ABISMOS
Toda lua é engano
todo anjo é cruel
no abismo de eternidade
e ânsia
do corpoema
CUMPLICIDADE
Agora e pela hora da minha agonia
louvo Trindade e Jorge de Lima
cantando,
catando as duras penas, só.
– De onde vem, Solano, esta agonia?
– Vem de longe, nega, muito longe!
De Afroamérica sonhada,
lá, donde crece la palma
plantada en versos de alma,
del hombre José Martí.
– De onde vem, Solano, esta agonia?
– De muito longe, nega.
Do comecinho das coisas;
de muito longe, minha nega, muito longe...
CRIANÇAS DE ANGOLA
ao poeta angolano Arlindo Barbeitos
... e as crianças cantavam
na altura dos sonhos
o de mais sagrado:
- por esta rua, ó dominé
passeou o meu bem, ó domine .
Quando as granadas adormecem o vento,
um coro de anjos dentro da noite
tece o (em)canto no tempo sem tempo:
- Por essa rua, ó dominé
passeou meu bem, ó dominé
orai por mim, o dominé
e por mais alguém, ó domine.
Assim, pelas ruas,
crianças d'Angola
brincam de roda
numa perna só.
(A MENINA VÊ A CHUVA)
A menina vê a chuva
na janela e diz:
é Deus chorando.
MIRAGENS
À meia luz
escudados nos sonhos
despistaram o medo de amar
e só diante do espelho admitiram
que a nudez é um perigo
capaz de intimidar o Amor
...depois do amor a espera
sem pressa, sem dor
depois do amor
o desejo natural
de repousar entre lençóis
e continuar a loucura
que não se vê em jornais.
Escudados nos sonhos
beberam a angústia do ser
na boca molhada de suor e sexo
seguindo o infinito
neste sopro de adeus...
A CAMINHO DO HAITI TEM UMA PEDRA (*)
tem uma jangada de pedra
a caminho do Haiti
a esperança se avizinha
pois navegar é preciso
ou como diz o velho Mago
uma obrigação todos temos.
E agora, que fazer?
A caminho tem uma pedra
e uma jangada se recria
pois não há mais tempo a perder
________
(*) Fiz este poema, pensando em Carlos Drummond de Andrade, autor do poema “No meio do caminho” e empreguei o termo Mago para homenagear SaraMAGO e a sua solidariedade ao povo do Haiti.
–––––––––––––––
ESCRITURA FERIDA
à Florbela Espanca
Atiram mil pedras
na charneca em flor.
Ossos do ofício:
no mais fundo do poço
retirar o poema
encharcado de mágoas
CRAVOS DE ABRIL
Do outro lado do Atlântico
a liberdade é uma flor
a liberdade é vermelha.
Do outro lado do Atlântico
os prantos se foram
e o canto agora é de paz
à Grândola, Vila Morena
onde é possível encontrar
um amigo em cada esquina
e em cada jardim um sonho
de alegria e esperança
pois há um cravo a brotar
8 DE MARÇO
Saúdo as minhas irmãs
de suor papel e tinta
fiandeiras
tecelãs
no embalo da rede
rubra ou lilás
no mar da palavra
escrita voraz
Saúdo as minhas irmãs
fiandeiras
tecelãs
cantando uma só voz
o que nós sonhamos
o que nós plantamos
no tempo em que a nossa voz
era só silêncio
GEOGRAFIA DO POEMA
O dia deu em chuvoso
na geografia do poema.
Um corpo virou cinzas
um sonho foi desfeito
e mil povos proclamaram
— Não à violência!
A terra está sentida
de tanto sofrimento.
Na geografia do poema
as bandas tocam
“b”, ou “a”
passam na TV
os seres nus
o pátio aglomerado
o chão vermelho
onde a regra do jogo
da velha é sentença
marcada na réstia
do sol quadrado.
Pelas ruas
a tristeza dos tempos
a impossibilidade do abraço.
Crianças choram
nos corredores da morte
meninos e meninas
nos becos da fome
consomem a miséria
matéria prima
de sua sobrevivência
Nos quarteirões
dobrando a esquina
homens e mulheres
idôneos, cansados
a lastimar o destino
de esmolar o direito
dos tempos madrugados.
Se o medo se espalha
virá o silencio
e as cores sombrias
o espectro das horas
Se o medo se espalha
amargo será sempre
o verbo
No entanto
haverá manhã
e a paz cobrirá
com seus raios de luz
a rosa dos ventos.
Amanhã haverá manhã
de sol a sol festejar
o pão de cada dia
LUZ E SOMBRA
a F. Árias
Na curva do tempo
meus cabelos negros
teus cabelos brancos
teus sonhos azuis
meu retrato em branco e preto
sem tirar nem por
o desconcerto do mundo.
Mal-me-quer o tempo
assim, pelo avesso:
um barco à deriva
um campo sem flor
e o mais que imperfeito
entre Marília e Dirceu
Tristão e Isolda
Quero Paz
e o tempo me quer
na foz dos meus cabelos brancos.
Teus cabelos negros no meu dorso
são trilhas sagradas. Sou o teu refugio
argila em tuas mãos...
Beijo teu corpo febril e amanheço
Todavia quisera viver o tempo do amor
assim, mais-que-perfeito
e o que me fica
é uma esperança parda
sobrevoando o abismo da solidão atávica.
