quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Andréia Donadon Leal (Seus perdidos, meus achados)


Dora estava muito cansada, definitivamente esgotada. Os meses anteriores não tinham sido fáceis. Trazia o coração em ritmo acelerado; o sono triplicado pelas inúmeras noites em claro. Despejar lágrimas era cansativo. Escutar o barulho de vozes exigia o resto das energias poupadas. O burburinho cada vez mais longe, cenas lentas e o cheiro de vela queimando, penetrava suas narinas sem cor e dilatadas. Sentia o cheiro mais pelo barulho das chamas trepidando silenciosamente no castiçal de prata embaçado. Alguém não tinha feito o serviço direito. Não tiraram as últimas ceras que criavam uma crosta espessa e fedorenta. Fumaça acinzentada.

O vôo da mosca imperceptível com barulho misturado às vozes de pessoas que não revezavam nem em uma ínfima virada de segundo. Dora sentia o vôo das pontas de asas das moscas batendo. Um chocalho familiar de pulseira... Cheiro de perfume abafando o fedor de vela queimada. Alguns dias antes a chuva respingava com violência lá fora, gotas grossas batiam no chão. A luz teimava em apagar enquanto o pai cantarolava uma música para ela. O quarto era constantemente limpo. Nas crises de falta de ar, o balão de oxigênio, um dos poucos equipamentos, pois era o único meio de chegar ar até os pulmões. Um suplício para ela e para o pai. Vivia com o coração sobressaltado diante das crises. O pulmão estava debilitado demais.

Depois que a crise passava, ele sentava no chão da sala e chorava copiosamente: - quase a perdi! Falava baixinho. Foram inúmeras crises. A mãe tinha assistido a algumas e a calma que emanava de seu ser a chocava. Lembrou de um momento em que acabara de ter a crise mais forte de sua vida e ela acabara de chegar. As mãos entrelaçaram-se as de Dora e beijou-a carinhosamente no rosto e disse algo que não conseguiu escutar. Da fresta da porta viu o sorriso triste no rosto do pai. A campainha tocou estridentemente. Olhou o relógio no alto da parede do quarto e já passava das três e meia da manhã. O corpo não respirava mais. As lembranças teimavam em penetrar os pensamentos. A caixinha com seus perdidos... Fizera questão em perdê-los para morrer junto com as feridas. Dora nunca negou que o pai fosse a pessoa mais amorosa e doce que conhecera em toda sua vida. Não, isto jamais negaria. A bondade e o caráter dele foram imutáveis a tal ponto de cerrar suas cicatrizes que subitamente insistiam em abrir e sangrar. Feridas que nunca fecharam. Olhava o semblante angelical do pai, pairado, estático com as mãos sobre o caixão. O pai foi um anjo, tranqüilo, paciente, meigo, sofrido e de uma bondade que chegava a doer nela tamanha generosidade. Sempre entendia, aceitava e repetia: - Mais cedo, ou mais tarde, filha. Estas frases às vezes mais a irritavam. A complacência chocava. Não era possível uma pessoa ter tanta explicação para coisas inexplicáveis ou óbvias. Mamãe nunca nos amou e nos aceitou, foi rejeição a partir do momento que sentiu os sentimentos dos outros, pensou Dora. Era triste perceber como nunca amara seu pai, nunca o amara de verdade.

Alguns anos Dora fora tomada de uma doença grave acometida por febre alta, urina escura, mal estar e dores musculares. Com tempo os sintomas foram progredindo por uma coloração amarelo-dourada da pele e conjuntivas. De quarentena em casa. Hepatite. A comida, o prato, todos os cuidados e carinhos eram repassados pelo tratamento cuidadoso e preocupado do pai. As noites em que Dora quase padecera de dores e altíssimas temperaturas, os pedaços de pano embebidos em álcool repousavam nas partes do corpo.

- Cadê mãe, pai? Variava. Hoje ela volta pra casa?

- Volta Dora. Hoje ela volta...

- Que horas?

- Mais cedo ou mais tarde...

O sono invadia as crises de Dora pelo cansaço e os olhos só abriam no dia seguinte sob o olhar trôpego e desfocado da mãe. Semblante enrugado, cabelos desgrenhados e um palmo sem cor. Dora olhava para ela sem entender a frieza que emanava de seu ser. Sentia e sofria sob o olhar perdido em algum ponto invisível e um monossílabo da mãe: - Bem? Mal tinha tempo em balbuciar uma palavra e a florzinha do mato era repousada sobre a cama ainda com cheiro de mato e terra.

Um pedido de desculpas? Ora, ela nunca tinha tentado ou se desculpado pelas ausências e falta de afeto. Quando aparecia estava com ressaca visível ou com dor de cabeça. O que mais doía em Dora era o olhar distante. Afago ou toque sutil bastavam os do pai. O costumeiro e amoroso olhar dele, guardado. A mãe tinha quitado o afeto pela maternidade. Só serviu para segurá-la a duração de uma gestação, depois não se lembrava mais, estava perdido. A florzinha abria as feridas da falta do carinho da mãe. Mirar a flor era sofrível demais. Inúmeras foram repousadas em seu leito e nunca entendera o sentido delas. Recusava-se. Esquecia as flores em qualquer canto do quarto, que com o tempo se perdiam no esquecimento, no relaxamento de querer matar a dor do desprezo. Foram inúmeras e incontáveis perdidas em algum canto da casa. A brisa do vento talvez as levassem ou o pai varresse o que sobrara delas no dia seguinte... Ou a decrepitude do tempo.

