, ou um drama de família?

   - Um drama de família, sim, vovô? Todos gostam tanto disso... O senhor conhece algum?
   - Sim, centenas! Os que o público preferem são traduzidos do francês, mas esses não convém para uma menininha como tu... Mas a gente pode escolher um mais conveniente. No fundo, todos são iguais. Pois bem! Vamos lá! Entrem por aqui, senhoras e senhores... O drama de família mais novo! Quinhentas representações, com a casa lotada! Vejamos agora qual é o elenco.

   E o avô pegou o jornal, fingindo que lia:
       
 " O FORNINHO E O BOM RAPAZ"
        - Drama familiar em uma ato - 
          Personagens:
Senhor Fornilho - pai.
Senhorita Luva - filha.
Senhor Colete - galã.
Senhor de Bota - pretendente.

     – Vamos começar. Levanta-se o pano - como não temos pano, já está levantado. Todos os personagens estão presentes, não nos falta nada. Agora vou falar, como se eu fosse o Senhor Fornilho. Ele está muito zangado hoje... Bem se vê que foi feito de espuma-do-mar, e amarelada!

   Fala então, como se fosse o Fornilho:

  - Que tolice! Tudo isso é asneira, ora essa! Quem manda nesta casa sou eu! Sou o pai da minha filha! Ouçam, pois, o que estou dizendo: o Senhor da Bota é uma pessoa em que a gente pode mirar-se como em um espelho. Por cima é de marroquim,  e embaixo tem espora. Ora essa! É ele quem há de casar com  a minha filha!
 
  - Agora, Aninha, presta atenção ao que diz o Colete; agora é o Colete quem fala. Ele tem a gola virada e é muito modesto, mas sabe o que vale, e tem toda a razão quando diz:

  - Sou imaculado! E devem tomar também em consideração a fazenda! Fui feito de legítima seda, e tenho galões.
 
  A isso acudiu logo o Senhor Fornilho:
   
- Mas é só no dia do casamento! Depois, acabou-se! A sua cor não se mostrou muito firme na lavagem. Agora o Senhor de Bota é a prova d'água, é feito de couro forte, e muito macio. Sabe ranger, sabe fazer a espora tinir! E tem feições italianas.
 
 - Mas eles deviam falar em verso! - exclamou a Aninha. - Dizem que é a coisa mais linda que há...

  - Pois sim, podem falar em verso, podem. Se o público assim o determina, fala-se em verso... Olha para a Senhorita Luva, vê como estende as mãos... e diz:
  
   " Hei de me empenhar, hei de me empenhar,
          Hei de ter um par!
    Mas não o consigo... não posso alcançar...
    Já sinto meu couro, de dor, estalar!"

O Senhor Fornilho:
  - Asneiras...

– Agora é o Colete quem fala:
"Luva, minha bem-amada!
 Oponha-se a quem quiser;
 Eu aqui declaro a todos:
 Hás de ser minha mulher!"

Aqui o Senhor de Bota começa a dar pontapés, e derruba três bastidores, enquanto Aninha grita:

   - Mas que maravilha!

   - Silêncio! Silêncio! - brada o avô. - O aplauso silencioso mostra que o público que está na plateia - porque tu estás na plateia - é um público culto. Agora a Senhorita Luva vai fazer uma mesura, e depois cantará a sua grande ária, acompanhada de castanholas:
    " E quem não tem boa voz,
      E não canta de verdade,
      Cantará ' coricocó!'
     Na frente da sociedade.”  

 - E agora é que chega o momento mais empolgante, Aninha!  O que há de mais  importante, em uma comédia . Olha, o Senhor Colete entreabriu-se; vai falar. E é a ti que ele se dirige, para que batas palmas no fim. Mas... não, não batas palmas; é mais distinto. Repara... ouve o ruge-ruge da seda... Ele começa:
   - Estou extraordinariamente exasperado! Cuidado! Começa agora a intriga! O senhor é o Fornilho, bem sei: mas eu sou o bom rapaz... Zás-trás! Pronto! Sumiu-se o Fornilho!

- Vês, Aninha, como o cenário e a mímica são perfeitos? O Senhor Colete pega no velho Fornilho e mete-o no bolso... O Fornilho lá fica escondido, e o Colete diz:
   - Agora está o senhor dentro do meu bolso, e não poderá sair daí enquanto não me prometer em casamento a sua filha, a Senhorita Luva da Esquerda, a quem darei a minha Direita!

    - Mas é extraordinário! - gritava Aninha.

