O velho voltou-se para a janela aberta, que enquadrava um pedaço do céu estrelado. Tinha uma bela voz:
... Mas eu dizia que na minha primeira juventude fui escritor. Pois é, escritor. Aliás, enveredei por todos os gêneros: poesia, romance, crônica , teatro... Fiz de tudo. E mais gêneros houvesse... Meti-me também na política, cheguei a escrever uma doutrina inteira para o meu partido. Mergulhei ainda na filosofia, ô Kant, ó Bergson!... Achava importantíssimo meu distintivo de filósofo, com uma corujinha encolhida em cima de um livro.
Calou-se. Havia agora no seu olhar uma expressão de afetuosa ironia. Zombava de si próprio, mas sem amargor.
Eu não sabia que não tinha vocação nem para político, nem para filósofo, nem para advogado, não tinha a menor vocação para nenhuma daquelas carreiras que me fascinavam, essa é a verdade. Tinha apenas um coração ardente, isto sim. Apenas um coração ardente, mais nada.
Meu filho Atos herdou o mesmo coração. Devo dizer-lhe que um coração assim é um bem. Não há dúvida que é um bem, mas um bem perigoso, está me compreendendo? Tão perigoso... Principalmente na adolescência, logo no começo da vida, no tão difícil começo. Meu pobre filho que o diga...
Calou-se apertando fortemente os lábios. Eu quis então romper o silêncio porque sabia do que aquele silêncio se carregava, mas não tive forças para dizer coisa alguma. O olhar do velho já denunciava as tristes lembranças que o assaltavam: qualquer tentativa para afastá-las resultaria agora inútil. E seria mesmo cruel.
Ele era inteiro um coração, prosseguiu o velho. E foi por saber tão bem disto que corri como um louco para casa quando me disseram que Leonor tinha morrido. Não, não fui nem pensei sequer em ir ao hospital porque adivinhei que ele não estava mais lá, devia ter ficado com a noiva até o último momento. Em seguida, devia ter voltado para casa.
Saí correndo pela rua afora, acenando para os carros que passavam já ocupados. Chovia, chovia horrivelmente. E eu acenava em vão para os carros, tentei mesmo agarrar-me a um deles, 'depressa, depressa, que meu filho vai se matar!' Corri tanto que quando cheguei, encharcado e exausto, atirei- me quase desfalecido nos degraus da escada. E ali fiquei de bruços, a olhar estupidamente uma formiguinha que se infiltrara numa fenda do degrau de pedra. A casa estava quieta. Quieta demais, pensei, erguendo-me de um salto. E precipitei-me aos gritos pela casa adentro, embora soubesse muito bem que ele não podia mais me ouvir, 'filho, não!'
O velho fez uma pausa. Acendi um cigarro. Que ao menos o ruído do fósforo riscado rompesse o silêncio que se abateu na sala. Fixei o olhar numa rosa do tapete puído. E só quando o velho recomeçou a falar é que tive coragem de encará-lo novamente. A imagem do filho, com o peito varado por uma bala, já passara para um plano remoto.
Atos herdou de mim esse tipo de coração. Gente assim ri mais, chora mais, odeia mais, ama mais... Ama mais, principalmente isto. Ama muito mais. E uma espécie de gente inflamável, que está sempre se queimando e se renovando sem parar. De onde nascem chamas tão altas? Muitas vezes não há nenhuma acha de lenha para alimentar o fogo, de onde vem tamanho impulso? Mistério. As pessoas param, fascinadas, em torno desse calor tão espontâneo e inocente, não? Tão inocente. No entanto, tão perigoso, meu Deus. Tão perigoso.
O velho soprou a brasa mortiça do cigarro de palha. Seu largo rosto bronzeado pareceu-me extraordinariamente rejuvenescido.
Como eu entendia bem aquele filho, eu que lhe transmitira o tal coração flamejante! Como se parecia comigo! Faltava-lhe, apenas, o meu senso de humor, ele matou-se com vinte anos.
Com vinte anos, eu já terminara três romances, duas peças, um livro de novelas e uma enorme epopéia da qual tirei a tal doutrina para o meu partido. Lia Bergson, Nietzsche, Shakespeare... Citava-os enfaticamente, com ou sem cabimento. E cada livro que lia, achava que era a obra máxima, meu guia; meu irmão, meu tudo. Isto até ler outro livro. Então punha de lado o anterior e imediatamente adotava o novo, achei o que queria, achei!... Tão desordenada avalanche de leituras me confundiu a tal ponto, que acabei por me perder e não conseguia mais me encontrar. Os heróis de meus livros me marcavam tanto, que de cada um ficava um pouco em mim: sorria como Fausto, investia como D. Quixote, sonhava como Romeu... Tive crises de angústia, fiquei completamente atordoado, infeliz. Como é que eu era afinal? Senti-me de repente vazio e perplexo, um personagem em absoluta disponibilidade diante do autor. E que autor era esse? Deus? Mas eu acreditava Nele? Não acreditava? A vida me dava náuseas. Mas não era ainda maior do que a náusea o pavor que eu tinha da morte? Que é que eu quero? Que é que eu faço?! - ficava a perguntar a mim mesmo até altas horas, a andar de um lado para outro no meu quarto enquanto meu irmão protestava no quarto vizinho, 'quer ter a bondade de ao menos tirar os sapatos?' As perguntas batiam em mim e voltavam e rebatiam como bolas de pingue-pongue numa partida infernal. Assaltava-me, às vezes, o desejo de poder, prestígio e ao mesmo tempo tudo me parecia de uma inutilidade atroz, 'para quê? por quê?' Meus amigos, tão descabelados quanto eu, vinham somar às minhas suas desesperadas dúvidas. E em debates que não acabavam nunca, varávamos a noite até a madrugada. Deitava-me com a garganta seca, exausto e deprimido, ainda mais perturbado do que antes. Um caos.
E eis que, aos poucos, foi-me dominando um desejo feroz de solidão. Senti-me o próprio lobo da estepe, incompreendido e só num mundo que já não falava a mesma língua que a minha. Abandonei o partido. 'Não é a doutrina que me decepcionou, mas os homens...', justifiquei no meu discurso de despedida, que por sinal achei uma obra-prima. Não acreditava mais nos meus companheiros de partido, naqueles homens que falavam o dia inteiro no bem coletivo, na felicidade do povo, no amor ao próximo. Tão idealistas, tão puros! E na prática, não conseguiam dar o mais miserável grãozinho de alegria à própria esposa, ao filho, ao cachorro... Diziam-se independentes, desapegados das vaidades mundanas. Mas quando eram postos à prova... Não era preciso mais do que um convite para uma festa importante, mais do que um aceno para a glória, não era preciso mais nada para transformá-los em reles bajuladores. E sua servidão era bem do estilo deles: fleumática, orgulhosamente dissimulada e por isso mil vezes pior do que a bajulação desmascarada. Tomei um nojo quase físico do gênero humano. Por que as palavras não coincidiam nunca com os pensamentos? Por que os pensamentos não coincidiam nunca com as ações?
