sábado, 11 de dezembro de 2010

Monteiro Lobato (Emília no País da Gramática) Capítulo XVII: O Susto da Velha

Dona Etimologia ficou uns instantes a olhar para a boneca, balançando a cabeça. Depois continuou:

— Pois é isso. Substantivos, Adjetivos, Preposições, Conjunções e Interjeições podem ser formados sem a ajuda dos Sufixos, e sim com o emprego duma mesma palavra, mas dando a ela um sentido diferente. O Substantivo Narizinho, por exemplo, que é um simples Diminutivo, pode tornar-se Nome Próprio, como aconteceu aqui com esta menina. Chama-se Narizinho e, portanto, quem diz este nome está dizendo um Nome Próprio. Na frase: O narizinho de Narizinho é arrebitado, o primeiro narizinho é Substantivo Comum, e o segundo é Nome Próprio.

O mesmo se dá com a avó dela, Dona Benta de Oliveira. Oliveira era uma árvore que dava azeitonas; com o tempo o uso mudou esse Substantivo Comum em Nome Próprio, muito empregado para Sobrenomes — e ficaram no mundo duas espécies de Oliveiras — a que dá azeitonas e a que dá Sobrenomes a muita gente.

— É mesmo! — gritou o menino. — Agora estou vendo que a maior parte dos Nomes Próprios que conheço são Nomes Comuns "apropriados", que, em vez de designarem coisas, passaram a designar pessoas, como Leitão, Inocente, Rosa, Margarida, Esperança, Monteiro, Lobato, Quindim. . .

— Do mesmo modo, muitos Adjetivos viram Substantivos, sem nenhuma mudança de forma — continuou a velha. — Brilhante, por exemplo, é um Adjetivo Qualificativo da coisa que brilha, mas se se refere ao diamante lapidado, vira Substantivo.

O mesmo se dá com certos Pronomes, como o Pronome Tudo, que vira Substantivo na frase: O tudo é vencer. Também há pessoas de Verbo que viram Substantivos. Venda, que é a primeira e a terceira Pessoa do Presente do Modo Subjuntivo do Verbo Vender, vira o Substantivo Venda, com significação de ato de vender ou casa onde se vendem coisas.

— Na venda do João Nagib, lá perto do sítio, quase que só há pinga, fósforo, bacalhau e sal. . . Que venda à-toa! — recordou Emília. — Nem bala de apito tem. Dona Benta não gosta que os meninos passem por lá.

— Pare com isso, Emília, que você até envergonha a espécie — advertiu Narizinho. — Continue, Dona Etimologia, faça o favor.

E a velha continuou:

— E também Advérbios e outras Palavras Inflexivas viram Substantivos. Quando uma pessoa diz: A metade do queijo, o Advérbio Metade está virando em Substantivo.

E também Substantivos viram Adjetivos, como nesta frase: Nova Iorque é uma cidade monstro. O Substantivo Monstro está nesta frase fazendo o papel de Adjetivo para indicar enormidade.

E também Substantivos viram Interjeições, como nesta frase. . . Socorro! Uma fera africana acaba de invadir minha casa!. . .

— Que cara feia ela está fazendo! — murmurou Narizinho, que não havia notado o súbito aparecimento do rinoceronte no fundo da sala.

— Socorro! — continuou a velha a berrar, no maior pavor da sua vida. — Acudam-me!. . .

Só então os meninos perceberam que ela não estava dando nenhum exemplo, e sim urrando de pavor. Puseram-se a rir — e isso ainda mais aumentou o pânico da velha, que supôs ser riso nervoso, desses que atacam certas pessoas quando o perigo é do tamanho duma torre.

— Não se assuste, Dona Eulália! — gritou Emília. — Este paquiderme é mansíssimo, e até se chama Quindim, nome dum doce muito delicado. Medo de Quindim? Que bobagem! É a melhor criatura do mundo. Uma perfeita moça. Quer ver?

— E Emília correu para o rinoceronte, sobre o qual trepou pela escadinha de corda que ele trazia pendente no costado — invenção de Pedrinho para facilitar a "montagem" do paquiderme, como ele dizia. A boneca deu jeito e logo se plantou, muito a cômodo, sobre o terrível chifre de Quindim.

Está vendo, Dona Brites? Poderá haver monstro mais carneiro? Venha também. Não se vexe. Lá no sítio, Dona Benta e Tia Nastácia, quando não há gente grande perto para espiar, não saem do lombo de Quindim. Venha. Deixe-se de fedorências. . .

Mas não houve meio. Dona Etimologia era a maior das medrosas, e para acalmá-la foi preciso que o Visconde afastasse dali o excelente paquiderme.

A pobre velha queixou-se de sufocação no peito e teve de tomar um bule inteiro de chá calmante.

— Ufa! Que susto! Enfim. . . Mas como ia dizendo. . . Que é que eu ia dizendo?. . . Sim, que as palavras derivam umas das outras de dois modos. Mas ele não chifra ninguém lá no tal sítio?

— Nem mosquito — respondeu Emília. — Juro pela alma do Visconde.

A velha assoprou três vezes.

— Mas como ia dizendo, a Derivação das palavras faz-se por meio de Sufixos e Prefixos. Já falei nos Prefixos?

— Um pouquinho só — disse Pedrinho.