   - Ouve agora o que responde o velho Fornilho:
 " Eu ouço perfeitamente,
  Mas...parece que estou tonto...
  Que é do meu antigo espirito,
  Que dantes era tão pronto?
  Meu tubo onde foi parar?
  Se saio desta armadilha,
  Prometo; Com minha filha,
  Irás depressa casar!"

- Acabou-se a comédia? - perguntou Aninha.

 - Qual! Acabou somente para o Senhor de Bota. Agora os namorados ajoelham, e ela canta:
   " Ó meu pai!"

E o namorado canta também:
   " ...sai escondido!
   Vem teus filhos abençoar!"

  Ambos recebem a benção, celebra-se o casamento. Os móveis cantam em coro;
     "Tilintintim! Tilintintim!
   Já se acabou a comédia!
    Tilinrintim!"

- Agora sim, vamos bater palmas; vamos  chamar todos os atores, e os móveis também, porque são de acaju!
  
- Vovô, a nossa comédia não foi tão boa como a que eles foram ver lá no teatro de verdade?

  - A nossa é muito melhor! É mais curta, não custa nada, e serviu para nos entreter até a hora do chá.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 
Hans Christian Andersen foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.
Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente em 1859. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

sábado, 13 de dezembro de 2025

Asas da Poesia * 143 *


Poema de 
ANTONIO JURACI SIQUEIRA
Belém/PA

Kararaô !

Em cada curva de rio,
em cada palmo de chão
da Amazônia existe um olho
observando o Dragão
com seu hálito de fogo,
seu discurso demagogo,
seu poder de sedução...

E em cada rosto caboclo
existe um índio escondido,
enclausurado em si mesmo,
discriminado, oprimido,
escravo em sua própria terra
trazendo o grito de guerra
no coração reprimido.

Eu sou a voz desse índio :
a flecha, a lança, a borduna...
Sou peixe na piracema,
limo de várzea, boiúna,
tronco no rio submerso
e, se me desfaço em verso,
sou arma, pão e tribuna!

Meu cantar é berço e tumba,
é pedra, rosa e punhal;
é chuva regando a terra,
é fogo no matagal :
alerta, instiga, provoca
com fúria de pororoca,
força de vento geral!

Mas não desperte essa fera
no meu peito adormecida,
concebida e alimentada
na dor da própria ferida.
Seu corpo de argila e trigo
serve e alimento e abrigo
aos que lutam pela vida.

Canto as glórias do meu povo
e as dores desta nação.
Meu canto é grito de guerra,
punhal contra a servidão :
- Kararaô ! Canto alado,
pendão de amor desfraldado
em defesa do meu chão!
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 

Poema de
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN
Lisboa/Portugal (1919 – 2004) Porto/Portugal

O Anjo

O Anjo que em meu redor passa e me espia
E cruel me combate, nesse dia
Veio sentar-se ao lado do meu leito
E embalou-me, cantando, no seu peito.

Ele que indiferente olha e me escuta
Sofrer, ou que, feroz comigo luta,
Ele que me entregara à solidão,
Pousava a sua mão na minha mão.

E foi como se tudo se extinguisse,
Como se o mundo inteiro se calasse,
e o meu ser liberto enfim florisse,
e um perfeito silêncio me embalasse.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de
FAUSTINO DA FONSECA JÚNIOR
Angra do Heroísmo/Portugal, 1871 – 1918, Lisboa/Portugal

Lira da mocidade

Os versos na mocidade
Todos fazem, e a razão
É serem necessidade
Aos risos do coração.

O futuro cor de rosa,
O mundo cheio de encantos;
A nossa alma jubilosa
Não chorou amargos prantos.

Desde o ar que se respira,
Ao céu da cor de safira,
Tudo ri e diz – Amar!

E contemplando a beleza,
O sorrir da natureza,
Sabemos todos cantar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
CRIS ANVAGO
Lisboa/Portugal

Acredito

Acredito no compasso
Das palavras que dançam
No papel colorido
Pauta perfumada de tons quentes
Acredito no livro ainda não escrito
Onde o coração transborda
Nas palavras que balançam
No olhar ternurento de quem as lê
Na sensibilidade de quem as sente
Acredito na melodia que ainda não foi tocada
Mas que está em construção
Nas mãos de um violinista
Acredito no quadro ainda não pintado
Mas já imaginado no pincel
Que replica as emoções do pintor
Acredito no amor que renasce todos os dias
Com toques de arte ainda não descoberta
Sonhada na ponta dos dedos
Acredito no AMOR
Num mundo mais colorido
Imaginado e vivido…
Acredito!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Popular

Fui no livro do destino
minha sorte procurar,
corri folhas encontrei:
eu nasci para te amar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de
DIOGO BERNARDES
Ponte da Barca/Portugal, 1530 – 1605, Lisboa/Portugal

[3]

Da branca neve, e da vermelha rosa
O Céu de tal maneira derramou
No vosso rosto as cores, que deixou
A rosa da manhã mais vergonhosa.

