segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Myrna Atalla Senise (Perto de Clarice: um coração selvagem)



Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida.” (James Joyce)

Quando Clarice Lispector estreou com Perto do coração selvagem, a crítica recebeu o romance com entusiasmo. Louvou-se nele a "mais séria tentativa de romance introspectivo" (Sérgio Milliet), e Antônio Cândido previu na autora a afirmação de "um dos valores mais sólidos... mais originais de nossa literatura". Não erraram.

Clarice, autêntica brasileira-não-brasileira, nascida nem Tchetchelnik, na Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920, de família russa que fugia às perseguições contra judeus, na então URSS. Chega ao Brasil com os pais e as duas irmãs aos dois meses de idade, instalando-se em Recife. Sérias dificuldades financeiras. A mãe morre quando ela conta 9 anos de idade. A família então se transfere para o Rio de Janeiro, onde Clarice começa a trabalhar como professora particular de Português, depois redatora da Agência Nacional. No jornalismo, conhece e se aproxima de escritores e jornalistas como Antônio Callado, Hélio Pelegrino, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Alberto Dines e Rubem Braga. Os passos seguintes são o jornal A Noite e o início do livro Perto do Coração Selvagem - segundo ela, um processo cercado pela angústia. O romance a persegue. As idéias surgem a qualquer hora, em qualquer lugar. Nasce aí uma das características do seu método de escrita - anotar as idéias a qualquer hora, em qualquer pedaço de papel. Entra para a Faculdade de Direito em 1940, ano em que falece o pai. Em 1943 publica Perto do coração selvagem, ganhador do prêmio da Fundação Graça Aranha. Naturaliza-se brasileira e casa com um colega de curso, diplomata Maury Gurgel Valente. Escreve O Lustre, seu segundo romance, publicado em 1946. Dois filhos: Pedro e Paulo. Perto do Coração Selvagem, é publicado em francês, em 1954. Publica A Maçã no Escuro em 1956 e recebe o prêmio Carmen Dolores Barbosa. Separa-se do marido em 1959 e publica A Paixão Segundo GH, em 1964. Morre, de câncer, no Rio de Janeiro, em nove de dezembro de 1977, após ter escrito A Hora da Estrela.

Aprofundou uma visão do mundo muito pessoal e aperfeiçoou a técnica narrativa com uma linguagem metafórico-poética, coerente/incoerente, numa abordagem pode-se dizer fenomenológica, sem preconceito. Introspectiva. Prosa introspectiva. Angustiante. Graciliano já havia buscado o romance introspectivo. Clarice completou-o. Completou-se. Esmiuçar o psicologismo das pessoas, saber da existência, das angústias, das buscas e não concluir. Não saber o que fazer com tudo, ou saber e não fazer ou não fazer por saber. Obra aberta, como já disse Umberto Eco. Sempre indagando. Não concluindo. Sua busca não é a conclusão. É a busca.

Há três coisas para as quais nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos.
Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca
.”

Era o meu sonho ter várias vidas. Numa eu seria só mãe, em outra vida eu só escreveria, em outra eu só amava.”

Ampliou o valor da frase, da construção, ampliou o sentido da palavra. Amplitude da palavra. Ampla palavra. Amplo silêncio pleno de palavras em sua própria ausência. Recriou o romance, o conto. Fez prosa-poética. Viveu a dor de escrever e de criar. Ansiedade. Insatisfação. Comunicou a solidão. A solidão comunicou Clarice. O seu dizer-sem dizer-dizendo foi perfeito

Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.”

“O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas.”

Construiu desconstruindo. Desconstruindo o mundo. Regras. Padrões. Um mundo perplexo diante de uma menina perplexa. Uma jovem aturdida. Uma mulher perplexa com o próprio poder da escrita. Perplexidade. Às vezes até com a própria fama, às vezes com a falta de interesse das editoras. Domina a palavra. Trabalha com os sons. Sons onomatopaicos e o silêncio.

A máquina de papai batia tac-tac... tac-tac-tac... O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzz.O guarda-roupa dizia o quê? Roupa-roupa-roupa. Não não. Entre o relógio, a máquina e o silêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta.”

Crítica antes dos críticos. Sensível ante a própria crítica. Alma ligada a uma realidade que não existia. Real enquanto arte, não sendo real tanto na arte quanto na vida.

O esmagar, esmaecer, o dizer em silêncio, a profundidade das entrelinhas. Novamente as entrelinhas. Quem disse que o silêncio não comunica? Quem disse que o silêncio não fala? Quem disse que o silêncio existe? Ou que não existe? Macabea? Macabea poderia dizê-lo? Joana? Por que Joana? Perto do coração selvagem? Coragem selvagem da vida. Age. Viaja. Interage. Joana buscava. Clarice buscava? Quem disse que a personagem é o alter-ego da autora? A personagem é o alter-ego da autora? Clarice não disse. Não disse nada e disse tudo. Disse não dizendo. Não dizendo, disse. Inquietude plena de mistério e criação.

"Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma bênção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo."

Eu sou uma atriz para mim mesma. Eu finjo que sou determinada pessoa mas na realidade não sou nada.”

“ Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. – Sou pois um brinquedo a quem dão corda e que terminada esta não encontrará vida própria, mais profunda. Procurar tranqüilamente admitir que talvez só a encontre se for buscá-la nas fontes pequenas. Ou senão morrerei de sede. Talvez não tenha sido feita para as águas puras e largas, mas para as pequenas e de fácil acesso. E talvez meu desejo de outra fonte, essa ânsia que me dá ao rosto um ar de quem caça para se alimentar, talvez essa ânsia seja uma idéia – e nada mais. Porém – os raros instantes que às vezes consigo de suficiência, de vida cega, de alegria tão intensa e tão serena como o canto de um órgão – esses instantes não provam que sou capaz de satisfazer minha busca e que esta é sede de todo um ser e não apenas uma idéia? Além do mais, a idéia é a verdade! Grito-me. (...)


Perto do coração selvagem mostra a reação à disciplina enquanto disciplina. As coisas não estão porque estão. Não são porque são. Otávio, o marido, tem nome. Lúcia, a amante, tem nome. O amante não tem. Seria o quê? Quem? Víbora? Por não aceitar as regras pré-estabelecidas pelo adulto? Víbora por questionar a professora, o professor, sobre ser feliz ou não? Depois de ser feliz o que acontece?

Bom é viver. Mau é não viver. É morrer? Não não. Mau é não viver, só isso. Morrer já é outra coisa. Morrer é diferente do bom e do mau.

Víbora por não sentir remorsos de atos incoerentes-coerentes? Por aceitar a amante? Por desestruturar sem desejar ou desejar desestruturar sem querer, ou mesmo, atavicamente, desestruturar? Desestruturar tudo? Tudo: escola, família, Deus, relação humana. Tudo. Vida--morte, morte-vida. Sentir e não se entender. Ter sensações, ser sensações, misturas, o tempo, o vazio, tudo e nada. Uma criança que percebe além do mundo adulto e se aturde. Tudo é nada. Não. Não havia o tudo. Não havia o nada. Não havia. Só o corpo. As sensações. O tempo. Estranho. Lento e rápido. Sem tempo. Basta se cumprir. Criador(a) e criatura.

Não há propriamente mistério, senão o da vida, em profundidade e em superfície.”

Importante somente o texto. Nem a vida. Morte-sem-medo. Um cavalo novo.

“... não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.”

Fonte:
Academia Sorocabana de Letras

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