segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Vicência Jaguaribe (O Samba, da Ficção à Realidade)

A trama da novela “Lado a Lado”, produzida pela Rede Globo e transmitida no horário das seis, ambienta-se no Rio de Janeiro, então capital da recém-proclamada república. O ambiente histórico-social é o do início do século XX, poucos anos após a abolição da escravatura, quando os negros, embora libertos, viviam ainda sob o tacão dos brancos.

Morando nos morros, em situações precárias, os ex-escravos, negros ou mulatos, não frequentavam os lugares frequentados pelos brancos nem tinham acesso ao estudo e ao trabalho bem remunerado. Viviam, pois, de biscates. Homens pobres, negros (e também brancos), que haviam ingressado na Marinha, eram humilhados e até recebiam castigos físicos, o que provocou a Revolta da Chibata, insurreição dos marinheiros da Marinha Brasileira, em cujo primeiro dia houve ameaça de bombardeamento da cidade do Rio de Janeiro, mas os revoltosos tiveram de se render. As mulheres viviam como criadas nas casas de famílias endinheiradas ou vendiam doces e outras comidas, cujas receitas vieram da terra de seus antepassados. Porém, principalmente, eram com frequência assediadas sexualmente pelos brancos, como se ainda vivessem na senzala.

Preservar as tradições de seus ancestrais trazidos contra a vontade da mãe África era a única maneira de construir uma identidade negra. Mas a sociedade dos brancos criava empecilho a esse desejo de individualidade coletiva, considerando ilegal a prática da capoeira e dos ritos religiosos africanos.

Focaliza-se, então, o momento em que surgiu o samba e a reação da sociedade branca àquele ritmo primitivo, de sensualidade explícita. E é esse o ponto mais interessante da novela: os brancos racistas e imunes às transformações e ao advento de uma nova era, lutando para ignorar o ritmo que nascia da musicalidade inerente aos negros e que acabou sendo adotado como o ritmo brasileiro por excelência.

É interessante pensar nessa luta — que acabou gloriosa — hoje, no ano de 2013, nestes dias de carnaval, momento da apoteose do samba e dos sambistas, muitos dos quais descendentes de escravos e herdeiros da genialidade e da coragem dos primeiros sambistas. Eles, os sambistas de hoje, que, em bom número, ainda moram nos morros do Rio de Janeiro e que são, pelo menos durante os dias de carnaval, respeitados e homenageados como os legítimos representantes da brasilidade.

Agora, saiamos um pouco do universo ficcional da novela e entremos na máquina do tempo. Tentemos reconstituir o mundo da realidade em que surgiu o samba.

Comecemos com a origem e o significado da palavra samba. Segundo consta nos variados estudos sobre o assunto, tem o vocábulo origem no termo africano semba, cujo significado é rejeitar, separar. Esse elemento lexical denominou uma dança, a “umbigada”: no centro de uma roda formada por homens e mulheres que batem palmas, fazem coro e tocam instrumentos de percussão, o dançarino solista, com requebros, dá uma umbigada em um companheiro da roda, que vai substituí-lo no centro. Outros instrumentos, importantes para o samba como hoje o conhecemos, foram sendo inseridos nessas manifestações de dança: o ganzá, a cuíca, o reco-reco, o pandeiro.

Mas, ao que parece, o samba cantado está diretamente relacionado às cantigas dos negros nas senzalas, associadas ao ritmo das umbigadas. Esse canto era marcado por uma estrofe solo, com um refrão fixo cantado em coral, como resposta. Essa é uma estrutura tipicamente africana.

Para que surgisse o samba propriamente dito, somou-se uma conjunção de influências: da umbigada, do lundum ou lundu e do maxixe, considerado uma versão nacional da polca, ritmo ao qual foram introduzidos passos sensuais.

Pode-se determinar o espaço físico do surgimento do samba: a cidade do Rio de Janeiro, em uma área conhecida na época como Pequena África — mais especificamente Cidade Nova —, território que compreendia o eixo que vai da Avenida Presidente Vargas ao canal do Mangue, cujos extremos eram a zona do porto, o Centro tradicional e o bairro do Estácio. Concomitantemente surgem, no Rio de Janeiro, os primeiros ranchos carnavalescos, oriundos dos ranchos baianos da Folia de Reis, uma manifestação, pois, da cultura tradicional baiana na cidade. A informação da inserção de elementos da tradição baiana no Rio de Janeiro é importante: os boêmios, músicos e cantores reuniam-se nas casas de mulheres baianas, que organizavam as festas e os desfiles carnavalescos da comunidade.

Essas baianas, chamadas tias, proporcionaram o ambiente para o surgimento do samba, gênero novo na música popular brasileira. Foi na casa de tia Dadá que o compositor carioca Caninha ficou conhecendo o samba-raiado, chamado depois samba de partido-alto, cuja característica era o improviso cantado em forma de desafio por dois ou mais solistas.

A mais famosa dessas baianas, no entanto, foi a tia Ciata — Hilária Batista de Almeida —, baiana de Santo Amaro da Purificação, terra de Caetano Veloso e de Maria Bethânia. A casa de tia Ciata, em cujas festas rolava cachaça em excesso, era frequentada por figuras como Pixinguinha, João da Baiana, Sinhô e Donga. Aliás, uma versão dos fatos diz haver sido Donga o autor do primeiro samba brasileiro, Pelo telefone, composto em 1916, versão contestada pelos outros frequentadores da casa de tia Ciata, com o argumento de que o que se compunha ali era coletivo.

Mas a polêmica em torno do samba Pelo telefone vai além de sua autoria. Há mais de uma versão de sua letra. A versão gravada pela Casa Édison, em 1917, diz o seguinte: O chefe da folia / Pelo telefone / Manda me avisar / Que com alegria / Não se questione / Para se brincar. Outra versão, essa usada pelos que se sentiram lesados por Donga e afirmavam que a letra da música era coletiva, traz os seguintes versos: O chefe da polícia / Pelo telefone / Manda me avisar / Que na Carioca / Tem uma roleta / Para se jogar. Como se vê, é a versão não oficial, isto é, a não gravada na época, a mais aceita hoje. Essa versão, inclusive, está apoiada pelo contexto da época: em maio de 1913, o jornal “A noite”, para denunciar a incapacidade da polícia do Rio de Janeiro, mandou instalar uma roleta no Largo da Carioca, 14, em frente à sua sede. Os repórteres convidavam os passantes a jogar. No dia seguinte, o próprio jornal publicou uma reportagem com o título “O jogo é livre”.

Donga, anos depois, reconheceu que o samba não fora composição sua. Ele simplesmente aproveitara versos das trovas populares.

Finda a visão histórica do nascimento do samba, voltemos ao universo ficcional da novela. Há no teleteatro em foco um casal que poderia muito bem haver existido na realidade: o negro Zé Maria e a mulata Izabel. Ele entrou na Marinha, foi humilhado e chicoteado. Revoltado, insurge-se contra o comandante do navio e participa da “Revolta da Chibata”. Zé Maria foi expulso da Marinha e preso.

Izabel, que no momento da revolta estava noiva de Zé Maria, sem saber que o noivo havia sido preso, sentiu-se abandonada. Desgostosa e carente, acabou seduzida pelo filho branco de um senador da República, e engravida. A esposa do senador fez tudo para separar o filho — um rapazote irresponsável e contumaz sedutor de mulatas — de Izabel, que, aliás, não o amava. A baronesa, como gostava de ser tratada, simulou, inclusive, a morte do neto.

Na época, apresentava-se, no Rio de Janeiro, uma dançarina francesa, que se interessou pelas manifestações artísticas do morro e convidou Izabel a ir com ela para a França divulgar o novo ritmo oriundo das danças e cantigas dos escravos. Izabel, sem notícias de Zé Maria e sofrendo com a perda do filho, acompanha a dançarina. Na França, é sucesso. Estava, assim, começando a internacionalizar-se o samba, ritmo rejeitado pelos  brasileiros da época, grande parte dos quais ex-proprietários de escravos. Não aceitavam os novos tempos e não admitiam que uma dança de movimentos lascivos e ritmo primitivo fosse aceita e aplaudida pela sociedade e representasse o Brasil no exterior.

Projetemos um episódio fantástico. Imaginemos que fosse dado à sociedade carioca, racista e conservadora do início do século XX assistir aos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Imaginemos aqueles senhores tradicionalistas e bem postos na vida, acreditando em uma origem puramente europeia, e aquelas senhoras compenetradas e cientes de sua condição e origem, vendo a apoteose do samba e dos sambistas, em uma festa cujos lugares de destaque são ocupados por negros e mulatos de várias tonalidades de pele; assistindo a uma festa cuja atração principal é a figura escultural e praticamente nua da mulata, aplaudida de pé por homens e mulheres brancos, brasileiros e estrangeiros vindos de todas as partes do mundo.

