Oscar Bertholdo é poeta de húmus fértil, denso. Sua poesia é constituída por flamejante associação lexical, de rara beleza. As metáforas saltam em seus textos com grande força expressiva, com genial inventividade. Nesse aspecto, ressoa nessa poesia um certo toque de surrealismo, bem ao estilo de um Jorge de Lima. Aliás, são muitos os parentescos, apesar das singularidades de cada um, entre Bertholdo e o grande autor de A túnica inconsútil. Ambos têm um senso do sagrado apuradíssimo: a poesia lhes serve como uma força mística capaz de transfigurar o real comezinho, abrindo-nos a constante e sempre renovável possibilidade do mistério, fincado, cravado, no chão banal do cotidiano. Também como Jorge de Lima, Bertholdo incendeia a palavra com uma espécie de sonambulismo eletrizante, de iluminado delírio. É o que podemos verificar nesse notável poema, o canto 7 de Ave, Árvore:
As folhas caídas ao chão pouco a pouco
as mais antigas cantigas desnudam,
as nuvens espantam os barcos de caronte
e tão penosamente chegarás a outra margem
sem as anônimas palavras de tua casa
As árvores aqui persistem acostumadas
ao êxodo cheio de obstácula morte sem fôlego,
serpente de pólen das distâncias, orla
das nossas faces, abóbada quase pingente
As árvores existem aqui tão evanescentes...
Por isso escreves: antes do teu rosto
exposto está o chão de pedra das palavras,
desabrigado é o código que tu lembras
ainda aquém dos portões mecânicos.
Foi feito de mudanças o teu rosto.
Apenas a palavra é o lugarejo lembrado
de perguntas e o ar à beira dos acenos
sem susto sobrevive contigo,
tu que trazes o ciclo inquisidor
e o fragmentado anjo da trombeta.
Os campos, com suas vinhas, seu gado manso, seus vales repletos de sereno e frias madrugadas, são talhados, plasticamente, como em aquarela, na obra desse poeta que, ao lado de Mário Quintana, Carlos Nejar e Heitor Saldanha, constitui-se uma das grandes vozes da poesia gaúcha (e brasileira, antes de tudo) da modernidade. Nesse sentido, a geografia campesina incendeia e irriga essa palavra, revelando-nos poemas de acentuado esplendor cósmico. A natureza, com sua profusão de cores e cheiros, desponta, nessa lírica, com o seu encanto edênico, inaugural, primevo:
SOUVENIR
A aldeia alonga a alameda
sem cansaço e simetria.
Em verdade, que saudades eu tenho
da minha aldeia querida à sombra
das ave-marias. Tenho flores
para as abelhas, tenho gotas de sereno
e umas borboletas azuis, eu te juro.
Eram tão ingênuas as campinas
e as folhas secas do outono
cirandando noite e dia
os cantares que não voltam mais.
Oh! aldeia de minha infância,
Oh! céu que cai de bruços –
não tenho rimas plangentes
encobrindo os braços nus.
Quero pedir aos bois tão mansos
em que tapetes de musgo
os sonhos vão e não vêm?
Mas depois quando souber provar
o sabor de outros frutos
além de minha aldeia querida,
o cansaço não passa, em verdade
o cansaço não passa.
A alameda, as flores, as abelhas, o musgo, são expressões do real, mas de um real sempre recortado, transfigurado em poesia. Às vezes, em alguns poemas, a natureza é desfeita em caos. Não podemos nos esquecer que, em Bertholdo, o existente é modulado pela “rainha das faculdades”, ou seja, por aquela importante fantasia baudelairiana, força capaz de inventar uma terceira dimensão, a pátria do devaneio poético, raiz arquetípica de uma infância que não se finda nunca, pois o poeta acorda sempre o lume vivo da palavra, como a criança que faz do mundo um jogo:
Paciente salgueiro, tua umidade é um poço.
Ao íntimo do teu oco desces para ver
o desconsolo havido depois da infância.
E, rente às fontes, ninguém mais te espera
e lembras a fundura de todas as coisas.
A duração de tanta mágoa inesperada
move-se em ti, em teu sangue todo,
tão nodoso és ao redor do corpo
que anjo nenhum é espantalho da seiva
arável em cada árvore em pleno outono.
Entretanto o exílio existe ao mesmo tempo
em que a palavra faz-se forma
da hora. Desde ontem o silêncio principiou
colhendo a lume e amalgamando
em confidências as tuas lúdicas perguntas.
Junto aos rios das cicatrizes
vêm beber os leões da minha alma.
Quando eu morrer estarei perdoado
de demora. Um poço é tão pouco
mas tua água em mim é sempre gênese.
