sábado, 13 de dezembro de 2025

Asas da Poesia * 143 *


Poema de 
ANTONIO JURACI SIQUEIRA
Belém/PA

Kararaô !

Em cada curva de rio,
em cada palmo de chão
da Amazônia existe um olho
observando o Dragão
com seu hálito de fogo,
seu discurso demagogo,
seu poder de sedução...

E em cada rosto caboclo
existe um índio escondido,
enclausurado em si mesmo,
discriminado, oprimido,
escravo em sua própria terra
trazendo o grito de guerra
no coração reprimido.

Eu sou a voz desse índio :
a flecha, a lança, a borduna...
Sou peixe na piracema,
limo de várzea, boiúna,
tronco no rio submerso
e, se me desfaço em verso,
sou arma, pão e tribuna!

Meu cantar é berço e tumba,
é pedra, rosa e punhal;
é chuva regando a terra,
é fogo no matagal :
alerta, instiga, provoca
com fúria de pororoca,
força de vento geral!

Mas não desperte essa fera
no meu peito adormecida,
concebida e alimentada
na dor da própria ferida.
Seu corpo de argila e trigo
serve e alimento e abrigo
aos que lutam pela vida.

Canto as glórias do meu povo
e as dores desta nação.
Meu canto é grito de guerra,
punhal contra a servidão :
- Kararaô ! Canto alado,
pendão de amor desfraldado
em defesa do meu chão!
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Poema de
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN
Lisboa/Portugal (1919 – 2004) Porto/Portugal

O Anjo

O Anjo que em meu redor passa e me espia
E cruel me combate, nesse dia
Veio sentar-se ao lado do meu leito
E embalou-me, cantando, no seu peito.

Ele que indiferente olha e me escuta
Sofrer, ou que, feroz comigo luta,
Ele que me entregara à solidão,
Pousava a sua mão na minha mão.

E foi como se tudo se extinguisse,
Como se o mundo inteiro se calasse,
e o meu ser liberto enfim florisse,
e um perfeito silêncio me embalasse.
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Soneto de
FAUSTINO DA FONSECA JÚNIOR
Angra do Heroísmo/Portugal, 1871 – 1918, Lisboa/Portugal

Lira da mocidade

Os versos na mocidade
Todos fazem, e a razão
É serem necessidade
Aos risos do coração.

O futuro cor de rosa,
O mundo cheio de encantos;
A nossa alma jubilosa
Não chorou amargos prantos.

Desde o ar que se respira,
Ao céu da cor de safira,
Tudo ri e diz – Amar!

E contemplando a beleza,
O sorrir da natureza,
Sabemos todos cantar.
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Poema de
CRIS ANVAGO
Lisboa/Portugal

Acredito

Acredito no compasso
Das palavras que dançam
No papel colorido
Pauta perfumada de tons quentes
Acredito no livro ainda não escrito
Onde o coração transborda
Nas palavras que balançam
No olhar ternurento de quem as lê
Na sensibilidade de quem as sente
Acredito na melodia que ainda não foi tocada
Mas que está em construção
Nas mãos de um violinista
Acredito no quadro ainda não pintado
Mas já imaginado no pincel
Que replica as emoções do pintor
Acredito no amor que renasce todos os dias
Com toques de arte ainda não descoberta
Sonhada na ponta dos dedos
Acredito no AMOR
Num mundo mais colorido
Imaginado e vivido…
Acredito!
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Trova Popular

Fui no livro do destino
minha sorte procurar,
corri folhas encontrei:
eu nasci para te amar.
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Soneto de
DIOGO BERNARDES
Ponte da Barca/Portugal, 1530 – 1605, Lisboa/Portugal

[3]

Da branca neve, e da vermelha rosa
O Céu de tal maneira derramou
No vosso rosto as cores, que deixou
A rosa da manhã mais vergonhosa.

Os cabelos (d’amor prisão formosa)
Não d’ouro, que ouro fino desprezou,
Mas dos raios do Sol vo-los dourou,
Do que Cíntia também anda invejosa.

Um resplendor ardente, mas suave,
Está nos vossos olhos derramando
Que o claro deixa escuro, o escuro aclara;

A doce fala, o riso doce, e grave
Entre rubis, e perlas lampejando
Não tem comparação por coisa rara.
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Poema de
CÉLIA EVARISTO
Lisboa/Portugal

Dança dos dias
Os dias passeiam
nos biquinhos dos pés,
dançando graciosamente
no palco da vida.