Tudo que me fica é um fio de luz
para ser mais sombra
---
Toda lua é engano
todo anjo é cruel
no abismo de eternidade
e ânsia
do corpoema
CUMPLICIDADE
Agora e pela hora da minha agonia
louvo Trindade e Jorge de Lima
cantando,
catando as duras penas, só.
– De onde vem, Solano, esta agonia?
– Vem de longe, nega, muito longe!
De Afroamérica sonhada,
lá, donde crece la palma
plantada en versos de alma,
del hombre José Martí.
– De onde vem, Solano, esta agonia?
– De muito longe, nega.
Do comecinho das coisas;
de muito longe, minha nega, muito longe...
CRIANÇAS DE ANGOLA
ao poeta angolano Arlindo Barbeitos
... e as crianças cantavam
na altura dos sonhos
o de mais sagrado:
- por esta rua, ó dominé
passeou o meu bem, ó domine .
Quando as granadas adormecem o vento,
um coro de anjos dentro da noite
tece o (em)canto no tempo sem tempo:
- Por essa rua, ó dominé
passeou meu bem, ó dominé
orai por mim, o dominé
e por mais alguém, ó domine.
Assim, pelas ruas,
crianças d'Angola
brincam de roda
numa perna só.
(A MENINA VÊ A CHUVA)
A menina vê a chuva
na janela e diz:
é Deus chorando.
MIRAGENS
À meia luz
escudados nos sonhos
despistaram o medo de amar
e só diante do espelho admitiram
que a nudez é um perigo
capaz de intimidar o Amor
...depois do amor a espera
sem pressa, sem dor
depois do amor
o desejo natural
de repousar entre lençóis
e continuar a loucura
que não se vê em jornais.
Escudados nos sonhos
beberam a angústia do ser
na boca molhada de suor e sexo
seguindo o infinito
neste sopro de adeus...
A CAMINHO DO HAITI TEM UMA PEDRA (*)
tem uma jangada de pedra
a caminho do Haiti
a esperança se avizinha
pois navegar é preciso
ou como diz o velho Mago
uma obrigação todos temos.
E agora, que fazer?
A caminho tem uma pedra
e uma jangada se recria
pois não há mais tempo a perder
________
(*) Fiz este poema, pensando em Carlos Drummond de Andrade, autor do poema “No meio do caminho” e empreguei o termo Mago para homenagear SaraMAGO e a sua solidariedade ao povo do Haiti.
–––––––––––––––
ESCRITURA FERIDA
à Florbela Espanca
Atiram mil pedras
na charneca em flor.
Ossos do ofício:
no mais fundo do poço
retirar o poema
encharcado de mágoas
CRAVOS DE ABRIL
Do outro lado do Atlântico
a liberdade é uma flor
a liberdade é vermelha.
Do outro lado do Atlântico
os prantos se foram
e o canto agora é de paz
à Grândola, Vila Morena
onde é possível encontrar
um amigo em cada esquina
e em cada jardim um sonho
de alegria e esperança
pois há um cravo a brotar
8 DE MARÇO
Saúdo as minhas irmãs
de suor papel e tinta
fiandeiras
tecelãs
no embalo da rede
rubra ou lilás
no mar da palavra
escrita voraz
Saúdo as minhas irmãs
fiandeiras
tecelãs
cantando uma só voz
o que nós sonhamos
o que nós plantamos
no tempo em que a nossa voz
era só silêncio
GEOGRAFIA DO POEMA
O dia deu em chuvoso
na geografia do poema.
Um corpo virou cinzas
um sonho foi desfeito
e mil povos proclamaram
— Não à violência!
A terra está sentida
de tanto sofrimento.
Na geografia do poema
as bandas tocam
“b”, ou “a”
passam na TV
os seres nus
o pátio aglomerado
o chão vermelho
onde a regra do jogo
da velha é sentença
marcada na réstia
do sol quadrado.
Pelas ruas
a tristeza dos tempos
a impossibilidade do abraço.
Crianças choram
nos corredores da morte
meninos e meninas
nos becos da fome
consomem a miséria
matéria prima
de sua sobrevivência
Nos quarteirões
dobrando a esquina
homens e mulheres
idôneos, cansados
a lastimar o destino
de esmolar o direito
dos tempos madrugados.
Se o medo se espalha
virá o silencio
e as cores sombrias
o espectro das horas
Se o medo se espalha
amargo será sempre
o verbo
No entanto
haverá manhã
e a paz cobrirá
com seus raios de luz
a rosa dos ventos.
Amanhã haverá manhã
de sol a sol festejar
o pão de cada dia
LUZ E SOMBRA
a F. Árias
Na curva do tempo
meus cabelos negros
teus cabelos brancos
teus sonhos azuis
meu retrato em branco e preto
sem tirar nem por
o desconcerto do mundo.
Mal-me-quer o tempo
assim, pelo avesso:
um barco à deriva
um campo sem flor
e o mais que imperfeito
entre Marília e Dirceu
Tristão e Isolda
Quero Paz
e o tempo me quer
na foz dos meus cabelos brancos.
Teus cabelos negros no meu dorso
são trilhas sagradas. Sou o teu refugio
argila em tuas mãos...
Beijo teu corpo febril e amanheço
Todavia quisera viver o tempo do amor
assim, mais-que-perfeito
e o que me fica
é uma esperança parda
sobrevoando o abismo da solidão atávica.
Tudo que me fica é um fio de luz
para ser mais sombra
---
Nenhum comentário:
Postar um comentário