Logo depois Dona Sintaxe disse:
— Vou agora mostrar a vocês os vícios DE LINGUAGEM.
— Quê?! Andam soltos pela cidade, esses monstros?
— Não, menina. Os Vícios, eu os conservo em jaulas, como feras perigosas. Vamos vê-los.
A grande dama tomou a frente e os meninos a acompanharam até a uma cadeia com grades nas janelas e toda dividida em cubículos, também gradeados. Dentro desses cubículos estavam O BARBARISMO, O SOLECISMO, a ANFIBOLOGIA, a OBSCURIDADE, O CACÓFATO, O ECO, O HIATO, a COLISÃO, O ARCAÍSMO, O NEOLOGISMO e O PROVINCIANISMO.
Pedrinho notou que havia ainda um cubículo sem nenhuma fera dentro.
— E o Vício aqui desta gaiola?
— Esse já se reabilitou e anda solto pela cidade nova. Só não tem licença de aparecer na cidade velha.
— Quem era ele?
— O BRASILEIRISMO. . .
Emília espiou para dentro do primeiro cubículo, onde um monstro cabeludo estava a roer as unhas. Era o BARBARISMO.
— Que mal faz ao mundo este "cara-de-coruja"? — perguntou ela.
— Gosta de fazer as pessoas errarem estupidamente na pronúncia e no modo de escrever as palavras. Sempre que você ouvir alguém dizer poribir em vez de proibir, sastifeito em vez de satisfeito, púdico em vez de pudico, percurar ou percisa em vez de procurar ou precisa, saiba que é por causa deste cretino. Emília passou ao cubículo imediato, onde havia outro "cara-de-coruja" ainda mais feio.
— E este? — perguntou.
— Este é o tal SOLECISMO, outro idiota que faz muito mal à língua. Quando uma pessoa diz: Haviam muitas moças na festa, em vez de Havia muitas moças, está cometendo um Solecismo. Fui na cidade em vez de Fui à cidade, Vi ele na rua, em vez de Vi-o na rua, Não vá sem eu, em vez de Não vá sem mim, são outras tantas "belezas" que saem da cachola deste imbecil.
Emília botou-lhe a língua e passou ao terceiro cubículo. Viu lá dentro um vulto de mulher com duas caras.
— E esta "bicarada"? — perguntou.
— Esta é a ANFIBOLOGIA, que faz muita gente dizer frases de sentido duplo, ou duvidoso, como: Ele matou-a em sua casa. Em casa de quem, dele ou dela? Quem ouve fica na dúvida, porque a matança tanto pode ter sido na casa do matador como da matada.
Emília passou a espiar o quarto cubículo, onde estava presa uma negra muito feia, preta que nem carvão.
— E esta pretura? — perguntou.
— Esta é a OBSCURIDADE, que faz muita gente dizer frases sem nenhuma clareza, dessas que deixam quem as ouve na mesma.
Emília passou ao quimo cubículo, onde viu um sujeito sujo e de cara cínica.
— E este porcalhão?
— Este é o CACÓFATO, que faz muita gente ligar palavras de modo a formar outras de sentido feio, como aquele sujeito que ouviu no teatro uma grande cantora e foi dizer a um amigo: Ela trina que nem um sabiá. . .
Emília tapou o nariz e dirigiu-se ao sexto cubículo, onde estava um maluco muito barulhento.
— E este, com cara de cachorro? — indagou.
— Este é o ECO, que faz muita gente formar frases cheias de latidos, ou com desagradável repetição de sons. Quem diz: O pão de sabão caiu no chão late três vezes numa só frase, tudo por causa desta bisca.
Emília passou ao sétimo cubículo, onde havia um freguês com cara de gago.
— E este pandorga? — perguntou.
— Este é o HIATO, que faz muita gente formar frases com acentuação incômoda para os ouvidos. Quem diz: A aula é lá fora está sendo vítima deste Senhor Hiato.
Emília passou ao oitavo cubículo, onde estava presa uma mulher, toda requebrada.
— E esta ciciosa? — perguntou.
— Esta é a COLISÃO, que faz muita gente dizer frases cheias de consonâncias desagradáveis. Zumbindo as asas azuis é uma frase com o vício da Colisão.
Emília passou ao nono cubículo, onde estava um velho de cabelos brancos, todo coberto de teias de aranha.
— Este Matusalém?