Que farsa, pensei repugnado. Arranquei minhas malas de cima do guarda-roupa. Viajar, ir embora, sumir de qualquer jeito, para qualquer lugar! Não seria esta a solução? Minha mãe trouxe-me um bolo com vinte e uma velinhas, eu fazia vinte e um anos. Apaguei as velas de um sopro. E fui falar com meu pai:
- Vou abandonar os estudos, pai. Vou-me embora e não voltarei tão cedo.
Meu irmão, que era muito parecido com minha mãe, encarou-me friamente:
- Deixe de ser histérico, menino.
Meu pai ordenou-lhe que se calasse. E ouviu-me com a maior gravidade.
- A gente sempre volta, filho. Espere um pouco, não tome por enquanto nenhuma resolução.
Concordei em esperar. E olhei para minhas mãos vazias. Se ao menos pudesse agir! Cansara-me dos planos inúteis, das palavras inúteis, dos gestos inúteis... Fazer alguma coisa de útil, de nobre, alguma coisa que justificasse minha vida e que até aquele instante não tinha para mim o menor sentido. Mas fazer o quê?
'Amar ao próximo como a si mesmo', fiquei repetindo estupidamente, sem a menor convicção. Ah, sim, porque era fácil dizer, por exemplo, que eu não tinha nenhum preconceito de cor, que era completamente liberal nesse assunto, mas na hora de formar a rodinha dos amigos íntimos, daqueles que poderiam vir a se casar com minhas irmãs, nessa hora chamei por acaso algum negro para participar dela? Era fácil ainda encher a boca de piedade para com os assassinos e as prostitutas, mas o fato de não atirar-lhes pedras significava, por acaso, que um dia chegaria a tratá-los como irmãos? Como se fossem eu mesmo? Não passo de um egoísta, concluí. Um refinado hipócrita e egoísta. Sou capaz de me casar com uma priminha que apresenta todas as características de uma rameira mas jamais me casarei com uma rameira que seja uma santa em potencial. Hipócrita e egoísta! Burguesinho egoísta! - berrei dando um soco na vidraça da janela do meu quarto, enquanto minha mãe batia aflita na porta, certa de que eu me pegava ali dentro com alguém.
Sorri silenciosamente. O velho sorriu também. Seus olhinhos azuis pareciam agora maiores e mais brilhantes. Pôs-se a preparar novo cigarro. Era agradável o som da lâmina do canivete alisando a palha.
Tomei-me de tamanha irritação por mim mesmo que deixei de fazer a barba só para não topar mais com minha cara no espelho. Foi quando senti uma necessidade urgente de amar, de dedicar-me inteiramente a alguém, mas a alguém que precisasse de ajuda, de compreensão, de amor. Oferecer-me como bóia de salvação ao primeiro que me acenasse. No caso, não foi primeiro, foi primeira. E a bem da verdade devo dizer que ela não fez nenhum aceno: eu é que fui bater na sua porta para oferecer-lhe socorro. Seria um amor amargo, cheio de sacrifícios e renúncias, mas não era assim o amor que eu procurava? Acho que já disse que meu irmão era muito parecido com minha mãe. Eu saí parecido com meu pai que era um homem dos grandes impulsos, dos grandes gestos, das grandes paixões. Meu infortúnio parecia-me, até aquele momento, demasiado medíocre: ansiava agora por ser grandemente desgraçado, isto é, amar e ainda por cima escolher mal o objeto do meu amor.
Por uma dessas banais ironias, o prostíbulo situava-se no alto da Ladeira da Glória. Ladeira da Glória, doze. Lembro- me bem de que era um casarão pardo e velho, cheio de ratos que corriam sem nenhuma cerimônia pelos corredores e de mulheres que trançavam seminuas, com menor cerimônia ainda.
Encontrei-a fazendo as unhas. Na maioria das vezes em que a visitei encontrei-a lidando com seus petrechos de unhas ou então bordando miçangas em alguma roupa, tinha mania com miçangas. Se pudesse, creio que até nas cobertas da cama pregaria as tais continhas. E tinha mania com as unhas que eram realmente perfeitas. A cabeleira podia estar em desordem, a pintura do rosto, desfeita, mas as unhas ah, essas deviam estar sempre corretíssimas! Tinha a pele muito branca, com ligeiros vestígios de sardas e cabelos ruivos, muito curtos e encaracolados. Parecia uma cenourinha. Não era bonita, mas quando sorria... Havia tamanha ternura no seu sorriso, uma ternura assim tão espontânea, tão inocente, que chegava a me comover, 'como pode ser, meu Deus?! Como pode ser?!...' Ela voltava para mim os olhinhos redondos como bolinhas de vidro verde: 'Como pode ser o quê?' Então era eu quem sorria. 'Nada. Nada.'
Chamava-se Sandra, mas quando eu soube que seu nome verdadeiro era Alexandra, Alexandra Ivanova, emocionei-me. Descendia de russos. Vi nela uma personagem de romance e eu mesmo me vi na pele suave d'o Idiota, tão cheio de pureza e de sabedoria, 'que faz você sob este céu azul, provavelmente azul?' Atendendo o telefone, a dona da pensão não permitiu, no entanto, que eu encaixasse ali minha citação quando informou-me que Sandra não podia vir falar comigo porque estava muito ocupada. Desliguei atirando o fone no gancho:
- E ainda chama a isso de ocupação!...
Meu irmão, que estava ali ao lado, bateu-me tranqüilamente no ombro:
- Você me dá a impressão de estar o dia todo com a espada desembainhada. Não é cansativo?
Saí sem dar resposta. Mais tarde, bem mais tarde acabamos sendo ótimos amigos. Mas naquela época era impossível haver qualquer entendimento entre nós.
Alexandra tinha vinte e cinco anos e era completamente analfabeta. Mas eu queria uma criatura assim primitiva e xucra, atirada numa pensão de última classe. Seria preciso ir buscá-la no fundo, bem lá no fundo e trazê-la aos poucos para a luz, devagarinho, sem nenhuma precipitação. Era um jogo que exigia paciência, sim, e eu não tinha nada de paciente. Mas a experiência era fascinante.
Três vezes por semana eu ia vê-la, sempre no fim da tarde, quando o mulherio e os ratos pareciam mais tranqüilos em suas tocas. Costumava levar-lhe um presentinho, pequeninas coisas de acordo com minha discretíssima mesada: pacotinhos de bombons, lenços, enfeites de toucador... Assim que eu chegava ela olhava ansiosamente para minhas mãos, como criança em dia de aniversário. E recebia, radiante, as insignificâncias. 'Alexandra. A-le-xan-dra...' eu gostava de repetir lentamente, destacando bem as sílabas. Nos instantes mais graves da minha doutrinação, chamava-a dramaticamente pelo nome todo: Alexandra Ivanova. Ela então desatava a rir.
A princípio, tive um certo trabalho para explicar-lhe que nossa amizade tinha que ser uma coisa de irmão para irmã. Ofendeu-se um pouco:
- Quer dizer que você não quer nada comigo?
- Quero, Alexandra. Quero tudo com você. Mas antes, precisamos conversar muito.
Ela sorria. Quando sorria, chegava a ficar bonita.
- Você é complicado.