A força trituradora de toda essa metaforização desvela a importante e singular forma como Bertholdo se expressa . O poeta segue os ritmos instintivos da palavra, fecundando-a através do ritmo dos signos. Ao elaborar o poema, o autor deixa-se, na verdade, escrever pela poesia. As forças genesíacas da palavra explodem na alma do escritor que, como um arauto, um vidente, segue o fluxo rítmico dos vocábulos, deflorando a linguagem numa espécie de cópula, pela qual a subjetividade de poeta é transposta pela concretude da expressão verbal. Nessa entrega irrestrita à poesia, o autor, inclusive, não teme criar metáforas de mau gosto, como, no exemplo acima, “os leões da alma”. A palavra de Bertholdo, portanto, é sonambúlica e intuitiva, reacendendo as forças míticas da escritura poética. Nesse aspecto, é bom lembrar o crítico Antonio Hohlfeldt: “Com uma forte criação metafórica, Bertholdo utiliza as sugestões mais imediatas do mundo que o rodeia – isto é, a paisagem de montanhas e vales – e sobre este tema tece as suas considerações, elevando-as à categoria simbólica da vida e das vicissitudes humanas”. A paisagem, portanto, é desfigurada pela força lírica. Eis um belo exemplo:
As raízes de mim estão tão próximas
que eu passei toda uma vida para esperar
o gosto das maçãs de minha terra.
Rápido o sol conduz ao outono
a placidez de um animal dormindo.
As macieiras te pressentem como este sonho
conclui a noite igual ao rosto,
assim a liberdade aguarda o vestígio
de quem não tem outra hora
senão o início da sombra à beira do caminho.
Os cinamomos ao redor da casa ainda
angulam nossos rostos ao hálito
de parar as serventias de tácitos
desejos. Vemos deixar em paz
os pesadelos anteriores aos objetos caseiros.
Faltam muitos pássaros que podem
voltar contigo. Em cada êxodo arde
uma resina vestal. Verdadeiramente são
vastos os numes procelosos que apascentam
o dia de nossa morte, descanso infindo.
A natureza, portanto, seve como mediadora simbólica entre o poeta e as suas indagações existenciais. Poeta da verve mística, de profundo questionamento perante a condição humana, a palavra de Bertholdo reluz, ainda que esquecida, em nossa literatura, como um achado repleto de grandes belezas. Para encerrar esse breve comentário, deixo ao leitor esse belo poema, jóia preciosa a reluzir todo o fulgor da escrita de Bertholdo:
TEMPO DE VINDIMA
Perdoa-me continuar impossuído como antes,
trago para os vãos da aldeia a nitidez dos frutos.
Estávamos tão próximos que outono tatuou
o fiel silêncio bordando as vinhas do orvalho.
Havia solicitude para a seiva desfeita
sem disfarces na íntima alucinação da colheita.
A vindima trouxe do outono as horas retidas
na quase imperfeita esperança decisiva.
Para enfrentar as lembranças que a vida deixou
a solidão lenta das coisas incompreendidas.
Agora posso inventar em aceno o doce hálito
enquanto as calmas uvas batem palmas pelos vales.
Fontes:
Oscar Bertholdo. Ave, Árvore. Caxias do Sul: Educs, 1981.
Oscar Bertholdo. Molho de chaves. Caxias do Sul: Educs, 2001.
Antonio Hohlfeldt. Antologia da literatura rio-grandense contemporânea. Porto Alegre: L&PM, 1979. Volume 2.
As folhas caídas ao chão pouco a pouco
as mais antigas cantigas desnudam,
as nuvens espantam os barcos de caronte
e tão penosamente chegarás a outra margem
sem as anônimas palavras de tua casa
As árvores aqui persistem acostumadas
ao êxodo cheio de obstácula morte sem fôlego,
serpente de pólen das distâncias, orla
das nossas faces, abóbada quase pingente
As árvores existem aqui tão evanescentes...
Por isso escreves: antes do teu rosto
exposto está o chão de pedra das palavras,
desabrigado é o código que tu lembras
ainda aquém dos portões mecânicos.
Foi feito de mudanças o teu rosto.
Apenas a palavra é o lugarejo lembrado
de perguntas e o ar à beira dos acenos
sem susto sobrevive contigo,
tu que trazes o ciclo inquisidor
e o fragmentado anjo da trombeta.
Os campos, com suas vinhas, seu gado manso, seus vales repletos de sereno e frias madrugadas, são talhados, plasticamente, como em aquarela, na obra desse poeta que, ao lado de Mário Quintana, Carlos Nejar e Heitor Saldanha, constitui-se uma das grandes vozes da poesia gaúcha (e brasileira, antes de tudo) da modernidade. Nesse sentido, a geografia campesina incendeia e irriga essa palavra, revelando-nos poemas de acentuado esplendor cósmico. A natureza, com sua profusão de cores e cheiros, desponta, nessa lírica, com o seu encanto edênico, inaugural, primevo:
SOUVENIR
A aldeia alonga a alameda
sem cansaço e simetria.
Em verdade, que saudades eu tenho
da minha aldeia querida à sombra
das ave-marias. Tenho flores
para as abelhas, tenho gotas de sereno
e umas borboletas azuis, eu te juro.
Eram tão ingênuas as campinas
e as folhas secas do outono
cirandando noite e dia
os cantares que não voltam mais.
Oh! aldeia de minha infância,
Oh! céu que cai de bruços –
não tenho rimas plangentes
encobrindo os braços nus.
