quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Lyslei Nascimento (O Fascínio dos Gatos)

Linus - Foto de José Feldman
O fascínio dos gatos pelos escritores e pelas bibliotecas é imemorial. Por conta disso, os gatos habitam, assombrando ou confortando, o imaginário de tantos autores. Célebres por sua astúcia, rapidez, sensibilidade, destreza e capacidade de sobrevivência, os gatos povoam os ritos de magia e, se negros, sãos os companheiros inseparáveis das bruxas e feiticeiras. Em dias de azar, associam-se às escadas para causar obstáculos à sorte. Sua aparição no repertório de crendices populares é infinita: os gatos tem sete vidas, a gordura deles pode curar doenças respiratórias, os alérgicos a gatos, dizem, não conseguem amar.

Os espertos, metaforicamente, dão o pulo do gato. Erros, descuidos e enganos são chamados de gato. Compra-se ou vende-se gato por lebre, fascínio quando se é enganado ou se quer enganar. Os gatos simbolizam, metaforicamente, os ladrões. São, contemporaneamente, os enamorados, chamados de gato e gata, mas, desde o antigo Egito, possuíam a condição ilustre de deuses. Gatos obesos são objeto do “olho gordo” que é dirigido aos seus donos.

Outros tantos provérbios, máximas populares e expressões caracterizam esse animal em sua rica acepção simbólica. Escritores famosos dedicaram obras ou criaram gatos ilustres como personagens: Kipling, T.S. Eliot, Baudelaire, Lewis Carroll, Edgar Alan Poe, só para citar alguns. Memoráveis são também os gatos dos contos de fadas, O Gato de Botas, os gatos das Histórias em Quadrinhos e, também, dos filmes de animação.

Joaquina cochila, indiferente, sob os livros de Borges. No poema “Beppo”, Jorge Luis Borges homenageia o “gato branco e casto” que se contempla no luzidio vidro do espelho e não pode saber que essa brancura e esses olhos de ouro nunca vistos são sua própria imagem. Em outro poema, “A um gato”, o animal se transforma e transcende: é, à luz da lua, uma pantera, que ao longe divisamos temerosos. Adivinha, Borges, que em minha biblioteca, Joaquina, anos depois, leria, com olhos de ouro, páginas amarelas. Avizinha-se, pois, em Borges, os gatos, os espelhos e a pantera. Gesto que se repete no conto “A escrita de Deus”, em que o narrador imagina uma rede de tigres, um quente labirinto de tigres, onde reside um mistério.

Em “Ode ao gato”, de Pablo Neruda, o poeta afirma que “todo o terrestre, porque tudo é imundo para o imaculado pé do gato”. Desse modo, narra-se, como uma fábula, a criação dos animais, que imperfeitos se apresentam compridos de rabo, tristes de cabeça. “Pouco a pouco se foram compondo, fazendo-se paisagem, adquirindo pintas, graça vôo”. Mas “o gato, só o gato apareceu completo e orgulhoso: nasceu completamente terminado, anda sozinho e sabe o que quer”.

Otto Lara Resende, no Brasil, no extraordinário “Gato gato gato”, descobre que “a palavra não cabe o gato, toda a verdade de um gato” e que no duelo entre gato e menino, no quintal, estabelece-se o que poderia ser, belicamente, o milagre da comunicação perfeita. O gato, o alvo. O gato é o alvo. A pedrada passa assobiando pela crista do muro. O gato corre, elástico e cauteloso. “Inatingível às pedras e ao perigoso desafio de dois seres a se medirem”, sumiu por baixo da parreira ao sol. Dessa vez, ufa… escapa da pedrada. Outras pedras, outro menino, o encontrarão no caminho. Desenham-se, assim, as presas inúteis, a boca entreaberta. “O gato fora do gato, somente o corpo do gato”, “O gato sem o que nele é gato”, "a morte, que é ausência de gato no gato”.

“Os gatos da tinturaria”, de Cecília Meireles, são misteriosos e reais. No chão xadrez, ruídos “atropelam a geometria” e os “grandes gatos abrem compridos bocejos”. Assim, diz a poeta, proclamam a monarquia da renúncia e, tranquilos, vencidos, “dormem seu tempo de agonia”. Em sua realeza, a que renunciam e de quais batalhas se sentem vencidos?

A realeza dos gatos da tinturaria que se inscreve, sob um manto de bocejos, em Cecília, aparece, sutil, no poema “Pensão familiar”, de Manuel Bandeira. No jardim, há gatos espaçados ao sol. Um deles, pequenino, faz pipi e, registra o poeta, “encobre cuidadosamente a mijadinha”, “sai vibrando com elegância a patinha direita”, sendo este, “a única criatura fina na pensãozinha burguesa”.

No poema “Gatos que brincas na rua”, de Fernando Pessoa, o poeta inveja a sorte do gato que brinca na rua como se fosse na cama. Assim, a rua pública é comparada à cama, íntima e pessoal. Por isso, a felicidade do gato: “és feliz porque és assim, todo o nada que és é teu”. Os gatos na tinturaria, os gatos ensolarados da pensãozinha e os gatos de rua, são membros de uma genealogia de príncipes e de mendigos. Todos divinos e célebres. Todos, como “O gato”, de Vinícius de Moraes, possuem uma singela realeza. Os gatos passam do chão ao muro, mudando de opinião. Do muro ao chão, espaços sazonais para os felinos.

Gatos somem no Rio de Janeiro, diz a crônica “Perde o gato”, de Carlos Drummond de Andrade, marcando a indústria doméstica das cuícas à perda de Inácio. Para Drummond, livros e papéis beneficiam-se com a presteza austera do gato. Depois do sumiço de Inácio, a mesa do escritório se desvaloriza. Se se agravar a mediocridade das crônicas, admite, é falta de Inácio. O poeta, assim, reivindica mais do que a coruja, o gato como símbolo e guardião da vida intelectual. Nada contra as corujas.

Os dois gatos de meu amigo Rodrigo Gurgel, sentados sobre o Houaiss, ou esparramados no sofá, com os olhos faiscando num verde ambíguo, e, mostrando que sua intimidade com a biblioteca não tem sido vã, e Joaquina, branca, como nuvem em dia de sol, sobre os tomos de Borges, sugerem o final do ensaio “Os gatos, as bibliotecas e a literatura”, de Rodrigo, sussurrando-lhe, ao ouvido, uma frase que fecha o seu texto iluminado. Com esse sussurro, uma frase de Jean Cocteau, também termino “O fascínio dos gatos”: “Prefiro os gatos aos cães, porque não há gatos policiais”.

Fonte:
Suplemento Literário de Minas Gerais -Setembro-Outubro/2010 - edição 1332.

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