- Não, Alexandra, não é isso, mas o caso e que há coisas mais importantes na frente, precisamos antes nos entender, nos amar para então... Você precisa se preparar para ser minha. Minha para sempre, ouviu bem?
- Ouvi. Mas você é complicado, sim.
Mais facilmente do que eu esperava ela acomodou-se logo àquele novo tipo de relacionamento. Era de natureza mansa, indolente. Recebia-me com seu sorriso afável, desfazia o pacotinho, interessava-se alguns instantes pela novidade do presente e em seguida punha-se a lidar com suas eternas miçangas. Bordava miçangas verdes numa blusa preta. Antes que eu me fosse, acendia a espiriteira, preparava o chá e me oferecia uma xícara com umas bolachas que tirava de uma lata com uma borboleta de purpurina na tampa.
- Acho que você é padre - disse-me certa vez.
Achei graça e respondi-lhe que estava muito longe de ser isso. Não obstante, ela ainda me olhava com um sorrisinho interior:
- Acho que você é padre, sim.
Mostrei-lhe então o absurdo daquela suspeita mas até hoje desconfio que Alexandra não se convenceu nada com a minha negativa. E se não voltou a tocar no assunto, foi porque sua natural indolência a impedia de pensar mais de dois minutos sobre qualquer problema. Dissimulava ceder logo aos primeiros argumentos por simples preguiça de discutir.
- Você fala tão bem - ela me dizia de vez em quando, para me animar. - Fale mais.
Com a dolorosa impressão de que minhas palavras borboleteavam em redor de sua cabeça e se iam em seguida pela janela afora, redobrava meus esforços, tentando seduzi- la com temas nos quais ela parecia se interessar mais: Deus, amor, morte... Ela fazia pequenos sinais afirmativos com a cabeça enquanto ia bordando seu labirinto de contas. Quando eu me calava, pedia:
- Fale mais.
E daí por diante só abria a boca para cortar nos dentes o fio de linha da agulha.
Às vezes, eu tentava me convencer de que havia naquele silêncio de Alexandra profundidades insondáveis, mistérios, sei lá!... Sempre achara um encanto especialíssimo nas mulheres silenciosas. Agora tinha na minha frente uma que quase não falava. E então? Não era isso que eu queria? Não era mesmo um amor difícil aquele que eu buscara? Há vinte e cinco anos, praticamente há vinte e cinco anos ela estava naquela vida. A bem dizer, nascera ali. Vinte e cinco anos de mentiras, vícios, depravações. Não seria mesmo com meia dúzia de palavras que eu iria remover toda aquela tradição de horror.
Pedia-lhe o fim das suas tardes, nada mais do que o fim das suas tardes, à espera sempre de que espontaneamente ela fosse abrindo mão também de suas noites de comércio infernal. Mas não. Alexandra me ouvia muito atenta, retocava o esmalte de alguma unha, lidava com suas miçangas, oferecia- me chá com bolachas e assim que eu saía, recomeçava com naturalidade sua vida de sempre. Minha exasperação chegou ao máximo quando descobri que ela estava longe de se considerar infeliz.
- Mas Alexandra, será possível que você está contente aqui? - perguntei-lhe certa tarde.
- Estou contente, sim. Por quê?
Emudeci. Eu tinha justamente acabado de lhe falar sobre um pensionato de moças transviadas, para onde pretendia levá- la. Diante do seu desinteresse pelo meu plano, fiz-lhe a pergunta cuja resposta me deixou perplexo.
- Alexandra Ivanova, você está vivendo no inferno! Não vê que você está vivendo no inferno?!
Ela lançou em redor um olhar assustado:
- Mas que inferno?
Olhei também em torno: o usino de feltro azul, sentado no meio das almofadas em cima da cama, a mesa de toalete cheia de potes de creme e de pequeninos bibelôs, o guarda-roupa com malas e caixas cuidadosamente empilhadas no topo, o coelho felpudo em cima da cadeira, a mesinha coberta com uma toalha que devia ter 4 sido a saia de um vestido ramado... Num canto da mesa, duas xícaras, um bule, a lata de bolachas e o açucareiro com rocinhas douradas, presente meu. Todo o quarto tinha o mesmo ar indolente da sua dona.
- Para que um lugar seja o inferno, está claro que não é preciso a presença do fogo - comecei fracamente. Toquei-lhe no ombro. - O inferno pode estar aí.
Ela riu. Em seguida, ajoelhou-se, pôs a cabeça no meu colo e ali ficou como um bichinho humilde e terno. Tomei-a entre os braços. Beijei-a. E descobri de repente que a amava como um louco, 'Alexandra, Alexandra, eu te adoro! Te adoro!...
Naquela tarde, quando a deixei fui como um tonto pela rua afora, a cabeça estalando, os olhos cheios de lágrimas, 'Alexandra, eu te amo...' Crispei desesperadamente as mãos ao me lembrar de que dentro em pouco, de que naquele instante mesmo talvez um outro... 'Vou me casar com ela', resolvi ao entrar em casa. Minha família tinha que aceitar, todos tinham que aceitar aquele amor capaz de mover sol e estrelas, '1'amor che muove il sole e l'altre stelle'... Mas nem Dante nem eu sabíamos que era mais fácil mover a Via- Láctea do que mover minha pequena Alexandra da Ladeira da Glória para o Pensionato Bom Caminho.
Uma tarde, nossa última tarde, encontrei-a arredia, preocupada. Hesitou um pouco, mas acabou me dizendo que a dona da pensão não queria mais saber das minhas visitas.
Perguntei-lhe o motivo.
- Ela acha que você quer me tirar daqui para me explorar noutro lugar.
Fiquei sem poder falar durante alguns minutos, tamanha cólera se apossou de mim.
- Mas Alexandra... - comecei, completamente trêmulo. Dei um murro na mesa. - Chega! Amanhã mesmo você vai para o pensionato, está me entendendo? Já arranjei tudo, você ficará lá durante algum tempo, aprendendo a ler, a rezar, a ter boas maneiras...
Alexandra arrumava sua caixinha de miçangas. Sem levantar a cabeça, interrompeu-me com certa impaciência:
- Mas eu já disse que não quero sair daqui.
- O quê?!
- Eu já disse que não quero sair daqui, logo no começo eu disse isso, lembra? Sair daqui, não.
Respirei profundamente para readquirir a calma, como aprendera num método de respiração iogue.
- Será possível, Alexandra Ivanova, será possível que você também está pensando que... - comecei num fio de voz e nem tive forças para terminar.
- Pois se eu soubesse que você está querendo me agenciar, iria até de muito bom grado, o que não quero é essa história de pensionato. Pensionato, não.
Escancarei a janela que dava para o quintal da casa. Lembro- me de que havia ali uma mulher loura com uma toalha nos ombros, secando os cabelos ao sol. Acendi um cigarro. Minha mão tremia tanto que mal consegui levar o cigarro à boca.
- Alexandra, você precisa ficar algum tempo num lugar direito, decente, antes de... de nos casarmos. Já conversamos tanto sobre tudo isso, ficou assentado que você iria, já conversamos tanto a esse respeito! Será possível?...
Ela pousou em mim os olhos redondos. E falou. Foi a primeira e a última vez que a ouvi falar tanto assim.
- Não conversamos nada. Foi só você que abriu a boca, eu escutava, escutava, mas não disse que queria ir, disse?
Disse por acaso que queria mudar de vida? Pois então. Gosto daqui, pronto. Mania que vocês têm de querer me baldear, foi a mesma coisa com aquelas três velhas da Comissão Pró não- sei-mais-o-quê. Ficaram uma hora inteira falando. Depois escreveram meu nome numa ficha e ficaram de voltar na manhã seguinte. Graças a Deus não apareceram nunca mais. Agora vem você... Por que é que você complica tanto as coisas?
Primeiro, aquela história de ficarmos que nem dois irmãos, agora que tudo ia tão bem, tinha que me inventar essa bobagem do pensionato. Por que é que você complica tudo?
Fiquei aturdido.
- Quer dizer que você não me ama.
- Amo, sim. Amo - repetiu brandamente. - Mas estamos tão bem assim, não estamos? Além do mais, você pode amanhã mudar de idéia, me deixar. E meu futuro está aqui.
Aproximei-me dela. Comecei por arrancar-lhe das mãos os pacotinhos de miçangas e atirei-os longe. Em seguida, agarrei-a pelos cabelos e esmurrei-a tanto, mas tanto, que quase quebrei minha mão. Ela pôs-se a gritar e só se calou no instante em que a joguei com um safanão sobre a cama.
Disse-lhe então as coisas mais duras, mais cruéis. Ela enrolou-se nas cobertas, como um bichinho apavorado, escondendo o rosto que sangrava. E não me respondeu.
Um arrependimento brutal apertou meu coração. Tive vontade de me golpear na cara. E suplicar-lhe, de joelhos, que me perdoasse. Mas continuei inflexível:
- Devia era te matar.
Ela ergueu a cabeça. E como percebesse que eu não cogitava mais de agredi-la e muito menos de matá-la, levantou-se, lavou o rosto na bacia e choramingando, choramingando, pôs- se a catar as miçangas que eu espalhara pelo chão. Parecia mais preocupada com as miçangas do que com o próprio rosto que já começava a inchar. Em nenhum momento me insultou, como seria natural que fizesse. No fundo, tinha por mim um extraordinário respeito, o que me leva até hoje a crer que jamais ela tirou da cabeça aquela suspeita de ser eu um padre disfarçado.
Apanhei a capa e o Código Civil que caíra do meu bolso Tinha vontade de morrer.
- Você vem amanhã? perguntou-me ainda de cócoras, as mãos cheias de continhas vermelhas.
Confesso que até hoje não sei bem que resposta ela queria ouvir. Desci a escada. E só então compreendi o motivo pelo qual ninguém ouvira os gritos de Alexandra: o rebuliço na casa era total. O mulherio gesticulava, falava, chorava, trançando de um lado para outro como um punhado de baratas em chapa quente de fogão. Vi que o tumulto se irradiava de um quarto no fundo do corredor. As portas do quarto estavam escancaradas.
Entrei. Estendida na cama, coberta com um lençol, estava uma moça morta. Na mesinha ao lado, uma garrafa de guaraná e a lata aberta de formicida. No chão, os cacos de um copo.
Desviei da morta o olhar indiferente. Suicídio. E daí? Podia haver fecho mais digno para aquela vida enxovalhada?
Sentada na cama, uma mulher chorava sentidamente, assoando- se na toalha que tinha nos ombros: era a mesma mulher que eu vira no quintal, secando os cabelos. Três outras mulheres revolviam estabanadamente as gavetas da cômoda.
Fiquei a olhar a cena com a maior indiferença. Era essa mesma a vida e a morte que ela escolhera, não era? E então? Por que a surpresa? O escândalo?...
Acendi um cigarro e encostei-me ao batente da porta. Tamanho desinteresse acabou por irritar a mulher da toalha nos ombros e que parecia a mais ligada à morta. Voltou-se para mim:
E você aí, com essa cara... Está se divertindo, está? Vocês, homens, são todos uns cachorros, uns grandessíssimos cachorros, isso é o que vocês são! Por causa de vocês é que a pobrezinha se matou. Só dezoito anos, uma criança ainda!
- Criança que gostava deste brinquedo, hem? - perguntei lançando um olhar em redor. E tive que me abaixar em seguida para fugir do sapato que ela me atirou.
- Seu sujo! Ainda fala assim, o sujo! Saiba que Dedê era muito direitinha, uma menina muito direitinha. Todos os dias vinha se queixar para mim, que não agüentava mais, que tinha horror disto, que não via a hora de ir embora, 'quero minha mãe, quero minha mãe!' ela me pediu chorando tanto que não agüentei e chorei junto com ela também. - A mulher fez uma pausa para assoar-se furiosamente na toalha. - Quantas vezes ela me disse que queria viver uma vida igual à de qualquer moça por aí, com sua casa, seu marido, seus filhos... Caiu aqui, mas ficou esperando que algum dia viesse um homem bom que a levasse... Mas vocês são todos uns bandidos. Quem pensou em dar a mão para ela? Quem?
Pela primeira vez olhei realmente a morta. Tinha no rosto fino uma beleza frágil. Deixei cair o cigarro.
- Ela esperou então que alguém viesse?
- Esperou, esperou. Mas de repente perdeu as forças, foi isso... Bem que ela me disse ainda ontem que não ia agüentar mais, bem que ela disse! Mas a gente diz tanta coisa, eu não acreditei...
Afastei-me para deixar passar os homens da policia. Inclinaram-se sobre a suicida. Agora eu só podia ver o delicado contorno dos seus pés sob o lençol.
Fui saindo do quarto. Mas então? Então... Toquei na maçaneta negra da porta: era ali que eu devia ter batido, era ali, tudo não passara de um pequeno equívoco. Um simples equívoco de porta. Alguns metros menos e...
A tarde estava luminosa e calma. Cruzei os braços. Mas não era mesmo incrível? Coisa mais desconcertante, mais estúpida...
Sentei-me na calçada, com os pés na sarjeta. E de repente comecei a rir. E ri tanto, mas tanto, que um homem que passava, ao me ver rindo tão gostosamente, nu-se também. Ah vida louca, completamente louca, mas de uma loucura lúcida, cheia de nexo nos seus encontros e desencontros, nos seus acasos e imprevistos! Falsa demente, tão ingenuazinha e tão astuta na sua falta de lógica, cheia de misterioso sentido na sua confusão tão calculada, tão traiçoeiramente calculada. Uma beleza a vida!
Baixei o olhar para a sarjeta: entre duas pedras tortuosas, uma pequenina flor apontava sua cabecinha vermelha. Parecia- se com Alexandra. Toquei-lhe na corola tenra. E senti os olhos úmidos. - Minha florzinha tonta - disse-lhe num sussurro - você é tão mais importante do que todos os livros, tão mais importante... Você está viva, minha querida. E que extraordinária experiência é viver!
Ergui-me de cara voltada para o sol. Aproximei-me de uma árvore. Abracei-a. E quando encostei a face no seu tronco rugoso, foi com se tivesse encostado a face na face de Deus.
Fontes:
www.ufpel.edu.br
Imagem = http://poesiasdasu.blogspot.com/2008/04/corao-ardente.html
... Mas eu dizia que na minha primeira juventude fui escritor. Pois é, escritor. Aliás, enveredei por todos os gêneros: poesia, romance, crônica , teatro... Fiz de tudo. E mais gêneros houvesse... Meti-me também na política, cheguei a escrever uma doutrina inteira para o meu partido. Mergulhei ainda na filosofia, ô Kant, ó Bergson!... Achava importantíssimo meu distintivo de filósofo, com uma corujinha encolhida em cima de um livro.
Calou-se. Havia agora no seu olhar uma expressão de afetuosa ironia. Zombava de si próprio, mas sem amargor.
Eu não sabia que não tinha vocação nem para político, nem para filósofo, nem para advogado, não tinha a menor vocação para nenhuma daquelas carreiras que me fascinavam, essa é a verdade. Tinha apenas um coração ardente, isto sim. Apenas um coração ardente, mais nada.
Meu filho Atos herdou o mesmo coração. Devo dizer-lhe que um coração assim é um bem. Não há dúvida que é um bem, mas um bem perigoso, está me compreendendo? Tão perigoso... Principalmente na adolescência, logo no começo da vida, no tão difícil começo. Meu pobre filho que o diga...
Calou-se apertando fortemente os lábios. Eu quis então romper o silêncio porque sabia do que aquele silêncio se carregava, mas não tive forças para dizer coisa alguma. O olhar do velho já denunciava as tristes lembranças que o assaltavam: qualquer tentativa para afastá-las resultaria agora inútil. E seria mesmo cruel.
Ele era inteiro um coração, prosseguiu o velho. E foi por saber tão bem disto que corri como um louco para casa quando me disseram que Leonor tinha morrido. Não, não fui nem pensei sequer em ir ao hospital porque adivinhei que ele não estava mais lá, devia ter ficado com a noiva até o último momento. Em seguida, devia ter voltado para casa.
Saí correndo pela rua afora, acenando para os carros que passavam já ocupados. Chovia, chovia horrivelmente. E eu acenava em vão para os carros, tentei mesmo agarrar-me a um deles, 'depressa, depressa, que meu filho vai se matar!' Corri tanto que quando cheguei, encharcado e exausto, atirei- me quase desfalecido nos degraus da escada. E ali fiquei de bruços, a olhar estupidamente uma formiguinha que se infiltrara numa fenda do degrau de pedra. A casa estava quieta. Quieta demais, pensei, erguendo-me de um salto. E precipitei-me aos gritos pela casa adentro, embora soubesse muito bem que ele não podia mais me ouvir, 'filho, não!'
O velho fez uma pausa. Acendi um cigarro. Que ao menos o ruído do fósforo riscado rompesse o silêncio que se abateu na sala. Fixei o olhar numa rosa do tapete puído. E só quando o velho recomeçou a falar é que tive coragem de encará-lo novamente. A imagem do filho, com o peito varado por uma bala, já passara para um plano remoto.
Atos herdou de mim esse tipo de coração. Gente assim ri mais, chora mais, odeia mais, ama mais... Ama mais, principalmente isto. Ama muito mais. E uma espécie de gente inflamável, que está sempre se queimando e se renovando sem parar. De onde nascem chamas tão altas? Muitas vezes não há nenhuma acha de lenha para alimentar o fogo, de onde vem tamanho impulso? Mistério. As pessoas param, fascinadas, em torno desse calor tão espontâneo e inocente, não? Tão inocente. No entanto, tão perigoso, meu Deus. Tão perigoso.
O velho soprou a brasa mortiça do cigarro de palha. Seu largo rosto bronzeado pareceu-me extraordinariamente rejuvenescido.
Como eu entendia bem aquele filho, eu que lhe transmitira o tal coração flamejante! Como se parecia comigo! Faltava-lhe, apenas, o meu senso de humor, ele matou-se com vinte anos.
Com vinte anos, eu já terminara três romances, duas peças, um livro de novelas e uma enorme epopéia da qual tirei a tal doutrina para o meu partido. Lia Bergson, Nietzsche, Shakespeare... Citava-os enfaticamente, com ou sem cabimento. E cada livro que lia, achava que era a obra máxima, meu guia; meu irmão, meu tudo. Isto até ler outro livro. Então punha de lado o anterior e imediatamente adotava o novo, achei o que queria, achei!... Tão desordenada avalanche de leituras me confundiu a tal ponto, que acabei por me perder e não conseguia mais me encontrar. Os heróis de meus livros me marcavam tanto, que de cada um ficava um pouco em mim: sorria como Fausto, investia como D. Quixote, sonhava como Romeu... Tive crises de angústia, fiquei completamente atordoado, infeliz. Como é que eu era afinal? Senti-me de repente vazio e perplexo, um personagem em absoluta disponibilidade diante do autor. E que autor era esse? Deus? Mas eu acreditava Nele? Não acreditava? A vida me dava náuseas. Mas não era ainda maior do que a náusea o pavor que eu tinha da morte? Que é que eu quero? Que é que eu faço?! - ficava a perguntar a mim mesmo até altas horas, a andar de um lado para outro no meu quarto enquanto meu irmão protestava no quarto vizinho, 'quer ter a bondade de ao menos tirar os sapatos?' As perguntas batiam em mim e voltavam e rebatiam como bolas de pingue-pongue numa partida infernal. Assaltava-me, às vezes, o desejo de poder, prestígio e ao mesmo tempo tudo me parecia de uma inutilidade atroz, 'para quê? por quê?' Meus amigos, tão descabelados quanto eu, vinham somar às minhas suas desesperadas dúvidas. E em debates que não acabavam nunca, varávamos a noite até a madrugada. Deitava-me com a garganta seca, exausto e deprimido, ainda mais perturbado do que antes. Um caos.
E eis que, aos poucos, foi-me dominando um desejo feroz de solidão. Senti-me o próprio lobo da estepe, incompreendido e só num mundo que já não falava a mesma língua que a minha. Abandonei o partido. 'Não é a doutrina que me decepcionou, mas os homens...', justifiquei no meu discurso de despedida, que por sinal achei uma obra-prima. Não acreditava mais nos meus companheiros de partido, naqueles homens que falavam o dia inteiro no bem coletivo, na felicidade do povo, no amor ao próximo. Tão idealistas, tão puros! E na prática, não conseguiam dar o mais miserável grãozinho de alegria à própria esposa, ao filho, ao cachorro... Diziam-se independentes, desapegados das vaidades mundanas. Mas quando eram postos à prova... Não era preciso mais do que um convite para uma festa importante, mais do que um aceno para a glória, não era preciso mais nada para transformá-los em reles bajuladores. E sua servidão era bem do estilo deles: fleumática, orgulhosamente dissimulada e por isso mil vezes pior do que a bajulação desmascarada. Tomei um nojo quase físico do gênero humano. Por que as palavras não coincidiam nunca com os pensamentos? Por que os pensamentos não coincidiam nunca com as ações?