Dançam, rodopiam…

De lés a lés,
vigorosamente,
ouvem-se aplausos
de uma loucura desmedida.

Sorrisos que brilham,
alma deliciada.
Felicidade que se mostra
numa bela gargalhada.

Dançam, rodopiam…

Por vezes, a desilusão.
Lágrimas desmedidas
que emergem da solidão.

É o tempo quem reina,
sem hesitação,
seguindo o compasso
desta canção.
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Música de
CATULO DA PAIXÃO CEARENSE
São Luís/MA, 1863 – 1946, Rio de Janeiro/RJ

Os boêmios

Deus! Que viver, que prazer
Nesta vida que teço o senhor
Eu gozo só, sem tocar no
Duende travesso do amor!

Oh lé lé! Sou feliz! Uma pinga
De ideias, me faz entrever
O gozar nesta vida borida
É traze-la florida
Em alegre folgar

Mas, oh, que importa o sofrer
Se eu só conheço o prazer?
Eu sei desviar-me da dor
E leve o diabo ao amor!

Meu coração, não aceita
Os espinhos daninhos do amor
Se a mulher, veja ali
Vou passando
Brincando, folgando
A cantar, sou assim!

E que fuja a mulher
O demônio de mim!
Deus me deu esta vida
Por prêmio, serei o boêmio
Que ele quiser

Leve o diabo até inferno
Da vida, a este terreno
Ridente sofrer!
Num copo eu venço o amargor
Do viver!
Tem doçura ao beber! Oh!

Leve o diabo a este inferno
Da vida, este terreno
Cansado sofrer
Eu só encontro alegria no céu
Da folia, cantando a beber!

Oh, como é bom, como é boa
Esta vida que passo sem lar!
Não quero amar, só namoro
A natura que levo a cantar
Uma flor, o luar
Das estrelas, namoro

O divino fulgor
Que ao boêmio dão
Almas meiguices, sem essas
Pieguices do bobo do amor
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Soneto de
FREI AGOSTINHO DA CRUZ
Ponte da Barca/Portugal, 1540 – 1619, Setúbal/Portugal

Da contemplação a mesma

Dos solitários bosques a verdura,
Nas duras penedias sustentada,
Nesta serra, do mar largo cercada,
Me move a contemplar mais formosura.

Que tem quem tem na terra mor ventura,
Nos mais altos estados arriscada,
Se não tem a vontade registrada
Nas mãos do Criador da criatura?

A folha que no bosque verde estava,
Em breve espaço cai, perdida a flor,
Que tantas esperanças sustentava.

Por isso considere o pecador,
Se quando na pintura se enlevava
Não se enlevava mais no seu pintor.
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Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

Envolve com a tua claridade
A concavidade do meu âmago
Com feixes dourados de serenidade
Afasta a inclemência desta cegueira 
Chama-me à transparência da razão
Acentua-me o brilho do olhar
Com a luz líquida da emoção
Incendia o peito desnudado
O restolho que antes foi trigo
Onde morremos pra nascer de novo
Sê o entardecer que amanhece em mim
A canícula que alimenta novas paixões
A luz quente que dá forma às sensações  
Abraça-me na fugacidade do momento
Sê o sol do meu feliz contentamento.
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Soneto de
JOAQUIM DE MELO FREITAS
Aveiro/ Portugal, 1852 – 1923

Misterioso abismo

Tépido sonho de luz
corpo, que destila aroma
sublime e claro axioma
espargindo amor a flux!

Uma vertigem produz
teu olhar, o seio, a coma,
voluptuoso sintoma
que a fantasia traduz.

Débil flor, que o sol admira
beijando com azedume
as estrelas de safira...

mas ninguém sequer presume
que o meu coração expira
na mortalha do ciúme.
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Soneto de
EUGÉNIO DE CASTRO
Coimbra/ Portugal, 1869 – 1944

A coroa de rosas

A fim, oculto amor, de coroar-te,
de adornar tuas tranças luminosas,
uma coroa teci de brancas rosas,
e fui pelo mundo afora, a procurar-te.

Sem nunca te encontrar, crendo avistar-te
nas moças que encontrava, donairosas,
fui-as beijando e fui-lhes dando as rosas
da coroa feita com amor e arte.