Os cabelos (d’amor prisão formosa)
Não d’ouro, que ouro fino desprezou,
Mas dos raios do Sol vo-los dourou,
Do que Cíntia também anda invejosa.

Um resplendor ardente, mas suave,
Está nos vossos olhos derramando
Que o claro deixa escuro, o escuro aclara;

A doce fala, o riso doce, e grave
Entre rubis, e perlas lampejando
Não tem comparação por coisa rara.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
CÉLIA EVARISTO
Lisboa/Portugal

Dança dos dias
Os dias passeiam
nos biquinhos dos pés,
dançando graciosamente
no palco da vida.

Dançam, rodopiam…

De lés a lés,
vigorosamente,
ouvem-se aplausos
de uma loucura desmedida.

Sorrisos que brilham,
alma deliciada.
Felicidade que se mostra
numa bela gargalhada.

Dançam, rodopiam…

Por vezes, a desilusão.
Lágrimas desmedidas
que emergem da solidão.

É o tempo quem reina,
sem hesitação,
seguindo o compasso
desta canção.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Música de
CATULO DA PAIXÃO CEARENSE
São Luís/MA, 1863 – 1946, Rio de Janeiro/RJ

Os boêmios

Deus! Que viver, que prazer
Nesta vida que teço o senhor
Eu gozo só, sem tocar no
Duende travesso do amor!

Oh lé lé! Sou feliz! Uma pinga
De ideias, me faz entrever
O gozar nesta vida borida
É traze-la florida
Em alegre folgar

Mas, oh, que importa o sofrer
Se eu só conheço o prazer?
Eu sei desviar-me da dor
E leve o diabo ao amor!

Meu coração, não aceita
Os espinhos daninhos do amor
Se a mulher, veja ali
Vou passando
Brincando, folgando
A cantar, sou assim!

E que fuja a mulher
O demônio de mim!
Deus me deu esta vida
Por prêmio, serei o boêmio
Que ele quiser

Leve o diabo até inferno
Da vida, a este terreno
Ridente sofrer!
Num copo eu venço o amargor
Do viver!
Tem doçura ao beber! Oh!

Leve o diabo a este inferno
Da vida, este terreno
Cansado sofrer
Eu só encontro alegria no céu
Da folia, cantando a beber!

Oh, como é bom, como é boa
Esta vida que passo sem lar!
Não quero amar, só namoro
A natura que levo a cantar
Uma flor, o luar
Das estrelas, namoro

O divino fulgor
Que ao boêmio dão
Almas meiguices, sem essas
Pieguices do bobo do amor
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 

Soneto de
FREI AGOSTINHO DA CRUZ
Ponte da Barca/Portugal, 1540 – 1619, Setúbal/Portugal

Da contemplação a mesma

Dos solitários bosques a verdura,
Nas duras penedias sustentada,
Nesta serra, do mar largo cercada,
Me move a contemplar mais formosura.

Que tem quem tem na terra mor ventura,
Nos mais altos estados arriscada,
Se não tem a vontade registrada
Nas mãos do Criador da criatura?

A folha que no bosque verde estava,
Em breve espaço cai, perdida a flor,
Que tantas esperanças sustentava.

Por isso considere o pecador,
Se quando na pintura se enlevava
Não se enlevava mais no seu pintor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

Envolve com a tua claridade
A concavidade do meu âmago
Com feixes dourados de serenidade
Afasta a inclemência desta cegueira 
Chama-me à transparência da razão
Acentua-me o brilho do olhar
Com a luz líquida da emoção
Incendia o peito desnudado
O restolho que antes foi trigo
Onde morremos pra nascer de novo
Sê o entardecer que amanhece em mim
A canícula que alimenta novas paixões
A luz quente que dá forma às sensações  
Abraça-me na fugacidade do momento
Sê o sol do meu feliz contentamento.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de
JOAQUIM DE MELO FREITAS
Aveiro/ Portugal, 1852 – 1923

Misterioso abismo

Tépido sonho de luz
corpo, que destila aroma
sublime e claro axioma
espargindo amor a flux!

Uma vertigem produz
teu olhar, o seio, a coma,
voluptuoso sintoma
que a fantasia traduz.

