sábado, 18 de dezembro de 2010

Monteiro Lobato (Emília no País da Gramática) Capítulo XXIV: E o Visconde?

Tornava-se preciso descobrir o Visconde. A sua misteriosa "sumição", como dizia a boneca, vinha preocupando a todos seriamente. As informações obtidas eram poucas e vagas. O vigia da Senhora Anticonstitucionalissimamente contara que o tinha visto por lá com um Ditongo debaixo do capote, a espernear. Uma das Frases que tomavam sol no Jardim das Orações também dissera que ele havia raptado um Ditongo. E foi só. Nada mais conseguiram colher.

— Um Ditongo! — murmurava Emília com ruguinhas na testa. — Raptou um Ditongo!. . . Mas para quê, Santo Deus? Com que fim? Há em tudo isto um grande mistério. . .

— Com certeza trata-se dalgum Ditongo arcaico, que ele furtou levado pela sua mania de antiguidades — sugeriu Pedrinho.

— Não há Ditongos Arcaicos — disse Quindim.

O remédio era um só — irem ao bairro das Sílabas, que é onde moram os Ditongos.

— Pois vamos — decidiu Narizinho.

Foram — e montados em Quindim por ser meio longinho. Ao alcançar o bairro o rinoceronte parou a fim de orientar-se.

— É aqui mesmo — disse ele, vendo as ruas cheias de Sílabas, num ir e vir constante. — Mas onde será a Rua dos Ditongos?

— Melhor indagar — lembrou a menina, e, chamando uma silabazinha muito curica que ia passando, disse: — A senhorita poderá informar-nos onde fica a Rua dos Ditongos?

— Com todo gosto — respondeu a lambetinha na sua voz de formiga. — Fica nesta direção, três quadras à esquerda.

Quindim trotou para lá.

— É aqui :— disse ele, ao penetrar numa rua onde só existiam Sílabas formadas de duas Vogais. — Os Ditongos são estes.

— Quê! — exclamou Narizinho, surpresa. — Ditongo, uma palavra tão gorda, quer dizer só isso — sílaba de duas vogais? Pensei que fosse coisa mais importante. . .

— Pois, menina, os gramáticos não tiveram dó de gastar um quilo de grego para classificar estas minúsculas silabazinhas. Eles dividem-nas em DITONGOS, SEMIDITONGOS, TRITONGOS e MONOTONGOS.

Todos se riram daquele grande luxo "nomenclástico", como talvez dissesse a boneca, se não continuasse absorta em profundas cogitações.

— Emília está "deduzindo!" — murmurou a menina ao ouvido de Quindim. — Quando lhe dá o sherlockismo, ninguém conte com ela.

— Havia por ali duas espécies de Ditongos — os ORAIS, que só se pronunciam com a boca, e os NASAIS, em que o som sai também pelo nariz, AI, AU, EI, EU, IU, OU, OI, UE e ui eram os Orais, ÃE, AM, EM, ÕE eram os Nasais. Mas Quindim, que conhecia todos os Ditongos de cor e salteado, estranhou não ver entre eles o mais importante de todos — o Ão.

"Querem ver que o Visconde raptou o Ão?", refletiu, lá consigo, o paquiderme.

Os meninos notaram uma certa agitação entre os Ditongos. Evidentemente havia sucedido qualquer coisa grave. Andavam de cá para lá, escabichando os cantinhos e informando-se uns com os outros, na atitude clássica de quem procura objeto perdido.

Emília entrou em cena. Agarrou um dos Ditongos Nasais pelo til e pousou-o na palminha da mão. Era o Ditongo ÕE. — Diga-me, ditonguinho, que foi que houve por aqui? Noto uma certa agitação entre vocês, como em formigueiro de saúva em dia que sai içá.

— De fato, estamos agitados — respondeu o ditonguinho. — Um dos meus manos, o Ão, que era justamente o mais importante da família, desapareceu misteriosamente. Temo-lo procurado por toda parte, mas sem resultado. Sumiu. . .

— Quem sabe se alguém o raptou? — sugeriu a boneca.

— Impossível! Que alguém haverá no mundo que queira um Ditongo Nasal? Nós só servimos para formar palavras; não temos outra função na vida, e nenhuma casa de ferro velho daria um vintém por todos nós juntos.