— Este é o ARCAÍSMO, que faz muita gente pedante usar palavras que já morreram há muito tempo e que, portanto, ninguém mais entende.
—Já estive no bairro das palavras Arcaicas e travei conhecimento com algumas — observou Narizinho. — Mas por que está preso o pobre velho? Ele não tem culpa de haver palavras arcaicas.
— Mas tem culpa de botar essas velhas corocas nas frases modernas. Para que não faça isso é que está encarcerado.
Emília passou ao décimo cubículo, onde estava preso um moço muito pernóstico.
— E este aqui, tão chique? — perguntou.
— Este é o NEOLOGISMO. Sua mania é fazer as pessoas usarem expressões novas demais, e que pouca gente entende.
Emília, que era grande amiga de Neologismos, protestou.
— Está aí uma coisa com a qual não concordo. Se numa língua não houver Neologismos, essa língua não aumenta. Assim como há sempre crianças novas no mundo, para que a humanidade não se acabe, também é preciso que haja na língua uma contínua entrada de Neologismos. Se as palavras envelhecem e morrem, como já vimos, e se a senhora impede a entrada de palavras novas, a língua acaba acabando. Não! Isso não está direito e vou soltar este elegantíssimo Vício, já e já. . .
— Não mexa, Emília! — gritou Narizinho. — Não mexa na Língua, que vovó fica danada. . .
— Mexo e remexo! — replicou a boneca batendo o pezinho, e foi e abriu a porta e soltou o Neologismo, dizendo: — Vá passear entre os vivos e forme quantas palavras novas quiser. E se alguém tentar prendê-lo, grite por mim, que mandarei o meu rinoceronte em seu socorro. Quero ver quem pode com o Quindim. . .
Dona Sintaxe ficou um tanto passada com aquele rompante da Emília, mas nada disse. Quindim estava perto, de chifre pronto para entrar em cena ao menor sinal da boneca. . .
— Como está ficando despótica — murmurou a menina para Pedrinho. — Ainda acaba fazendo uma revolução e virando ditadora. . .
— É de tanta ganja que vocês lhe dão — observou o menino com uma ponta de inveja.
Emília encaminhou-se para o último cubículo, onde estava preso um pobre homem da roça, a fumar o seu cigarrão de palha.
— E este pai da vida que aqui está de cócoras? — perguntou ela.
— Este é o PROVINCIANISMO, que faz muita gente usar termos só conhecidos em certas partes do país, ou falar como só se fala em certos lugares. Quem diz naviu, menino, mecê, nhô, etc. está cometendo Provincianismos.
Emília não achou que fosse caso de conservar na cadeia o pobre matuto. Alegou que ele também estava trabalhando na evolução da língua e soltou-o.
— Vá passear, Seu Jeca. Muita coisa que hoje esta senhora condena vai ser lei um dia. Foi você quem inventou o Você em vez de Tu e só isso quanto não vale? Estamos livres da complicação antiga do Tuturututu. Mas não se meta a exagerar, senão volta para cá outra vez, está ouvindo?
O Provincianismo agarrou a trouxinha, o pito, o fumo e as palhas e, limpando o nariz com as costas da mão, lá se foi, fungando. Tão bobo, o coitado, que nem teve a idéia de agradecer à sua libertadora.
— Não há mais nenhum? — perguntou Emília logo que o Jeca se afastou.
— Felizmente, não — respondeu Dona Sintaxe. — Estes já bastam para me deixar tonta.
Terminada a visita aos Vícios de Linguagem, os meninos ficaram sem saber para onde ir.
— Esperem! íamo-nos esquecendo do Visconde. Temos de continuar na "campeação" dele — disse Emília, mordendo o lábio e olhando firme para a Sintaxe, a ver que cara ela faria diante daquela "campeação".
— Isso depois — opinou Pedrinho. — Estou com vontade agora de ver como as Orações se formam.
— Pois vamos a isso — concordou Dona Sintaxe. — Há aqui perto um jardim muito freqüentado pelas Senhoras Orações.
— Quem são essas damas?
— São frases que formam sentido, ou que dizem uma coisa que a gente entende.
— E a frase que não forma sentido? — perguntou Emília.
— Isso não é nada. É bobagem. . . — respondeu Dona Sintaxe, afastando-se dali.
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Continua ... Capítulo XXII: As Orações ao Ar Livre
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. SP: Círculo do Livro. Digitalizado por http://groups.google.com/group/digitalsource
— Vou agora mostrar a vocês os vícios DE LINGUAGEM.
— Quê?! Andam soltos pela cidade, esses monstros?
— Não, menina. Os Vícios, eu os conservo em jaulas, como feras perigosas. Vamos vê-los.
A grande dama tomou a frente e os meninos a acompanharam até a uma cadeia com grades nas janelas e toda dividida em cubículos, também gradeados. Dentro desses cubículos estavam O BARBARISMO, O SOLECISMO, a ANFIBOLOGIA, a OBSCURIDADE, O CACÓFATO, O ECO, O HIATO, a COLISÃO, O ARCAÍSMO, O NEOLOGISMO e O PROVINCIANISMO.
Pedrinho notou que havia ainda um cubículo sem nenhuma fera dentro.
— E o Vício aqui desta gaiola?
— Esse já se reabilitou e anda solto pela cidade nova. Só não tem licença de aparecer na cidade velha.
— Quem era ele?
— O BRASILEIRISMO. . .
Emília espiou para dentro do primeiro cubículo, onde um monstro cabeludo estava a roer as unhas. Era o BARBARISMO.
— Que mal faz ao mundo este "cara-de-coruja"? — perguntou ela.
— Gosta de fazer as pessoas errarem estupidamente na pronúncia e no modo de escrever as palavras. Sempre que você ouvir alguém dizer poribir em vez de proibir, sastifeito em vez de satisfeito, púdico em vez de pudico, percurar ou percisa em vez de procurar ou precisa, saiba que é por causa deste cretino. Emília passou ao cubículo imediato, onde havia outro "cara-de-coruja" ainda mais feio.
— E este? — perguntou.
— Este é o tal SOLECISMO, outro idiota que faz muito mal à língua. Quando uma pessoa diz: Haviam muitas moças na festa, em vez de Havia muitas moças, está cometendo um Solecismo. Fui na cidade em vez de Fui à cidade, Vi ele na rua, em vez de Vi-o na rua, Não vá sem eu, em vez de Não vá sem mim, são outras tantas "belezas" que saem da cachola deste imbecil.
Emília botou-lhe a língua e passou ao terceiro cubículo. Viu lá dentro um vulto de mulher com duas caras.
— E esta "bicarada"? — perguntou.
— Esta é a ANFIBOLOGIA, que faz muita gente dizer frases de sentido duplo, ou duvidoso, como: Ele matou-a em sua casa. Em casa de quem, dele ou dela? Quem ouve fica na dúvida, porque a matança tanto pode ter sido na casa do matador como da matada.
Emília passou a espiar o quarto cubículo, onde estava presa uma negra muito feia, preta que nem carvão.
— E esta pretura? — perguntou.
— Esta é a OBSCURIDADE, que faz muita gente dizer frases sem nenhuma clareza, dessas que deixam quem as ouve na mesma.
Emília passou ao quimo cubículo, onde viu um sujeito sujo e de cara cínica.
— E este porcalhão?
— Este é o CACÓFATO, que faz muita gente ligar palavras de modo a formar outras de sentido feio, como aquele sujeito que ouviu no teatro uma grande cantora e foi dizer a um amigo: Ela trina que nem um sabiá. . .
Emília tapou o nariz e dirigiu-se ao sexto cubículo, onde estava um maluco muito barulhento.
— E este, com cara de cachorro? — indagou.
— Este é o ECO, que faz muita gente formar frases cheias de latidos, ou com desagradável repetição de sons. Quem diz: O pão de sabão caiu no chão late três vezes numa só frase, tudo por causa desta bisca.
Emília passou ao sétimo cubículo, onde havia um freguês com cara de gago.
— E este pandorga? — perguntou.
— Este é o HIATO, que faz muita gente formar frases com acentuação incômoda para os ouvidos. Quem diz: A aula é lá fora está sendo vítima deste Senhor Hiato.
Emília passou ao oitavo cubículo, onde estava presa uma mulher, toda requebrada.
— E esta ciciosa? — perguntou.
— Esta é a COLISÃO, que faz muita gente dizer frases cheias de consonâncias desagradáveis. Zumbindo as asas azuis é uma frase com o vício da Colisão.
Emília passou ao nono cubículo, onde estava um velho de cabelos brancos, todo coberto de teias de aranha.
— Este Matusalém?