Trago, de caminhar, os membros lassos,
acutilam-me os ventos e as geadas,
já não sei o que são noites serenas...

Sinto que vais chegar, ouço-te os passos,
mas ai! nas minhas mãos ensanguentadas
uma coroa de espinhos trago apenas!
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Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

De tudo o que partiu sem ter partido
(Maria Celeste Salgueiro Seabra in "Ânsia de infinito", p. 22)

“De tudo o que partiu sem ter partido”
Eu guardo nas gavetas da memória
Misturado nas lamas dessa escória
Um brilhante, de todos, o mais querido.

Tudo o que eu fiz morreu, sem alarido
Da vaidade a herança é ilusória
Farta, a riqueza é sempre transitória
E o futuro, de sonhos, é tecido.

Mas uma coisa eu guardo com desvelo:
Um louro caracol do meu cabelo
Que a minha mãe cortou em pequenino.

E mesmo sem ter caixa eu guardo ainda
De todas essas coisas a mais linda:
Os ecos dos meus risos de menino.
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Hino de Caraguatatuba/SP

Caraguatatuba bonita
Esplendor de beleza rara!
Caraguatatuba onde habita
O cortês e gentil caiçara

Nas fímbrias da serra que aos céus se levanta
À margem formosa de imensa baía
Se estende uma terra que aos olhos encanta
A terra onde as praias têm mais alegria
Se sois dentre as joias a mais reluzente
Se dentre as cidades vós tendes mais vida
Então não sois obra divina somente
Sois obra de Deus pelos homens polida

Caraguatatuba bonita
Esplendor de beleza rara!
Caraguatatuba onde habita
O cortês e gentil caiçara

Oh! Terra, vós tendes um mar cristalino
Que tanto vos beija em carícias de irmão
Que traz ondulante um murmúrio divino
O suave murmúrio de Deus na amplidão
Vós tendes na frente uma ilha gigante
Que às nuvens se lança a perder-se de vista
A exemplo da ilha erguei-vos vibrante
E glória sereis brasileira e paulista
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Soneto de
AUGUSTO GIL
Porto/Portugal, 1873 – 1929, Lisboa/Portugal

De profundis clamavi ad te domine*

Ao charco mais escuso e mais imundo
chega uma hora no correr do dia
em que um raio de sol, claro e jucundo,
o visita, o alegra, o alumia;

pois eu, nesta desgraça em que me afundo,
nesta contínua e intérmina agonia,
nem tenho uma hora só dessa alegria
que chega às coisas ínfimas do mundo!...

Deus meu, acaso a roda do destino
a movimentam vossas mãos leais
num aceno impulsivo e repentino,

sem que na cega turbulência a domem?!
Senhor! não é um seixo que esmagais;
olhai que é – o coração de um homem!... 
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*De profundis clamavi ad te domine : Eu te clamei das profundezas, Senhor
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Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O mergulhão, a silva e o morcego

O mergulhão, a silva e o morcego
Fizeram sociedade: entram no emprego
De embarcarem, levando por contrato
Metais o mergulhão, a silva fato;
O morcego, sem fundo, foi forçado,
Para a carga, a valer-se do emprestado.

Tal tormenta lhes deu, que lá ficaram
Os bens, e eles com custo se salvaram:
O mergulhão da praia agora gosta,
A ver se os seus metais deram à costa:
A silva, quando o fato nela embarra,
Cuidando que é o seu, a ele se agarra:
O morcego de dia não se atreve
A sair, temendo esses a quem deve.

Fatal vício o da sórdida avareza,
Porque além de meter os seus amigos
Em imensos trabalhos e perigos,
Por tenaz se converte em natureza.

No que procura o seu, não é defesa;
Mas hesita tormentos e castigos
Naqueles que perdendo os bens antigos,
Qual silva, nos alheios fazem presa.

O que intenta negócio do emprestado,
Manda a quem lhe emprestou muito presente;
Lá vai lucro, e talvez que vá dobrado.
Se houve perda, retira-se da gente,
Por andar do credor envergonhado,
Sente muito, e o que empresta ainda mais sente.
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sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Contos e Lendas do Mundo (Índia) O Pote Rachado


Um carregador de água levava dois potes grandes, pendurados em cada ponta de uma vara, sobre os ombros. Um dos potes tinha uma rachadura, enquanto o outro era perfeito e sempre chegava cheio de água no fim da longa jornada entre o poço e a casa do Mestre; o pote rachado chegava sempre pela metade.

Assim foi durante dois anos. Diariamente, o carregador entregava um pote e meio de água na casa de seu Mestre. 

O pote perfeito estava orgulhoso de suas realizações. Porém, o pote rachado estava envergonhado de sua imperfeição, e sentia-se miserável por ser capaz de realizar apenas a metade do trabalho que deveria fazer. 

Um dia decidiu e falou para o homem, à beira do poço:

"Estou envergonhado, e quero pedir-te desculpas."

"Por quê?" – perguntou o homem. - "De que estás envergonhado?"

"Nesses dois anos eu fui capaz de entregar apenas a metade da minha carga, porque essa rachadura no meu lado faz com que a água vaze por todo o caminho até a casa de teu senhor. Por causa do meu defeito, tens que fazer todo esse trabalho, e não ganhas o salário completo dos teus esforços."

O homem ficou triste pelo sentimento do velho pote, e disse-lhe amorosamente:

"Quando retornarmos para a casa de meu senhor, quero que admires as flores ao longo do caminho."

De fato, à medida que eles subiam a montanha, o velho pote rachado notou flores selvagens ao longo de todo o caminho, e isto alegrou-o. Mas, ao fim da estrada, o pote ainda se sentia mal porque tinha vazado a metade, e de novo pediu desculpas ao homem por sua falha.

Disse o homem ao pote:

"Notaste que pelo caminho só havia flores no teu lado? Eu, ao conhecer teu defeito, transformei-o em vantagem. Lancei sementes de flores no teu lado do caminho, e cada dia, enquanto voltamos do poço, tu as regas. Por dois anos eu pude colher flores para ornamentar a mesa de meu senhor. Se não fosses do jeito que és, meu Mestre não teria essa beleza em sua casa."

Cada um de nós temos nossos próprios e únicos defeitos. Todos nós somos potes rachados. Se permitirmos, o Senhor vai usar estes nossos defeitos para embelezar a mesa de Seu Pai.

Na grandiosa economia de Deus, nada se perde.

Nunca deveríamos ter medo dos nossos defeitos; se o reconhecermos, eles poderão proporcionar beleza. Das nossas fraquezas, podemos tirar forças.

Fontes:
Vários autores. Lendas para reflexão.
Imagem criada por JFeldman com Microsoft Bing

Laé de Souza (Bebedeira do Orlei)


Orlei era daqueles sujeitos sérios por quem se podia pôr a mão no fogo que nunca trairia a mulher. Poucos e raros pertencentes de uma raça em extinção, na qual me incluo. Traí uma vezinha só, num desvio que, após juras de arrependimento, fui perdoado e o episódio esquecido pra nunca mais. Não que eu seja santo, mas é que não consigo segurar uma mentira. Se me for questionado, não adianta, gaguejo, tremo e me entrego. Foi assim, daquela maldita vez, primeira e última. Por sorte, minha companheira percebeu que realmente eu era marinheiro de primeira viagem e que não tinha habilidade para fugas e aventuras às escondidas, concedendo-me seu perdão. Aliás, o perdão, quando dado, deve ser absoluto, nunca cobrado e vigiado. O meu, por exemplo, me foi dado de forma que parece que nunca existiu pecado. É como se começasse tudo de novo. 

Se por acaso a senhora perceber que o companheiro deu uma “pisada na bola”, e, se chegou ao ponto de arrependimento, e consenso de que é caso de perdão, passe realmente o apagador de vez por cima e vida nova, sem olhares suspeitos. Bem, mas voltemos ao nosso Orlei, que também era desse nosso clube de gente direita.

Numa noite, num bar, apresentado por um amigo, conheceu a Gracelinda e entre conversas e afagos, aconteceu. Sim, aconteceu mesmo. Mas, acredito que mais pela inteligência da cachaça do que pela sua própria vontade. Ou até, talvez, afloramento de uma vontade subconsciente e fora do seu domínio. De qualquer forma, a noitada foi sem igual e mesmo com aquele esquecimento natural do ocorrido, durante a bebedeira, nunca saíram de sua mente aqueles momentos extravagantes e descompromissados.