Débil flor, que o sol admira
beijando com azedume
as estrelas de safira...

mas ninguém sequer presume
que o meu coração expira
na mortalha do ciúme.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de
EUGÉNIO DE CASTRO
Coimbra/ Portugal, 1869 – 1944

A coroa de rosas

A fim, oculto amor, de coroar-te,
de adornar tuas tranças luminosas,
uma coroa teci de brancas rosas,
e fui pelo mundo afora, a procurar-te.

Sem nunca te encontrar, crendo avistar-te
nas moças que encontrava, donairosas,
fui-as beijando e fui-lhes dando as rosas
da coroa feita com amor e arte.

Trago, de caminhar, os membros lassos,
acutilam-me os ventos e as geadas,
já não sei o que são noites serenas...

Sinto que vais chegar, ouço-te os passos,
mas ai! nas minhas mãos ensanguentadas
uma coroa de espinhos trago apenas!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

De tudo o que partiu sem ter partido
(Maria Celeste Salgueiro Seabra in "Ânsia de infinito", p. 22)

“De tudo o que partiu sem ter partido”
Eu guardo nas gavetas da memória
Misturado nas lamas dessa escória
Um brilhante, de todos, o mais querido.

Tudo o que eu fiz morreu, sem alarido
Da vaidade a herança é ilusória
Farta, a riqueza é sempre transitória
E o futuro, de sonhos, é tecido.

Mas uma coisa eu guardo com desvelo:
Um louro caracol do meu cabelo
Que a minha mãe cortou em pequenino.

E mesmo sem ter caixa eu guardo ainda
De todas essas coisas a mais linda:
Os ecos dos meus risos de menino.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Hino de Caraguatatuba/SP

Caraguatatuba bonita
Esplendor de beleza rara!
Caraguatatuba onde habita
O cortês e gentil caiçara

Nas fímbrias da serra que aos céus se levanta
À margem formosa de imensa baía
Se estende uma terra que aos olhos encanta
A terra onde as praias têm mais alegria
Se sois dentre as joias a mais reluzente
Se dentre as cidades vós tendes mais vida
Então não sois obra divina somente
Sois obra de Deus pelos homens polida

Caraguatatuba bonita
Esplendor de beleza rara!
Caraguatatuba onde habita
O cortês e gentil caiçara

Oh! Terra, vós tendes um mar cristalino
Que tanto vos beija em carícias de irmão
Que traz ondulante um murmúrio divino
O suave murmúrio de Deus na amplidão
Vós tendes na frente uma ilha gigante
Que às nuvens se lança a perder-se de vista
A exemplo da ilha erguei-vos vibrante
E glória sereis brasileira e paulista
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de
AUGUSTO GIL
Porto/Portugal, 1873 – 1929, Lisboa/Portugal

De profundis clamavi ad te domine*

Ao charco mais escuso e mais imundo
chega uma hora no correr do dia
em que um raio de sol, claro e jucundo,
o visita, o alegra, o alumia;

pois eu, nesta desgraça em que me afundo,
nesta contínua e intérmina agonia,
nem tenho uma hora só dessa alegria
que chega às coisas ínfimas do mundo!...

Deus meu, acaso a roda do destino
a movimentam vossas mãos leais
num aceno impulsivo e repentino,

sem que na cega turbulência a domem?!
Senhor! não é um seixo que esmagais;
olhai que é – o coração de um homem!... 
= = = = = = = = = = = = = = = =
*De profundis clamavi ad te domine : Eu te clamei das profundezas, Senhor
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O mergulhão, a silva e o morcego

O mergulhão, a silva e o morcego
Fizeram sociedade: entram no emprego
De embarcarem, levando por contrato
Metais o mergulhão, a silva fato;
O morcego, sem fundo, foi forçado,
Para a carga, a valer-se do emprestado.

Tal tormenta lhes deu, que lá ficaram
Os bens, e eles com custo se salvaram:
O mergulhão da praia agora gosta,
A ver se os seus metais deram à costa:
A silva, quando o fato nela embarra,
Cuidando que é o seu, a ele se agarra:
O morcego de dia não se atreve
A sair, temendo esses a quem deve.

Fatal vício o da sórdida avareza,
Porque além de meter os seus amigos
Em imensos trabalhos e perigos,
Por tenaz se converte em natureza.

No que procura o seu, não é defesa;
Mas hesita tormentos e castigos
Naqueles que perdendo os bens antigos,
Qual silva, nos alheios fazem presa.

O que intenta negócio do emprestado,
Manda a quem lhe emprestou muito presente;
Lá vai lucro, e talvez que vá dobrado.
Se houve perda, retira-se da gente,
Por andar do credor envergonhado,
Sente muito, e o que empresta ainda mais sente.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = =