Da janela do apartamento eu espiava a vida lá fora. Era noite clara de lua minguante pendurada caoticamente no céu. Uma estrela lá outra acolá. Não ventava, não chovia nem fazia calor. Um extremo mal gosto do tempo. A maioria das luzes dos postes da rua estavam queimadas. Eu do alto do décimo quinto andar vigiava a rua avidamente; outros apartamentos, casas, cabines de telefone pichadas, janelas de outros apartamentos. Alguns estavam como eu, parado olhando tudo e nada, outros vestiam o uniforme doméstico, outros com o corpo jogado no sofá assistindo ao noticiário da TV. Não me dava o desatino de ligar a televisão e escutar a mesma ladainha de sempre; tudo era cópia da cópia, da cópia, da cópia de ontem! Às vezes fincava noite adentro a encarar a rua pela janela do apartamento e afogava em pensamentos estranhos, ou filosóficos? Será que estava ali mesmo? Eu era eu, ou era outro? Dentro daquela gaiola de loucos, sem sentido.
De manhã levantava de sobressalto com o barulho tormentoso do despertador. Calçava meus chinelos e ia até o banheiro enfrentar minha carranca no espelho amassada pelas listras em alto relevo do travesseiro. As escovas estavam estáticas no copo de alumínio, encardidas de lodo. Duas escovas? Isso não tinha muito sentido. Elas só dependiam de mim para sua existência banal. O estômago contorcia com o gosto de flúor da pasta dental ressecada devido a úlcera não cuidada. Meu desjejum matutino: meia lata de coca-cola misturada com pó de café; um cigarro de maconha e a pílula da felicidade: 180 mg de fluoxetina. Trocar de roupa, qualquer uma serve, pegar a maleta e sair do apartamento. Mais uma vez o martelo no cérebro: pra que mesmo trocar de roupa? Num flash a resposta vinha à tona: para não ficar sujo; mas não estava sujo; para quê? Pra nada? Não! As pessoas trocam de roupa sempre! Tomam banho, trocam de roupa! Vão sair trocam de roupa! Vão trabalhar trocam de roupa! As roupas estão sujas? Trocam de roupa, aí tudo bem! Mas se estão limpas trocam de roupa também!? Tem sentido? Sim, por que isso é a convenção! Isso me causava pânico, tédio, raiva, angústia, revolta, ódio... Sei lá, pouco importa!
O bafo do vento soprou intrometido no rosto ressecado; os cabelos não mexeram engomados de poeira e gel; diabo com o sopro do vento! Não gostava do vento, do sol, do nascer nem do pôr-do-sol, da noite, da madrugada. Das pessoas andando na rua, às vezes, encostando em mim com seus corpos desastrados, uma trombada aqui outra desculpa ali. Ou um tanto pior quando me dirigiam um bom dia! Não olhava para as pessoas, estava farto da existência delas. Eram úlceras pro meu estômago queimado.
Os passos eram trêmulos pelo quarteirão. Dois longos quarteirões, até entrar num outro prédio. O elevador me enjoava o estômago, a cabeça, o corpo, a cara. As pessoas dentro dele me faziam pensar na imbecilidade de cada um que estava ali. Inclusive a minha, a nossa , a de todo ser humano com senso mínimo de raciocínio. O barulho da porta do elevador se abrindo, o porteiro anunciou o andar me acordando da excentricidade. Saí de má vontade do elevador vazio e me dirigi à sala com a placa : Psiquiatria e Terapia.
O ar da sala acometido por ar condicionado e incenso de flores que espantava maus fluidos. O som que entrou nos meus ouvidos lembrava clássicos que acalmavam os nervos. Nos meus não acalmavam, só irritavam, pois não suportava escutá-los mais! Música para os pacientes... Sem querer soltei um bocejo, um sorriso amarelo e finalmente um gemido enfastiado. Parei no limiar da porta, não entrei nem saí... Cocei a cabeça, forcei os olhos para a sala cheia de pessoas distribuídas uma a uma pelas cadeiras estofadas e confortáveis. A secretária no centro completando o cenário insensato do inexplicável olhava para mim com olhos forçados, certamente treinados, pois escondiam qualquer sentimento que viesse à tona em um ser humano que era cópia da cópia, da cópia, da cópia, da cópia... Levantou da cadeira como em câmera lenta, tudo estudado, calculado, treinado como ontem, anteontem, antes de anteontem, diversos anteontens, há uma década! Abriu a porta, levantou as sobrancelhas com ar de cinismo e um sorriso amável no rosto; delicadamente entrei na sala titulada: doutor...
Tudo em ordem... Fui para trás da escrivaninha, sentei na cadeira giratória, peguei as fichas dos novos pacientes com problemas velhos sem interesse, olhei para o relógio, mesma hora ontem, hoje e amanhã ... Amanhã?! Amanhã nunca será, porque quando chegar vai ser hoje! Tudo cópia da cópia, da cópia da cópia, da cópia da cópia…
Fonte:
Jornal Aldrava Cultural. http://www.jornalaldrava.com.br/
De manhã levantava de sobressalto com o barulho tormentoso do despertador. Calçava meus chinelos e ia até o banheiro enfrentar minha carranca no espelho amassada pelas listras em alto relevo do travesseiro. As escovas estavam estáticas no copo de alumínio, encardidas de lodo. Duas escovas? Isso não tinha muito sentido. Elas só dependiam de mim para sua existência banal. O estômago contorcia com o gosto de flúor da pasta dental ressecada devido a úlcera não cuidada. Meu desjejum matutino: meia lata de coca-cola misturada com pó de café; um cigarro de maconha e a pílula da felicidade: 180 mg de fluoxetina. Trocar de roupa, qualquer uma serve, pegar a maleta e sair do apartamento. Mais uma vez o martelo no cérebro: pra que mesmo trocar de roupa? Num flash a resposta vinha à tona: para não ficar sujo; mas não estava sujo; para quê? Pra nada? Não! As pessoas trocam de roupa sempre! Tomam banho, trocam de roupa! Vão sair trocam de roupa! Vão trabalhar trocam de roupa! As roupas estão sujas? Trocam de roupa, aí tudo bem! Mas se estão limpas trocam de roupa também!? Tem sentido? Sim, por que isso é a convenção! Isso me causava pânico, tédio, raiva, angústia, revolta, ódio... Sei lá, pouco importa!
O bafo do vento soprou intrometido no rosto ressecado; os cabelos não mexeram engomados de poeira e gel; diabo com o sopro do vento! Não gostava do vento, do sol, do nascer nem do pôr-do-sol, da noite, da madrugada. Das pessoas andando na rua, às vezes, encostando em mim com seus corpos desastrados, uma trombada aqui outra desculpa ali. Ou um tanto pior quando me dirigiam um bom dia! Não olhava para as pessoas, estava farto da existência delas. Eram úlceras pro meu estômago queimado.
Os passos eram trêmulos pelo quarteirão. Dois longos quarteirões, até entrar num outro prédio. O elevador me enjoava o estômago, a cabeça, o corpo, a cara. As pessoas dentro dele me faziam pensar na imbecilidade de cada um que estava ali. Inclusive a minha, a nossa , a de todo ser humano com senso mínimo de raciocínio. O barulho da porta do elevador se abrindo, o porteiro anunciou o andar me acordando da excentricidade. Saí de má vontade do elevador vazio e me dirigi à sala com a placa : Psiquiatria e Terapia.
O ar da sala acometido por ar condicionado e incenso de flores que espantava maus fluidos. O som que entrou nos meus ouvidos lembrava clássicos que acalmavam os nervos. Nos meus não acalmavam, só irritavam, pois não suportava escutá-los mais! Música para os pacientes... Sem querer soltei um bocejo, um sorriso amarelo e finalmente um gemido enfastiado. Parei no limiar da porta, não entrei nem saí... Cocei a cabeça, forcei os olhos para a sala cheia de pessoas distribuídas uma a uma pelas cadeiras estofadas e confortáveis. A secretária no centro completando o cenário insensato do inexplicável olhava para mim com olhos forçados, certamente treinados, pois escondiam qualquer sentimento que viesse à tona em um ser humano que era cópia da cópia, da cópia, da cópia, da cópia... Levantou da cadeira como em câmera lenta, tudo estudado, calculado, treinado como ontem, anteontem, antes de anteontem, diversos anteontens, há uma década! Abriu a porta, levantou as sobrancelhas com ar de cinismo e um sorriso amável no rosto; delicadamente entrei na sala titulada: doutor...
Tudo em ordem... Fui para trás da escrivaninha, sentei na cadeira giratória, peguei as fichas dos novos pacientes com problemas velhos sem interesse, olhei para o relógio, mesma hora ontem, hoje e amanhã ... Amanhã?! Amanhã nunca será, porque quando chegar vai ser hoje! Tudo cópia da cópia, da cópia da cópia, da cópia da cópia…
Fonte:
Jornal Aldrava Cultural. http://www.jornalaldrava.com.br/
Imagem = montagem de José Feldman
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