No dia seguinte, mesmo ressabiado, com a cabeça pesada e a consciência a gritar (meu pesadelo foi de longos anos), não dá motivos para encrencas e cumpre o prometido passeio ao zoológico com a família.

Numa curva, sente um pé de sapato solto que roça os seus pés, num indo e vindo. Relembra Gracelinda risonha, bêbada e arteira, fazendo estrepolias sobre o banco e ele rindo com suas artes. Ruborizado e de soslaio, percebe um batom no console e tem medo de vasculhar mais cantos, embora seus olhos se desviem para a marca dos lábios da Gracelinda, incentivada por ele a deixar no canto do para-brisa. Discretamente, e valendo-se da agilidade aprendida no curso de mágica, quando mocinho, apanha o sapato e o batom jogando-os pela janela. O outro pé, vasculhado por baixo do banco, sorrateiramente, também foi lançado, acompanhado do apagar do beijo no para-brisa numa passada de mão. Sentiu um leve arrepio e deu um Graças a Deus por ter-se livrado de tudo.

Ao chegarem ao parque, a sogra, com os pés inchados, procura os seus sapatos que jura ter tirado no carro. Procuram, e o próprio Orlei vasculha o carro, várias vezes, e a sogra quase o esgana, ao ouvi-lo cochichar no ouvido da mulher que a sua mãe estava caducando. A sogra afirma que deixou os sapatos aos seus pés, enquanto a mulher aponta o lugar em que deixou o seu batom. Orlei acenou à possibilidade de coisas estranhas e a mulher responde que só pode ter sido espírito que encostou por causa da tal bebedeira de ontem. – É culpa tua, Orlei - Orlei engoliu em seco, desviou o olhar e rumaram para o remédio.

No terreiro do Pai Mané, depois do carro lavado com sal grosso para espantar as coisas ruins, ficou esclarecido que foi arte de um espírito zombeteiro que encontrou fraqueza na bebedeira, nunca ocorrida, do Orlei. E o Orlei balançava a cabeça “É, foi consequência da bebedeira de ontem.”
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LAÉ DE SOUZA é cronista, poeta, articulista, dramaturgo, palestrante, produtor cultural e autor de vários projetos de incentivo à leitura. Bacharel em Direito e Administração de Empresas, Laé de Souza, 55 anos, unifica sua vivência em direito, literatura e teatro (como ator, diretor e dramaturgo) para desenvolver seus textos utilizando uma narrativa envolvente, bem-humorada e crítica. Nos campos da poesia e crônica iniciou sua carreira em 1971, tendo escrito para "O Labor"(Jequié, BA), "A Cidade" (Olímpia, SP), "O Tatuapé" (São Paulo, SP), "Nossa Terra" (Itapetininga, SP); como colaborador no "Diário de Sorocaba", O "Avaré" (Avaré, SP) e o "Periscópio" (Itu, SP). Obras de sua autoria: Acontece, Acredite se Quiser!, Coisas de Homem & Coisas de Mulher, Espiando o Mundo pela Fechadura, Nos Bastidores do Cotidiano (impressão regular e em braille) e o infantil Quinho e o seu cãozinho - Um cãozinho especial. Projetos: "Encontro com o Escritor", "Ler É Bom, Experimente!", "Lendo na Escola", "Minha Escola Lê", "Viajando na Leitura", "Leitura no Parque", "Dose de Leitura", "Caravana da Leitura”, “Livro na Cesta”, "Minha Cidade Lê", "Dia do Livro" e "Leitura não tem idade". Ministrou palestras em mais de 300 escolas de todo o Brasil, cujo foco é o incentivo à leitura. "A importância da Leitura no Desenvolvimento do Ser Humano", dirigida a estudantes e "Como formar leitores", voltada para professores são alguns dos temas abordados nessas palestras. Com estilo cômico e mantendo a leveza em temas fortes, escreveu as peças "Noite de Variedades" (1972), "Casa dos Conflitos" (1974/75) e "Minha Linda Ró" (1976). Iniciou no teatro aos 17 anos, participou de festivais de teatro amador e filiou-se à Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Criou o jornal "O Casca" e grupos de teatro no Colégio Tuiuti e na Universidade Camilo Castelo Branco. 