— Este é o ARCAÍSMO, que faz muita gente pedante usar palavras que já morreram há muito tempo e que, portanto, ninguém mais entende.
—Já estive no bairro das palavras Arcaicas e travei conhecimento com algumas — observou Narizinho. — Mas por que está preso o pobre velho? Ele não tem culpa de haver palavras arcaicas.
— Mas tem culpa de botar essas velhas corocas nas frases modernas. Para que não faça isso é que está encarcerado.
Emília passou ao décimo cubículo, onde estava preso um moço muito pernóstico.
— E este aqui, tão chique? — perguntou.
— Este é o NEOLOGISMO. Sua mania é fazer as pessoas usarem expressões novas demais, e que pouca gente entende.
Emília, que era grande amiga de Neologismos, protestou.
— Está aí uma coisa com a qual não concordo. Se numa língua não houver Neologismos, essa língua não aumenta. Assim como há sempre crianças novas no mundo, para que a humanidade não se acabe, também é preciso que haja na língua uma contínua entrada de Neologismos. Se as palavras envelhecem e morrem, como já vimos, e se a senhora impede a entrada de palavras novas, a língua acaba acabando. Não! Isso não está direito e vou soltar este elegantíssimo Vício, já e já. . .
— Não mexa, Emília! — gritou Narizinho. — Não mexa na Língua, que vovó fica danada. . .
— Mexo e remexo! — replicou a boneca batendo o pezinho, e foi e abriu a porta e soltou o Neologismo, dizendo: — Vá passear entre os vivos e forme quantas palavras novas quiser. E se alguém tentar prendê-lo, grite por mim, que mandarei o meu rinoceronte em seu socorro. Quero ver quem pode com o Quindim. . .
Dona Sintaxe ficou um tanto passada com aquele rompante da Emília, mas nada disse. Quindim estava perto, de chifre pronto para entrar em cena ao menor sinal da boneca. . .
— Como está ficando despótica — murmurou a menina para Pedrinho. — Ainda acaba fazendo uma revolução e virando ditadora. . .
— É de tanta ganja que vocês lhe dão — observou o menino com uma ponta de inveja.
Emília encaminhou-se para o último cubículo, onde estava preso um pobre homem da roça, a fumar o seu cigarrão de palha.
— E este pai da vida que aqui está de cócoras? — perguntou ela.
— Este é o PROVINCIANISMO, que faz muita gente usar termos só conhecidos em certas partes do país, ou falar como só se fala em certos lugares. Quem diz naviu, menino, mecê, nhô, etc. está cometendo Provincianismos.
Emília não achou que fosse caso de conservar na cadeia o pobre matuto. Alegou que ele também estava trabalhando na evolução da língua e soltou-o.
— Vá passear, Seu Jeca. Muita coisa que hoje esta senhora condena vai ser lei um dia. Foi você quem inventou o Você em vez de Tu e só isso quanto não vale? Estamos livres da complicação antiga do Tuturututu. Mas não se meta a exagerar, senão volta para cá outra vez, está ouvindo?
O Provincianismo agarrou a trouxinha, o pito, o fumo e as palhas e, limpando o nariz com as costas da mão, lá se foi, fungando. Tão bobo, o coitado, que nem teve a idéia de agradecer à sua libertadora.
— Não há mais nenhum? — perguntou Emília logo que o Jeca se afastou.
— Felizmente, não — respondeu Dona Sintaxe. — Estes já bastam para me deixar tonta.
Terminada a visita aos Vícios de Linguagem, os meninos ficaram sem saber para onde ir.
— Esperem! íamo-nos esquecendo do Visconde. Temos de continuar na "campeação" dele — disse Emília, mordendo o lábio e olhando firme para a Sintaxe, a ver que cara ela faria diante daquela "campeação".
— Isso depois — opinou Pedrinho. — Estou com vontade agora de ver como as Orações se formam.
— Pois vamos a isso — concordou Dona Sintaxe. — Há aqui perto um jardim muito freqüentado pelas Senhoras Orações.
— Quem são essas damas?
— São frases que formam sentido, ou que dizem uma coisa que a gente entende.
— E a frase que não forma sentido? — perguntou Emília.
— Isso não é nada. É bobagem. . . — respondeu Dona Sintaxe, afastando-se dali.
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Continua ... Capítulo XXII: As Orações ao Ar Livre
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. SP: Círculo do Livro. Digitalizado por http://groups.google.com/group/digitalsource
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