Que farsa, pensei repugnado. Arranquei minhas malas de cima do guarda-roupa. Viajar, ir embora, sumir de qualquer jeito, para qualquer lugar! Não seria esta a solução? Minha mãe trouxe-me um bolo com vinte e uma velinhas, eu fazia vinte e um anos. Apaguei as velas de um sopro. E fui falar com meu pai:
- Vou abandonar os estudos, pai. Vou-me embora e não voltarei tão cedo.
Meu irmão, que era muito parecido com minha mãe, encarou-me friamente:
- Deixe de ser histérico, menino.
Meu pai ordenou-lhe que se calasse. E ouviu-me com a maior gravidade.
- A gente sempre volta, filho. Espere um pouco, não tome por enquanto nenhuma resolução.
Concordei em esperar. E olhei para minhas mãos vazias. Se ao menos pudesse agir! Cansara-me dos planos inúteis, das palavras inúteis, dos gestos inúteis... Fazer alguma coisa de útil, de nobre, alguma coisa que justificasse minha vida e que até aquele instante não tinha para mim o menor sentido. Mas fazer o quê?
'Amar ao próximo como a si mesmo', fiquei repetindo estupidamente, sem a menor convicção. Ah, sim, porque era fácil dizer, por exemplo, que eu não tinha nenhum preconceito de cor, que era completamente liberal nesse assunto, mas na hora de formar a rodinha dos amigos íntimos, daqueles que poderiam vir a se casar com minhas irmãs, nessa hora chamei por acaso algum negro para participar dela? Era fácil ainda encher a boca de piedade para com os assassinos e as prostitutas, mas o fato de não atirar-lhes pedras significava, por acaso, que um dia chegaria a tratá-los como irmãos? Como se fossem eu mesmo? Não passo de um egoísta, concluí. Um refinado hipócrita e egoísta. Sou capaz de me casar com uma priminha que apresenta todas as características de uma rameira mas jamais me casarei com uma rameira que seja uma santa em potencial. Hipócrita e egoísta! Burguesinho egoísta! - berrei dando um soco na vidraça da janela do meu quarto, enquanto minha mãe batia aflita na porta, certa de que eu me pegava ali dentro com alguém.
Sorri silenciosamente. O velho sorriu também. Seus olhinhos azuis pareciam agora maiores e mais brilhantes. Pôs-se a preparar novo cigarro. Era agradável o som da lâmina do canivete alisando a palha.
Tomei-me de tamanha irritação por mim mesmo que deixei de fazer a barba só para não topar mais com minha cara no espelho. Foi quando senti uma necessidade urgente de amar, de dedicar-me inteiramente a alguém, mas a alguém que precisasse de ajuda, de compreensão, de amor. Oferecer-me como bóia de salvação ao primeiro que me acenasse. No caso, não foi primeiro, foi primeira. E a bem da verdade devo dizer que ela não fez nenhum aceno: eu é que fui bater na sua porta para oferecer-lhe socorro. Seria um amor amargo, cheio de sacrifícios e renúncias, mas não era assim o amor que eu procurava? Acho que já disse que meu irmão era muito parecido com minha mãe. Eu saí parecido com meu pai que era um homem dos grandes impulsos, dos grandes gestos, das grandes paixões. Meu infortúnio parecia-me, até aquele momento, demasiado medíocre: ansiava agora por ser grandemente desgraçado, isto é, amar e ainda por cima escolher mal o objeto do meu amor.
Por uma dessas banais ironias, o prostíbulo situava-se no alto da Ladeira da Glória. Ladeira da Glória, doze. Lembro- me bem de que era um casarão pardo e velho, cheio de ratos que corriam sem nenhuma cerimônia pelos corredores e de mulheres que trançavam seminuas, com menor cerimônia ainda.
Encontrei-a fazendo as unhas. Na maioria das vezes em que a visitei encontrei-a lidando com seus petrechos de unhas ou então bordando miçangas em alguma roupa, tinha mania com miçangas. Se pudesse, creio que até nas cobertas da cama pregaria as tais continhas. E tinha mania com as unhas que eram realmente perfeitas. A cabeleira podia estar em desordem, a pintura do rosto, desfeita, mas as unhas ah, essas deviam estar sempre corretíssimas! Tinha a pele muito branca, com ligeiros vestígios de sardas e cabelos ruivos, muito curtos e encaracolados. Parecia uma cenourinha. Não era bonita, mas quando sorria... Havia tamanha ternura no seu sorriso, uma ternura assim tão espontânea, tão inocente, que chegava a me comover, 'como pode ser, meu Deus?! Como pode ser?!...' Ela voltava para mim os olhinhos redondos como bolinhas de vidro verde: 'Como pode ser o quê?' Então era eu quem sorria. 'Nada. Nada.'
Chamava-se Sandra, mas quando eu soube que seu nome verdadeiro era Alexandra, Alexandra Ivanova, emocionei-me. Descendia de russos. Vi nela uma personagem de romance e eu mesmo me vi na pele suave d'o Idiota, tão cheio de pureza e de sabedoria, 'que faz você sob este céu azul, provavelmente azul?' Atendendo o telefone, a dona da pensão não permitiu, no entanto, que eu encaixasse ali minha citação quando informou-me que Sandra não podia vir falar comigo porque estava muito ocupada. Desliguei atirando o fone no gancho:
- E ainda chama a isso de ocupação!...
Meu irmão, que estava ali ao lado, bateu-me tranqüilamente no ombro:
- Você me dá a impressão de estar o dia todo com a espada desembainhada. Não é cansativo?
Saí sem dar resposta. Mais tarde, bem mais tarde acabamos sendo ótimos amigos. Mas naquela época era impossível haver qualquer entendimento entre nós.
Alexandra tinha vinte e cinco anos e era completamente analfabeta. Mas eu queria uma criatura assim primitiva e xucra, atirada numa pensão de última classe. Seria preciso ir buscá-la no fundo, bem lá no fundo e trazê-la aos poucos para a luz, devagarinho, sem nenhuma precipitação. Era um jogo que exigia paciência, sim, e eu não tinha nada de paciente. Mas a experiência era fascinante.
Três vezes por semana eu ia vê-la, sempre no fim da tarde, quando o mulherio e os ratos pareciam mais tranqüilos em suas tocas. Costumava levar-lhe um presentinho, pequeninas coisas de acordo com minha discretíssima mesada: pacotinhos de bombons, lenços, enfeites de toucador... Assim que eu chegava ela olhava ansiosamente para minhas mãos, como criança em dia de aniversário. E recebia, radiante, as insignificâncias. 'Alexandra. A-le-xan-dra...' eu gostava de repetir lentamente, destacando bem as sílabas. Nos instantes mais graves da minha doutrinação, chamava-a dramaticamente pelo nome todo: Alexandra Ivanova. Ela então desatava a rir.
A princípio, tive um certo trabalho para explicar-lhe que nossa amizade tinha que ser uma coisa de irmão para irmã. Ofendeu-se um pouco:
- Quer dizer que você não quer nada comigo?
- Quero, Alexandra. Quero tudo com você. Mas antes, precisamos conversar muito.
Ela sorria. Quando sorria, chegava a ficar bonita.
- Você é complicado.
- Não, Alexandra, não é isso, mas o caso e que há coisas mais importantes na frente, precisamos antes nos entender, nos amar para então... Você precisa se preparar para ser minha. Minha para sempre, ouviu bem?