— Pois os tais Prefixos são palavrinhas da mesma família que os Sufixos, mas que se colocam na frente. Isso de servir de cauda é especialidade dos Sufixos. Existem numerosos Prefixos, mas como estou muito nervosa, vou citar apenas alguns, como Sub, Intro, Ver, Sus, Com, os quais servem para formar palavras como Subdividir, Intrometer, Percorrer, Sustento, Compadre, etc. Uf! Que bicho horrendo! Aquele chifre pontudo no meio da testa. . .

— Continue, dona! — berrou Emília. — Esqueça duma vez o fanico. Já está enjoando.

A velha assoprou de novo, suspirou e disse:

— Há ainda a formação de palavras por JUSTAPOSIÇÃO, quando duas palavras se ligam para exprimir uma terceira coisa. Guarda e Chuva, por exemplo, têm o sentido que vocês sabem; mas quando se justapõem, dão a palavra Guarda-chuva, que é coisa diferente, Bem-te-vi, Beija-flor, Corrimão, Pica-pau, Girassol e tantas outras, são formadas deste modo.

— Saca-rolhas, Aguardente e Lambe-pratos, também — começou Emília, mas Narizinho impôs-lhe silêncio e a velha prosseguiu.

— Há ainda a formação de palavras por AGLUTINAÇÃO, na qual uma das palavras perde um pedacinho para melhor fundir-se com outras, como essa Aguardente que Emília acaba de citar. Se houvesse apenas Justaposição, ficaria Aguaardente; mas a Aglutinação faz que desapareça um dos AA.

E há, finalmente, a formação de palavras por HIBRIDISMO, em que entram vocábulos de línguas diferentes, como em Monóculo. Mono é palavra grega que quer dizer Um, ou Único; e Óculo é palavra latina.

— Lá no sítio de Dona Benta — lembrou Emília — Mono quer dizer macacão. O Tio Barnabé, que mora perto da ponte, Dona Benta diz que é um verdadeiro mono.

— Sei disso — declarou a velha, rindo-se —, mas em grego Mono significa único.

— Único macacão?

— Cale-se, Emília, por favor! — pediu a menina.

A velha continuou:

— Se vocês quiserem visitar as palavras gregas usadas para a formação de vocábulos novos, espiem aquele cercado de arame. Lá estão todas.

Os meninos correram ao ponto indicado, que era o curral onde a velha conservava as suas palavras gregas.

— Xi!. . . Quantas!... — exclamou Narizinho. — E todas com papeleta no pescoço, para mostrar o que querem dizer em português.

Estavam lá, entre muitas, as seguintes greguinhas: Geo (terra), que serve para formar Geografia, Geologia, Geometria, Geodésia, etc. E Micro (pequeno), que serve para formar Micróbio, Microscópio, etc. E Tri (três), que serve para formar Trigonometria, Trilogia, etc. E Zoo (animal), que serve para formar Zoologia, Zootecnia, etc. E Pan (tudo), que serve para formar Panteísmo, Panorama, etc. E Bio (vida), que serve para formar Biologia, Biografia, etc. E Rino (nariz), que serve para formar Rinoceronte.

— Ora vejam só! — berrou Emília. — Quindim chama-se rinoceronte por causa do nariz. Rino é nariz. E Ceronte? Que será Ceronte? Veja se acha essa palavra aí do seu lado, Narizinho.

Custou um pouco, mas acharam. Ceronte queria dizer chifre.

— Pronto! — gritou Emília, radiante. — Rinoceronte significa nariz no chifre.

— Ou chifre no nariz? — objetou Narizinho. — A tradução na ordem direta não dá certo, porque na realidade Quindim não tem nenhum nariz no chifre.

Emília mostrava-se cheiíssima de si com as muitas coisas novas que ia aprendendo, e passou por lá mais de uma hora decorando palavras gregas para com elas formar outras diferentes. Súbito, gritou:

— Já sei o seu nome em grego, Narizinho.

— Como é?

— Microrrino! Micro quer dizer pequeno, e Rino quer dizer nariz. Nariz pequeno é narizinho. . .

— Mas por que chamam híbridas a estas palavras feitas só do grego? — indagou o menino. — Híbrido, que eu sei, é o burro e a mula, filhos de jumento e égua. Será que estas palavras são as mulas da língua? Vou perguntar à velha.

Perguntou, e Dona Etimologia explicou que Híbrido queria dizer Mestiço de duas raças diferentes.

— Então aquelas palavras do cercado não são Híbridas, e sim de puro sangue.

— Perfeitamente — concordou a velha. — Um verdadeiro vocábulo Híbrido é o Monóculo, que já citei; como também Centímetro e Mineralogia, porque nos três casos metade da palavra é grega e outra metade é latina. Estas, sim, são as verdadeiras mulas da língua.

Emília juntou uma porção de palavras gregas e latinas para fazer lá no sítio uma criação de palavras Híbridas. Entre elas levou Demo, que significa Povo; Odonto, que significa Dente; Tele, que significa Longe; Topo, que significa Lugar; Fono, que significa Voz — todas gregas.

— Levo estas só — disse ela. — Palavras latinas temos lá muitas, naquele dicionário grandão de Dona Benta. Com estas já podemos fazer uma criação de Híbridos de primeira ordem.

Pedrinho não quis ficar atrás e levou mais as seguintes, também gregas: Gastro, que significa Ventre; ídolo, que significa Imagem; Miso, que significa Ódio; Di, que significa Dois; Tetra, que significa Quatro — e mais umas quantas.

— Quero ver quem cria Híbridos mais bonitos, se você ou eu — disse ele.
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Continua ... Capítulo XVIII: Gente de Fora
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. SP: Círculo do Livro. Digitalizado por http://groups.google.com/group/digitalsource

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