Fonte:
Laé de Souza. Espiando o mundo pela fechadura. 26a. edição. SP: Ecoarte, 2018.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Asas da Poesia * 142 *


Haicai de

A. A. DE ASSIS 
Maringá/PR

A lua enluara 
a reza, a seresta, a ceia. 
E os que ainda sonham. 
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Soneto de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Viva plenamente

Pelas trilhas tortuosas dos caminhos,
há empecilhos, bravatas e há temores...
Quanto sonho vencido entre os sozinhos,
quanta glória perdida entre os amores!

Nas angústias do mundo há mais espinhos
do que o cheiro da paz que tem nas flores...
Mas sem ódio e sem mágoa, em nossos ninhos,
nosso sonho de amor inibe as dores!

Deixo, em poucas palavras, meus apelos;
- Por que sempre guardar seus pesadelos
se a esperança cochila ao pé da porta?

Pode haver plenitude, em meio aos trapos:
A esperança não morre entre os farrapos
e viver plenamente, é o que me importa! 
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Poema de
TERESINKA PEREIRA
Colorado/ Estados Unidos

O amor

O amor sempre acredita
na lembrança eterna
embora o vento
tudo leva pelo ar...
 
O amor vira solidão
se é nobre, se é de orgulho
e se não o domina
uma verdadeira paixão.
 
O amor tem esperança,
tem sonhos, mocidades, coragem,
e mais que tudo, o amor
se alimenta de perdões.
= = = = = = = = =  

Trova Popular

Vou fazer meu reloginho
da folhinha do poejo;
para contar os minutos
e horas que não te vejo.
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Soneto de
THALMA TAVARES
São Simão/SP

Cireneus 

Gloriosa a mulher que a sós carrega 
seu madeiro de luta e sofrimentos. 
Seu calvário é de dor, mas não se entrega 
e raríssimos são seus bons momentos. 

A lhe dar seu valor ninguém se nega 
nem se nega a exaltar-lhe os sentimentos 
aquele que as virtudes não renega 
e sabe quanto pesam-lhe os tormentos. 

Mas não só na mulher esta virtude 
manifesta-se assim, estoica e rude 
- exemplo de firmeza sobranceira: 

na vida, em muitos homens reconheço, 
cireneus que carregam sem tropeço 
a sua cruz e a cruz da companheira!
= = = = = = = = =  

Poema de
FERNANDO PESSOA
Lisboa/Portugal 1888 – 1935

Não quero rosas, desde que haja rosas

Não quero rosas, desde que haja rosas.
Quero-as só quando não as possa haver.
Que hei de fazer das coisas
Que qualquer mão pode colher?

Não quero a noite senão quando a aurora
A fez em ouro e azul se diluir.
O que a minha alma ignora
É isso que quero possuir. Para quê?...

Se o soubesse, não faria
Versos para dizer que inda o não sei.
Tenho a alma pobre e fria...
Ah, com que esmola a aquecerei?...
= = = = = = = = =  

Soneto de
SÁ DE FREITAS
Avaré/SP

O sol, a lua e muita gente

"Fazes pouco de mim, sol!" - diz a lua.-
Escondes-te de mim quando apareço,
Será que nem de ti um olhar mereço,
Eu que há milênios sonho ser só tua?"

 O sol noutro hemisfério, com amargura,
Escuta a sua amada, mas opresso
Responde: "Meu amor, desapareço,
Por ser fadado à triste desventura

De nunca possuir quem tanto almejo,
Que és tu, ó lua, que nem mesmo vejo,
No início de um eclipse ou depois.

Mas te conformes, pois na Terra moram,
Pessoas que se amam e que se adoram,
E têm a mesma sina que nós dois".
= = = = = = = = =  

Poema de
FLORISBELA MARGONAR DURANTE
Maringá/PR

Caçada

Aventuro-me
e caço palavras
que se escondem rebeldes.
Num vasto cenário
eu as rabisco
e aprisiono em papel.
As emoções vestem
as palavras e desse
encontro de almas gêmeas
nasce o poema.
= = = = = = = = =  

Poema de
ROSA CLEMENT
Caieiras/SP

A Árvore

Era uma casa
muito engraçada
Vinicius de Moraes

Era uma árvore
ameaçada
onde se ouvia
a passarada

Ninguém subia
nos galhos não
porque da árvore
só tinha o chão.