- Ouvi. Mas você é complicado, sim.
Mais facilmente do que eu esperava ela acomodou-se logo àquele novo tipo de relacionamento. Era de natureza mansa, indolente. Recebia-me com seu sorriso afável, desfazia o pacotinho, interessava-se alguns instantes pela novidade do presente e em seguida punha-se a lidar com suas eternas miçangas. Bordava miçangas verdes numa blusa preta. Antes que eu me fosse, acendia a espiriteira, preparava o chá e me oferecia uma xícara com umas bolachas que tirava de uma lata com uma borboleta de purpurina na tampa.
- Acho que você é padre - disse-me certa vez.
Achei graça e respondi-lhe que estava muito longe de ser isso. Não obstante, ela ainda me olhava com um sorrisinho interior:
- Acho que você é padre, sim.
Mostrei-lhe então o absurdo daquela suspeita mas até hoje desconfio que Alexandra não se convenceu nada com a minha negativa. E se não voltou a tocar no assunto, foi porque sua natural indolência a impedia de pensar mais de dois minutos sobre qualquer problema. Dissimulava ceder logo aos primeiros argumentos por simples preguiça de discutir.
- Você fala tão bem - ela me dizia de vez em quando, para me animar. - Fale mais.
Com a dolorosa impressão de que minhas palavras borboleteavam em redor de sua cabeça e se iam em seguida pela janela afora, redobrava meus esforços, tentando seduzi- la com temas nos quais ela parecia se interessar mais: Deus, amor, morte... Ela fazia pequenos sinais afirmativos com a cabeça enquanto ia bordando seu labirinto de contas. Quando eu me calava, pedia:
- Fale mais.
E daí por diante só abria a boca para cortar nos dentes o fio de linha da agulha.
Às vezes, eu tentava me convencer de que havia naquele silêncio de Alexandra profundidades insondáveis, mistérios, sei lá!... Sempre achara um encanto especialíssimo nas mulheres silenciosas. Agora tinha na minha frente uma que quase não falava. E então? Não era isso que eu queria? Não era mesmo um amor difícil aquele que eu buscara? Há vinte e cinco anos, praticamente há vinte e cinco anos ela estava naquela vida. A bem dizer, nascera ali. Vinte e cinco anos de mentiras, vícios, depravações. Não seria mesmo com meia dúzia de palavras que eu iria remover toda aquela tradição de horror.
Pedia-lhe o fim das suas tardes, nada mais do que o fim das suas tardes, à espera sempre de que espontaneamente ela fosse abrindo mão também de suas noites de comércio infernal. Mas não. Alexandra me ouvia muito atenta, retocava o esmalte de alguma unha, lidava com suas miçangas, oferecia- me chá com bolachas e assim que eu saía, recomeçava com naturalidade sua vida de sempre. Minha exasperação chegou ao máximo quando descobri que ela estava longe de se considerar infeliz.
- Mas Alexandra, será possível que você está contente aqui? - perguntei-lhe certa tarde.
- Estou contente, sim. Por quê?
Emudeci. Eu tinha justamente acabado de lhe falar sobre um pensionato de moças transviadas, para onde pretendia levá- la. Diante do seu desinteresse pelo meu plano, fiz-lhe a pergunta cuja resposta me deixou perplexo.
- Alexandra Ivanova, você está vivendo no inferno! Não vê que você está vivendo no inferno?!
Ela lançou em redor um olhar assustado:
- Mas que inferno?
Olhei também em torno: o usino de feltro azul, sentado no meio das almofadas em cima da cama, a mesa de toalete cheia de potes de creme e de pequeninos bibelôs, o guarda-roupa com malas e caixas cuidadosamente empilhadas no topo, o coelho felpudo em cima da cadeira, a mesinha coberta com uma toalha que devia ter 4 sido a saia de um vestido ramado... Num canto da mesa, duas xícaras, um bule, a lata de bolachas e o açucareiro com rocinhas douradas, presente meu. Todo o quarto tinha o mesmo ar indolente da sua dona.
- Para que um lugar seja o inferno, está claro que não é preciso a presença do fogo - comecei fracamente. Toquei-lhe no ombro. - O inferno pode estar aí.
Ela riu. Em seguida, ajoelhou-se, pôs a cabeça no meu colo e ali ficou como um bichinho humilde e terno. Tomei-a entre os braços. Beijei-a. E descobri de repente que a amava como um louco, 'Alexandra, Alexandra, eu te adoro! Te adoro!...
Naquela tarde, quando a deixei fui como um tonto pela rua afora, a cabeça estalando, os olhos cheios de lágrimas, 'Alexandra, eu te amo...' Crispei desesperadamente as mãos ao me lembrar de que dentro em pouco, de que naquele instante mesmo talvez um outro... 'Vou me casar com ela', resolvi ao entrar em casa. Minha família tinha que aceitar, todos tinham que aceitar aquele amor capaz de mover sol e estrelas, '1'amor che muove il sole e l'altre stelle'... Mas nem Dante nem eu sabíamos que era mais fácil mover a Via- Láctea do que mover minha pequena Alexandra da Ladeira da Glória para o Pensionato Bom Caminho.
Uma tarde, nossa última tarde, encontrei-a arredia, preocupada. Hesitou um pouco, mas acabou me dizendo que a dona da pensão não queria mais saber das minhas visitas.
Perguntei-lhe o motivo.
- Ela acha que você quer me tirar daqui para me explorar noutro lugar.
Fiquei sem poder falar durante alguns minutos, tamanha cólera se apossou de mim.
- Mas Alexandra... - comecei, completamente trêmulo. Dei um murro na mesa. - Chega! Amanhã mesmo você vai para o pensionato, está me entendendo? Já arranjei tudo, você ficará lá durante algum tempo, aprendendo a ler, a rezar, a ter boas maneiras...
Alexandra arrumava sua caixinha de miçangas. Sem levantar a cabeça, interrompeu-me com certa impaciência:
- Mas eu já disse que não quero sair daqui.
- O quê?!
- Eu já disse que não quero sair daqui, logo no começo eu disse isso, lembra? Sair daqui, não.
Respirei profundamente para readquirir a calma, como aprendera num método de respiração iogue.
- Será possível, Alexandra Ivanova, será possível que você também está pensando que... - comecei num fio de voz e nem tive forças para terminar.
- Pois se eu soubesse que você está querendo me agenciar, iria até de muito bom grado, o que não quero é essa história de pensionato. Pensionato, não.
Escancarei a janela que dava para o quintal da casa. Lembro- me de que havia ali uma mulher loura com uma toalha nos ombros, secando os cabelos ao sol. Acendi um cigarro. Minha mão tremia tanto que mal consegui levar o cigarro à boca.
- Alexandra, você precisa ficar algum tempo num lugar direito, decente, antes de... de nos casarmos. Já conversamos tanto sobre tudo isso, ficou assentado que você iria, já conversamos tanto a esse respeito! Será possível?...
Ela pousou em mim os olhos redondos. E falou. Foi a primeira e a última vez que a ouvi falar tanto assim.