Que aconteceria às nossas personagens de ficção? Continuariam a comportar-se como escravocratas empedernidos, imunes às inovações socioculturais, ou mudariam de atitude, diante daquelas brônzeas estátuas vivas, dançando no ritmo sensual do samba?

Quem poderá responder a essas questões provenientes de uma situação surrealista? Ninguém, é claro. Mas que esse exercício de imaginação nos leve a refletir sobre a maneira como ainda é tratado em nossa sociedade esse povo que tanto contribuiu para o fortalecimento de nossa cultura e para a formação de uma identidade reconhecida lá fora como indiscutivelmente brasileira — própria do país do carnaval, que vive, nestes dias, mais um carnaval.

Fontes:
A Autora
Imagem = http://www.blogcartaobom.com.br/2012/11/dia-do-samba/

Mário Quintana (Data e Dedicatória)

Teus poemas, não os dates nunca...  Um poema
Não pertence ao Tempo... Em seu país estranho,
Se existe hora, é sempre a hora estrema
Quando o anjo Azrael nos estende ao sedento
Lábio o cálice inextinguível...
Um poema é de sempre, Poeta:
O que tu fazes hoje é o mesmo poema
Que fizeste em menino,
É o mesmo que,
Depois que tu te fores,
Alguém lerá baixinho e comovidamente,
A vivê-lo de novo...
A esse alguém,
Que talvez ainda nem tenha nascido,
Dedica, pois, os teus poemas.
Não os dates, porém:
As almas não entendem disso...

Fontes:
"Baú de Espantos", 4ª ed., Editora Globo, SP
Imagem = http://www.tempodepoesia.name

Flávia Muniz (O Espelho e a Perua)

A confusão começou
Certa vez, no galinheiro,
Quando as aves encontraram
Um espelho no terreiro.
Uma galinha vaidosa
Logo quis contar vantagem:
— Com licença, galináceas,
Vim conferir minha imagem!
A pata, torcendo o bico,
Comentou com a vizinha:
— Não vale arrancar as penas
Pra parecer mais magrinha!
E qual não foi a surpresa
Das aves estabanadas:
No reflexo do espelho
Só tinha coisas erradas!
Quem era alta e bela
Viu-se feiosa e baixinha.
Quem era gorda e forte
Ficou magrela e fraquinha.
— Credo! — grasnou o marreco.
— Cruzes! — o pinto piou.
— Incrível! — cantou o galo.
E o papagaio berrou.
A galinha carijó
Foi quem depressa falou:
— Este espelho tem feitiço...
Foi a bruxa que o mandou!
— Mentira! — disse a perua,
Balançando as pulseiras.
— Li esse conto de fadas,
Vocês só dizem besteiras!
Estufou-se, bem danada,
Mostrando o papo vermelho.
E com pose de malvada
Fez a pergunta ao espelho:
— Espelho, espelho meu!
Responda se há no mundo
Outra ave mais bonita,
Mais charmosa e elegante,
Mais esperta e fascinante,
Mais incrível e imponente,
Mais formosa do que eu?
Diga logo, espelho meu!!
Os bichos, impressionados,
Ouviram com atenção
A resposta do espelho
A tamanha pretensão:
— Se você quer a verdade,
Vou dizê-la, nua e crua.
E mostrar a realidade
Para uma simples perua.
Você disse que é esperta,
Imponente e charmosa.
Mas parece antipática,
Falando assim, toda prosa.
Desfila o ano inteiro
Como se fosse a tal.
Mas foge do cozinheiro
Quando chega o Natal!

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 3. Rufina

-"Entre, Rufina."

Quando eu voltava, hoje, para casa, lendo uma folha da tarde, ouvi soar essa frase num dos bancos dianteiros. Instintivamente, olhei: Quem a proferira fora um senhor idoso, com uma grande cara bonacheirona e sonsa, dirigindo-se a uma rapariga que, não sei por que motivo, parecia hesitar sobre o estribo, como uma baratinha machucada.

