quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Abgar Renault (Antologia Poética)


ENCANTAMENTO

Ante o deslumbramento do teu vulto,
sou ferido de atônita surpresa
e vejo que uma auréola de beleza
dissolve em luar a treva em que me oculto.

Estás em cada reza do meu culto,
sonhas na minha lânguida tristeza
e, disperso por toda a natureza,
paira o deslumbramento do teu vulto.

E' tua vida minha própria vida
e trago em mim tua alma adormecida . . .
mas, num mistério surdo que me assombra,

tu és, as minhas mãos, vaga, fugace,
como um sonho que nunca se sonhasse
ou como a sombra vã de uma outra sombra...

ALEGORIA

Em vão busco acender um diálogo contigo:
a alma sem tom da tua boca de água e vento
despede cinza, névoa e tempo no que digo,
devolve ao chão o meu mais longo pensamento,

e entre cactos estira esse deserto ambíguo
que vem da tua altura ao vale onde me ausento,
procurando o teu verbo. O silêncio, investigo-o,
e ouço o naufrágio, o vácuo e o deperecimento.

Sonho: desces a mim de um céu de algas e rosas,
falas às minhas mãos vozes vertiginosas,
e palavras de flor no teu cabelo enastro.

Desperto: pairas ainda em silêncio e infinita:
meu ser horizontal chora treva e medita
tua distância, teu fulgor, teu ritmo de astro.

SONETO DO IMPOSSÍVEL

Não ouvirás nem luz, nem sombra inquieta
das sílabas que beijam tuas asas,
nem a curva em que morre a ardente seta,
nem tanta eternidade em horas rasas.

Não medirás a bêbeda corola
que abriste no final do meu sorriso,
nem tocarás o mel que canta e rola
na insônia sem estradas onde piso.

Não saberás o céu construído a fogo,
que tua jovem chave cerra e empana,
nem os braços de espuma em que me afogo.

Não verão os teu olhos quotidiana
a minha morte de homem embebida
no flanco de ouro e luar da tua vida.

COMO QUEM PEDE UMA ESMOLA

Preciso de uma palavra.
Em que dia ou em que noite
estará essa, que almejo,
ideal palavra insabida,
a única, a exclusiva, a só?
Dela me sinto exilado
todas as horas por junto,
com minha face, meu punho,
meu sangue, meu lírio de água.
Soletro-me em tantas letras,
e encontrá-la deve ser
encontrar a criança e o berço,
a unidade, a exatidão,
o prado aberto na rua,
a rua galgando a estrela.
Preciso de uma palavra,
uma só palavra rogo,
como quem pede uma esmola.
Em florestas de palavras
os calados pés caminham,
as caladas mãos perquirem,
os olhos indagam firmes.
Em que parábola cruel,
em que ciência, em que planeta,
em que fronte tão hermética,
em que silêncio fechada
estará viajando agora
- mariposa de ouro azul -
a palavra que desejo?
Lâmina sexo cristal
fulcro pântano convés
voraginoso fluvial
Antígona circunflexa
catastrófico crepúsculo
ênula ventre rosal
sibila farol maré
desesperadoramente
nenhuma será nem é
aquela do meu anseio.
Como será, quando vier,
a palavra entrepensada,
necessária e suficiente
para a minha construção
de lápis, papel e vento?
Dura, espessa, veludosa
ou fina, límpida, nítida?
Asa tênue de libélula
ou maciça e carregada
de algum plúmbeo conteúdo?
Distante, insone e cativo,
debaixo da chuva abstrata,
eu me planto decisivo
no tráfego confluente,
aéreo, terrestre, marítimo,
e espero que desembarque,
triste e casta como um peixe
ou ardendo em carne e verbo,
e pouse na minha mão
a áurea moeda dissilábica,
a noiva desconhecida,
a coroa imperecível:
a palavra que não tenho.

NA RUA FEIA

Na rua feia,
de casas pobres,
morreu o filhinho daquela mulher
que lava o linho rico
de um bairro distante.
Morreu bem simplesmente,
assim como um passarinho.
O enterro saiu...lá vai...
um caixãozinho azul
num carro velho de 3a. classe.
Atrás dois autos. Dois.

A tarde irá pôr luto
na rua feia,
de casas pobres?

Garotos brincam de esconder
atrás do muro de cartazes.
Lá no alto
vai-se abrindo grande céu sem mancha
cruzeiro-do-sulmente iluminado.

POEMETO MATINAL

O ar da manhã beija a minha face.
A minha alma beija o ar leve da manhã
e olha a paisagem longínqua da cidade,
que branqueja alegremente na distância
e sorri humanamente
um sorriso branco no caiado das casas
que montam os flancos das colinas azuis
e espiam pelos olhos escancarados das janelas.

7 horas. Vai começar a função.
O despertador das sirenes fura liricamente
o silêncio doirado da manhã.
Parece que a vida acorda agora pela primeira vez
e esfrega os olhos deslumbradamente...

Meu Ford fordeja dentro da manhã
e sobe a rua velha do meu bairro,
arquejando, bufando, fumando gasolina.
Meu Ford a cabriolar nos buracos da rua descalça
é um cabrito todo preto a cabriolar, prodigioso.
O ar leve beija o radiador
e beija a minha face.

A meninice de todo o meu ser
na doirada névoa desta manhã!

NOITE

Há duas pombas brancas no telhado.
Junto delas pousa o silêncio do dia já parado,
e entre asas caladas o primeiro gesto da noite vai crescendo.
É tarde nos telhados e nas árvores,
é tarde (triste e mais tarde) nessa rua
que se reabriu no fundo de um olhar,
onde se movem ressurrectos mármores
e começam a discorrer ventos e velas
por sobre a limpidez das mesmas águas velhas,
e pássaros azuis bicam frutos de astro soltos no ar.

Sobem (de onde?) vultos escuros de coisas e de entes,
alongam a última distância, somem a luz que se destece
e a linha dos caminhos, apagam o verde prado.
Não há duas pombas brancas no telhado:
sobre elas, seu vôo e seu arrulho ausentes
a lápide sem cor das horas desce.

Fonte:
Jornal de Poesia

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