- Não conversamos nada. Foi só você que abriu a boca, eu escutava, escutava, mas não disse que queria ir, disse?
Disse por acaso que queria mudar de vida? Pois então. Gosto daqui, pronto. Mania que vocês têm de querer me baldear, foi a mesma coisa com aquelas três velhas da Comissão Pró não- sei-mais-o-quê. Ficaram uma hora inteira falando. Depois escreveram meu nome numa ficha e ficaram de voltar na manhã seguinte. Graças a Deus não apareceram nunca mais. Agora vem você... Por que é que você complica tanto as coisas?
Primeiro, aquela história de ficarmos que nem dois irmãos, agora que tudo ia tão bem, tinha que me inventar essa bobagem do pensionato. Por que é que você complica tudo?
Fiquei aturdido.
- Quer dizer que você não me ama.
- Amo, sim. Amo - repetiu brandamente. - Mas estamos tão bem assim, não estamos? Além do mais, você pode amanhã mudar de idéia, me deixar. E meu futuro está aqui.
Aproximei-me dela. Comecei por arrancar-lhe das mãos os pacotinhos de miçangas e atirei-os longe. Em seguida, agarrei-a pelos cabelos e esmurrei-a tanto, mas tanto, que quase quebrei minha mão. Ela pôs-se a gritar e só se calou no instante em que a joguei com um safanão sobre a cama.
Disse-lhe então as coisas mais duras, mais cruéis. Ela enrolou-se nas cobertas, como um bichinho apavorado, escondendo o rosto que sangrava. E não me respondeu.
Um arrependimento brutal apertou meu coração. Tive vontade de me golpear na cara. E suplicar-lhe, de joelhos, que me perdoasse. Mas continuei inflexível:
- Devia era te matar.
Ela ergueu a cabeça. E como percebesse que eu não cogitava mais de agredi-la e muito menos de matá-la, levantou-se, lavou o rosto na bacia e choramingando, choramingando, pôs- se a catar as miçangas que eu espalhara pelo chão. Parecia mais preocupada com as miçangas do que com o próprio rosto que já começava a inchar. Em nenhum momento me insultou, como seria natural que fizesse. No fundo, tinha por mim um extraordinário respeito, o que me leva até hoje a crer que jamais ela tirou da cabeça aquela suspeita de ser eu um padre disfarçado.
Apanhei a capa e o Código Civil que caíra do meu bolso Tinha vontade de morrer.
- Você vem amanhã? perguntou-me ainda de cócoras, as mãos cheias de continhas vermelhas.
Confesso que até hoje não sei bem que resposta ela queria ouvir. Desci a escada. E só então compreendi o motivo pelo qual ninguém ouvira os gritos de Alexandra: o rebuliço na casa era total. O mulherio gesticulava, falava, chorava, trançando de um lado para outro como um punhado de baratas em chapa quente de fogão. Vi que o tumulto se irradiava de um quarto no fundo do corredor. As portas do quarto estavam escancaradas.
Entrei. Estendida na cama, coberta com um lençol, estava uma moça morta. Na mesinha ao lado, uma garrafa de guaraná e a lata aberta de formicida. No chão, os cacos de um copo.
Desviei da morta o olhar indiferente. Suicídio. E daí? Podia haver fecho mais digno para aquela vida enxovalhada?
Sentada na cama, uma mulher chorava sentidamente, assoando- se na toalha que tinha nos ombros: era a mesma mulher que eu vira no quintal, secando os cabelos. Três outras mulheres revolviam estabanadamente as gavetas da cômoda.
Fiquei a olhar a cena com a maior indiferença. Era essa mesma a vida e a morte que ela escolhera, não era? E então? Por que a surpresa? O escândalo?...
Acendi um cigarro e encostei-me ao batente da porta. Tamanho desinteresse acabou por irritar a mulher da toalha nos ombros e que parecia a mais ligada à morta. Voltou-se para mim:
E você aí, com essa cara... Está se divertindo, está? Vocês, homens, são todos uns cachorros, uns grandessíssimos cachorros, isso é o que vocês são! Por causa de vocês é que a pobrezinha se matou. Só dezoito anos, uma criança ainda!
- Criança que gostava deste brinquedo, hem? - perguntei lançando um olhar em redor. E tive que me abaixar em seguida para fugir do sapato que ela me atirou.
- Seu sujo! Ainda fala assim, o sujo! Saiba que Dedê era muito direitinha, uma menina muito direitinha. Todos os dias vinha se queixar para mim, que não agüentava mais, que tinha horror disto, que não via a hora de ir embora, 'quero minha mãe, quero minha mãe!' ela me pediu chorando tanto que não agüentei e chorei junto com ela também. - A mulher fez uma pausa para assoar-se furiosamente na toalha. - Quantas vezes ela me disse que queria viver uma vida igual à de qualquer moça por aí, com sua casa, seu marido, seus filhos... Caiu aqui, mas ficou esperando que algum dia viesse um homem bom que a levasse... Mas vocês são todos uns bandidos. Quem pensou em dar a mão para ela? Quem?
Pela primeira vez olhei realmente a morta. Tinha no rosto fino uma beleza frágil. Deixei cair o cigarro.
- Ela esperou então que alguém viesse?
- Esperou, esperou. Mas de repente perdeu as forças, foi isso... Bem que ela me disse ainda ontem que não ia agüentar mais, bem que ela disse! Mas a gente diz tanta coisa, eu não acreditei...
Afastei-me para deixar passar os homens da policia. Inclinaram-se sobre a suicida. Agora eu só podia ver o delicado contorno dos seus pés sob o lençol.
Fui saindo do quarto. Mas então? Então... Toquei na maçaneta negra da porta: era ali que eu devia ter batido, era ali, tudo não passara de um pequeno equívoco. Um simples equívoco de porta. Alguns metros menos e...
A tarde estava luminosa e calma. Cruzei os braços. Mas não era mesmo incrível? Coisa mais desconcertante, mais estúpida...
Sentei-me na calçada, com os pés na sarjeta. E de repente comecei a rir. E ri tanto, mas tanto, que um homem que passava, ao me ver rindo tão gostosamente, nu-se também. Ah vida louca, completamente louca, mas de uma loucura lúcida, cheia de nexo nos seus encontros e desencontros, nos seus acasos e imprevistos! Falsa demente, tão ingenuazinha e tão astuta na sua falta de lógica, cheia de misterioso sentido na sua confusão tão calculada, tão traiçoeiramente calculada. Uma beleza a vida!
Baixei o olhar para a sarjeta: entre duas pedras tortuosas, uma pequenina flor apontava sua cabecinha vermelha. Parecia- se com Alexandra. Toquei-lhe na corola tenra. E senti os olhos úmidos. - Minha florzinha tonta - disse-lhe num sussurro - você é tão mais importante do que todos os livros, tão mais importante... Você está viva, minha querida. E que extraordinária experiência é viver!
Ergui-me de cara voltada para o sol. Aproximei-me de uma árvore. Abracei-a. E quando encostei a face no seu tronco rugoso, foi com se tivesse encostado a face na face de Deus.
Fontes:
www.ufpel.edu.br
Imagem = http://poesiasdasu.blogspot.com/2008/04/corao-ardente.html
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