Pouco importava para ela. Era previsível: mais dia ou menos dia, como dizia ele, viria e deixaria uma flor. Sumiria nas próximas semanas ou meses com algum homem, e o pai de Dora sempre esperaria o retorno, o arrependimento, a mudança. Ele sempre esperou, apostou uma vida nisto e mais triste para ela foi perceber a esperança até o último instante, no gesto inesperado: uma caixinha de veludo com a insígnia: seus perdidos e meus achados.

Dora acompanhava astutamente o barulho das pedras da pulseira se chocalhando e o cheiro de fragrância barata. Ela estava lá... Lembrou das palavras do pai e sua voz latejando nos ouvidos: - Ela sempre virá, minha filha! Segurou com mais força o choro que insistentemente teimava em despencar pelo rosto. As palavras do pai aumentavam sua solidão. Estava sozinho e abandonado. Mais cedo ou mais tarde: ela virá. Esta frase era conhecida e repetida inúmeras vezes por ele. Fazia questão de perdê-la. Entrava pelo ouvido esquerdo e saía pelo direito. Lamentava... Ela lamentava tanto. O cabelo totalmente descolorido e amarrado em uma fita vermelha. O rosto mais enrugado que de costume. As roupas amassadas e encardidas, as unhas comidas e com resto de esmalte velho. Ela era o foco de Dora.

O barulho da mosca bailando no recinto e o cheiro de vela queimando não incomodavam mais. Semblante sisudo, olhos vermelhos e inchados. Remorso? Só poderia ser. Dora percebeu sentimento no rosto da mãe. A figura também se encolheu coberta em um xale de tricô preto que tapava todas as partes das costas. O osso estava apontando no tecido de lã. Estava debilmente desamparada e triste. Apagada. Pela primeira vez, Dora viu a mãe se apagar no meio das pessoas. Sombria e triste. Velha e cansada. Poucas vezes vira o rosto em harmonia. Raríssimas vezes que até se esquecera. Fizera questão de desprezar o retrato sobre a mesinha no canto da sala. Três figuras sobrepostas num fundo azul e verde. Três figuras abraçadas e felizes. Esta foto não combinava com os sumiços dela. A tristeza do pai e a carência de Dora. Doía olhar o retrato com a cena que não representava mais. Num ato repentino de revolta cortou o rosto da mãe do retrato. Jogara em algum canto da sala. Estava perdido ou foi varrido pelo vento ou pelas cerdas da vassoura junto com os ciscos. Perdera. Fizera questão. Fazia questão de esquecer as pontas que abriam as feridas.

Abandonava-as em qualquer canto. Perdia-as em um lugar qualquer. Esquecia a existência delas, ou quando lembrava não tinha mais a prova da dor. O pai sempre entendera, inquestionavelmente compreendera e aceitava a atitude. As pontas da pulseira batendo na beirada do caixão chamou a atenção dela. Perdida em pensamentos que insistentemente fizera questão em apagar de sua vida. O chocalho da pulseira no caixão e as mãos acariciando seu rosto sem vida seguido de um choro muito triste. A mãe era uma incógnita. Desconhecida e estranha. Os perdidos guardados em uma caixinha de veludo pelo pai, pouco antes do falecimento colocado no guarda-roupa com a inscrição: seus perdidos e meus achados. Aquela caixinha tinha a passagem mais doce e feliz de sua vida familiar. As florzinhas do mato, o retrato constituído da família, os retratos da mãe carregando-a no colo, todos perdidos por Dora: achados e guardados por ele. Com gesto repentino, mas conhecido por ela, a mãe repousou sobre as mãos de Dora a florzinha do mato com cheiro de terra e mato molhados.

Antes de fecharem a tampa do caixão lançou um olhar demorado sobre a figura estática da filha. Com o corpo sustentado por duas mulheres na procissão até o cemitério, o pai de Dora chorava convulsivamente e sua mãe caminhava silenciosamente atrás. O buraco fundo e pequeno engolia o caixão, a música antes da despedida aumentou os soluços e choro do pai: “fica sempre um pouco de perfume, nas mãos que oferecem rosas, nas mãos que sabem ser generosas”... A mãe jogou uma rosa sobre o caixão antes de ele afundar na terra.

- Mais cedo ou mais tarde, querida... Ela volta, não se preocupe minha filha. Ela sempre virá... Lembrou das palavras do pai. Dora foi tomada de um sentimento novo pelas imagens achadas e guardadas por ele e foi em paz com as flores repousadas sobre o seu corpo.

Fonte:
Jornal Aldrava Cultural. http://www.jornalaldrava.com.br/

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