— Espere — disse Emília, refletindo. — Diga-me uma coisa: Não andou por aqui um filósofo de fora, sem cartolinha na cabeça e com umas palhas de milho ao pescoço?

— Andou, sim. Um sábio um tanto embolorado, não é?

— Isso mesmo! Bolor verde. . .

— Esteve cá, sim. Esteve de prosa conosco e depois desapareceu. Foi logo em seguida que demos pela falta do Ão. A senhora acha que. . .

— Mais que acho! Sei que foi ele quem raptou o Ditongo. O que não consigo achar é a explicação de semelhante coisa. Esse sábio é o grande Visconde de Sabugosa, que mora no sítio de Dona Benta. O guarda da Senhora Anticonstitucionalissimamente me disse que o viu com um Ditongo debaixo do capote; e mais tarde uma Frase, lá no Jardim das Orações, também nos declarou positivamente que o Visconde havia raptado um Ditongo.

— Ora veja!. . . — exclamou o ditonguinho arregalando os olhos. — Mas, para quê? Para que um tão ilustre sábio quererá um Ditongo? ..

É o que me preocupa — disse Emília, recaindo em cismas.

O mistério do sumiço do Visconde continuava a embaraçar os meninos. Teria sido preso como gatuno? Teria sido assassinado? Teria voltado para o sítio com o Ditongo no bolso? Mistério. . .

— Se houvesse por aqui um jornal, poderíamos pôr um anúncio: "Perdeu-se um Visconde assim, assim; dá-se boa gratificação a quem o achar".

— Mas não existe jornal, e é tolice ficarmos toda a vida a campeá-lo. Vamos esquecer o Visconde. Olhem que ainda temos de visitar a Senhora Ortografia.

Foi resolvido esquecerem o Visconde e visitarem a Senhora Ortografia. Montaram de novo em Quindim e partiram. A meio caminho Emília bateu na testa.

— Heureca! Achei! Achei!... Já descobri tudo! Já descobri a razão do "delito" do Visconde. . .

Todos se voltaram para ela.

— O Visconde — explicou Emília — sofre do coração, como vocês muito bem sabem, e por isso se assusta com as palavras que trazem o tal Ditongo Ão. O coitado assusta-se como se o Ão fosse um tiro, ou um latido de cachorro bravo. . .

— É verdade! — confirmou Narizinho. — Lembro-me que uma vez ele levou um grandíssimo tombo, quando Tia Nastácia berrou da cozinha para o camarada do compadre Teodorico, que ia para a cidade: "Seo Chico, não esqueça de me trazer da venda um pão de sabão!" Aquele "pão de sabão" berrado foi o mesmo que dois tiros de espingarda de dois canos no coraçãozinho do Visconde, que estava distraído lendo a sua álgebra. O coitado caiu de costas. Lembro-me perfeitamente disso. . . ele até andou de coranchim machucado uma porção de dias.

— Pois é — concluiu a boneca, radiante. — O Visconde raptou esse Ditongo para livrar a língua de todas as palavras que dão tiros, ou que latem como cachorro bravo. . .

— E fez muito bem — disse Quindim. — O maior defeito que acho nesta língua portuguesa é esse latido de cachorro, que a gente não encontra em nenhuma outra língua viva. Até a mim, que sou bicho africano, o Ão me assustava no começo. Trazia-me a idéia de latido de cães de caça, seguidos de homens armados de carabinas. . .

Como fosse ali o bairro ortográfico, Narizinho propôs que se procurasse a pessoa que tomava conta da zona.

— Quem sabe se ela sabe onde está o Visconde? — sugeriu.

— Pode ser, mas duvido muito — disse Emília. — O Visconde ou está na cadeia, como gatuno, ou está no cemitério, enterrando o coitadinho do Ditongo. Eu bem que compreendo a idéia dele. E se ele fizer isso, vai haver a maior das atrapalhações na língua. Sem o Ão como é que a gente se arruma para , comprar um Pão? Fica Pao. . . E Sabão fica Sabao. . . E Ladrão fica Ladrao. . . Atrapalha a língua completamente. . .
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Continua ... Capítulo XXV: Passeio Ortográfico
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. SP: Círculo do Livro. Digitalizado por http://groups.google.com/group/digitalsource

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