Todos só viam
uma clareira
porque a árvore
virou barreira.

Meu cão que ia
fazer pipi
não encontrou
um tronco ali.

Ela deixava
tão bela a vista,
e foi embora
sem deixar pista

Mas foi plantada
com esperança
na velha estrada
pela criança.
= = = = = = = = =  

Soneto de
AFONSO DUARTE
Montemor-o-Velho/Portugal (1884 – 1958) Coimbra/Portugal

Saudades do Corgo

Murmúrio de água em Terra da Purinha,
Lembra a voz da montanha o meu amor.
Oh água em quebra voz “sou teu, és minha”!
Rescende em mim a madressilva em flor.

 — Suas palavras dão perfume ao vento,
— Seus Olhos pedem o maior sigilo...
Sóror amando às grades de um convento,
Ó Sóror dum romance de Camilo!

 De longe e ausente ao seu perfil do Norte,
Evoco em sonho as Terras do luar,
— Fragas do Corgo em medievo corte!

 À Lua e ao Sol para a servir e amar,
Quando a ausência vem — quem a suporte!
As saudades são o meu falar.
= = = = = = = = =  

Poema de
NEMÉSIO PRATA 
Fortaleza/CE

O "Benefício"
 
Simplício em seu natalício
foi procurar por Simplícia;
de quem, com toda malícia,
lhe pediu um "benefício",
por conta do seu ofício!
 
Simplícia vendo o suplício
da sevícia, o "benefício"
ao Simplício, com perícia,
negou-lhe e foi à Polícia,
e deu parte do Simplício!
 
A Polícia, ao tal Simplício,
enviou-lhe uma notícia,
por um guarda da milícia,
para ouvi-lo, por ofício;
sobre o tal do "benefício"!
 
Já prevendo o seu suplício
no presídio, em "benefício",
não pôs os pés na Polícia;
só depois veio a notícia:
Escafedeu-se Simplício!
 
Moral...
Quem procura benefício
em sacrifício de alguém,
acaba no sacrifício
de beneficiar também!
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Cantiga Infantil de Roda
BALAIO

Eu queria se balaio, 
balaio eu queria “sê”
Pra ficar dependurado, 
na cintura de “ocê”

Balaio meu bem, balaio sinhá
Balaio do coração
Moça que não tem balaio, sinhá
Bota a costura no chão

Eu mandei fazer balaio, 
pra guardar meu algodão
Balaio saiu pequeno, 
não quero balaio não

Balaio meu bem, balaio sinhá
Balaio do coração
Moça que não tem balaio, sinhá
Bota a costura no chão
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Hino de 
São Jorge do Ivaí/ PR

Da Pátria és glória presente
Desta terra varonil!
Em ti a grandeza imponente
Que orgulha o Brasil!

Surgiu, varonil!
São Jorge do Ivaí,
Integrado ao Paraná,
Sul do meu Brasil!

Vencida a bravia terra a sorte,
Ao forte com vitória!
Do vasto Paraná do norte,
Levando o estandarte em glória!
Do vasto Paraná do norte,
Levando o estandarte em glória!
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Soneto de
FRANCISCA JÚLIA
Eldorado Paulista/SP (1871– 1920) São Paulo/SP

Musa Impassível

Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.

Dá-me o hemistíquio d' ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d' alma; a estrofe limpa e viva;

Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos. 
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Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

A torrente e o rio

Com ruído e com fragor,
Tombava da montanha uma torrente,
Espalhando o terror
Nos corações da campesina gente.
E nenhum caminhante
Se atrevia a passar
Barreira tão gigante.
Eis que um vê uns ladrões, e, sem parar,
Mete de meio a onda sussurrante.
Era bulha e mais nada; pelo custo,
O pobre do homem só tirava o susto.
Ganhando, então, coragem,
E os ladrões continuando a persegui-lo,
Encontra na passagem
Um rio ameno, plácido e tranquilo
Que, como um sonho, caricioso, ondeia
Por entre margens de luzente areia:
Procura atravessá-lo,
Entra... mas o cavalo,
Livrando-o à caça dos ladrões, dirige-o
Da onda escura ao seio negrejante,
E ambos foram dali no mesmo instante
Beber ao lago Estígio.
No inferno tenebroso,
Por outros rios navegando vão.

O homem que não fala é perigoso;
Os outros, esses não.
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