Quero pedir aos bois tão mansos
em que tapetes de musgo
os sonhos vão e não vêm?
Mas depois quando souber provar
o sabor de outros frutos
além de minha aldeia querida,
o cansaço não passa, em verdade
o cansaço não passa.
A alameda, as flores, as abelhas, o musgo, são expressões do real, mas de um real sempre recortado, transfigurado em poesia. Às vezes, em alguns poemas, a natureza é desfeita em caos. Não podemos nos esquecer que, em Bertholdo, o existente é modulado pela “rainha das faculdades”, ou seja, por aquela importante fantasia baudelairiana, força capaz de inventar uma terceira dimensão, a pátria do devaneio poético, raiz arquetípica de uma infância que não se finda nunca, pois o poeta acorda sempre o lume vivo da palavra, como a criança que faz do mundo um jogo:
Paciente salgueiro, tua umidade é um poço.
Ao íntimo do teu oco desces para ver
o desconsolo havido depois da infância.
E, rente às fontes, ninguém mais te espera
e lembras a fundura de todas as coisas.
A duração de tanta mágoa inesperada
move-se em ti, em teu sangue todo,
tão nodoso és ao redor do corpo
que anjo nenhum é espantalho da seiva
arável em cada árvore em pleno outono.
Entretanto o exílio existe ao mesmo tempo
em que a palavra faz-se forma
da hora. Desde ontem o silêncio principiou
colhendo a lume e amalgamando
em confidências as tuas lúdicas perguntas.
Junto aos rios das cicatrizes
vêm beber os leões da minha alma.
Quando eu morrer estarei perdoado
de demora. Um poço é tão pouco
mas tua água em mim é sempre gênese.
A força trituradora de toda essa metaforização desvela a importante e singular forma como Bertholdo se expressa . O poeta segue os ritmos instintivos da palavra, fecundando-a através do ritmo dos signos. Ao elaborar o poema, o autor deixa-se, na verdade, escrever pela poesia. As forças genesíacas da palavra explodem na alma do escritor que, como um arauto, um vidente, segue o fluxo rítmico dos vocábulos, deflorando a linguagem numa espécie de cópula, pela qual a subjetividade de poeta é transposta pela concretude da expressão verbal. Nessa entrega irrestrita à poesia, o autor, inclusive, não teme criar metáforas de mau gosto, como, no exemplo acima, “os leões da alma”. A palavra de Bertholdo, portanto, é sonambúlica e intuitiva, reacendendo as forças míticas da escritura poética. Nesse aspecto, é bom lembrar o crítico Antonio Hohlfeldt: “Com uma forte criação metafórica, Bertholdo utiliza as sugestões mais imediatas do mundo que o rodeia – isto é, a paisagem de montanhas e vales – e sobre este tema tece as suas considerações, elevando-as à categoria simbólica da vida e das vicissitudes humanas”. A paisagem, portanto, é desfigurada pela força lírica. Eis um belo exemplo:
As raízes de mim estão tão próximas
que eu passei toda uma vida para esperar
o gosto das maçãs de minha terra.
Rápido o sol conduz ao outono
a placidez de um animal dormindo.
As macieiras te pressentem como este sonho
conclui a noite igual ao rosto,
assim a liberdade aguarda o vestígio
de quem não tem outra hora
senão o início da sombra à beira do caminho.
Os cinamomos ao redor da casa ainda
angulam nossos rostos ao hálito
de parar as serventias de tácitos
desejos. Vemos deixar em paz
os pesadelos anteriores aos objetos caseiros.
Faltam muitos pássaros que podem
voltar contigo. Em cada êxodo arde
uma resina vestal. Verdadeiramente são
vastos os numes procelosos que apascentam
o dia de nossa morte, descanso infindo.
A natureza, portanto, seve como mediadora simbólica entre o poeta e as suas indagações existenciais. Poeta da verve mística, de profundo questionamento perante a condição humana, a palavra de Bertholdo reluz, ainda que esquecida, em nossa literatura, como um achado repleto de grandes belezas. Para encerrar esse breve comentário, deixo ao leitor esse belo poema, jóia preciosa a reluzir todo o fulgor da escrita de Bertholdo:
TEMPO DE VINDIMA
Perdoa-me continuar impossuído como antes,
trago para os vãos da aldeia a nitidez dos frutos.
Estávamos tão próximos que outono tatuou
o fiel silêncio bordando as vinhas do orvalho.
Havia solicitude para a seiva desfeita
sem disfarces na íntima alucinação da colheita.
A vindima trouxe do outono as horas retidas
na quase imperfeita esperança decisiva.
Para enfrentar as lembranças que a vida deixou
a solidão lenta das coisas incompreendidas.
Agora posso inventar em aceno o doce hálito
enquanto as calmas uvas batem palmas pelos vales.
Fontes:
Oscar Bertholdo. Ave, Árvore. Caxias do Sul: Educs, 1981.
Oscar Bertholdo. Molho de chaves. Caxias do Sul: Educs, 2001.
Antonio Hohlfeldt. Antologia da literatura rio-grandense contemporânea. Porto Alegre: L&PM, 1979. Volume 2.
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