O bonde estava parado. Quando o homem acabava de falar, o carro subitamente arrancou, e a moça ia perdendo o equilíbrio, soltando um desses guinchos de boneca rapidamente apertada na barriguinha. Dei um salto, voei, e quando caí em mim estava agarrando a jovem por um dos braços com a energia de um guindaste, enquanto os passageiros se levantavam à uma, como se o bonde fosse peneira de sururucar em movimento, e eles quirera.

Larguei logo a presa, que, cabisbaixa e ruborizada, foi para perto do senhor idoso. Como este me fizera uma cortesia, agradecendo a intervenção, aproveitei-me da oportunidade para pedir desculpas à menina, ainda arrufada do incidente, de a ter agarrado um pouco à bruta, no receio de a ver sofrer uma queda. Ela riu-se, com uma pontinha de desdém.

-"Queda? Ah! disso não havia perigo. Tomo o bonde em movimento a cada passinho!"

Curvei a cabeça com dignidade, como quem deliberadamente interrompe uma situação
delicada; recostei-me, e recomecei a leitura da minha gazeta. Tentei recomeçar. Mas não podia dar com o seguimento do artigo em que viera mergulhado. As seções tinham feito um chassêcroasê completo. Trechos vistosos, que antes me saltavam aos olhos, agora andavam brincando de Maria-condê pelas oito páginas do diário. Cheguei a desconfiar que alguma página se houvesse evaporado. E, na correnteza das minhas emoções embrulhadas, a consciência apenas tinha força para me sussurrar:

"Toma, burro! Bem feito. Por que é que te meteste? Por que é que não a deixaste periclitar à vontade?"

Já então, o gesto da moça, que fora quase imperceptivelmente abespinhado -também, com aquele susto -me reaparecia, em imagem, todo a arder em pura má criação. Cheguei a sentir por ela uma espécie de ódio. (Digo espécie de ódio, porque teria remorso, caso julgasse o meu coração à ligeira, capaz de tão grosseiro sentimento. O amor da justiça é inato nas almas; todos temos infinitos escrúpulos em sentenciar contra nós mesmos.)

Como quer que seja, no aceso da raiva, afastei um pouco o meu paravento, isto é, o meu jornal, e dardejei contra a rapariga uma torva olhadela de esguelha. Ela estava agora voltada para mim, de um modo repassado e calmante, olhando-me com esse ar de complacência desinteressada com que se contempla um animal de jardim zoológico. Dei imediatamente à minha olhadura envenenada o ar mais neutro e casual que foi possível. Sorri. Ela sorriu. Aquilo foi como se um céu borrascoso de repente clareasse, todo florido de nuvenzinhas recém-nascidas, castas como roupa lavada ao sol. Sorri, mais docemente. Ela baixou as pálpebras pestanudas e deu meia volta ao rosto moreno e rosado sobre cuja superfície; dura e lisa como a de uma figura de biscuít, o fumo de um cigarro vizinho punha a indecisão aérea de um tenuíssimo nevoeiro. E ainda sorria; e pude perceber que por entre a franja dos cílios a sua íris umidamente faiscava, enviesada para o meu lado, embutida numa sedosa penumbra. E os cílios palpitavam.

ainsi qu'un noir feuillage où filtre un long rayon d'étoile.

Nisto, o velho bezerrão fez sinal ao condutor e, na sua voz plácida: "Vamos, Rufina; mas não caia!" A moça riu-se de boa vontade, como um lindo modelo para anúncio de dentifrício; fez-me um cumprimento de cabeça, largo e cordial, e saltou, acompanhada pelo velhote.

Vieram-me ímpetos de saltar igualmente, mas uns temores me agarraram ao banco, pelos fundilhos, como cola. Não me acharia ela ridículo. Não daria o meu ato na vista dos passageiros? Refleti que este receio era estúpido. Eu tinha o sagrado direito de saltar onde quisesse. Demais, como é que se podia decentemente receber um sorriso de mulher bonita, sem a seguir, ainda que a custo de algum risco?

Ia eu refletindo, quando olhei para trás: Rufina tinha desaparecido. Bolas! Encolhi-me, num acabrunhado desprezo de mim mesmo, e deixei o bonde rodar. Quando dei acordo de mim, era o único passageiro restante e estava no fim da linha. Só, só na solidão do carro vazio. Só e triste como a fruta murcha que ficou no fundo do cesto. A voz do condutor português rolava, irônica, conclusiva, retumbando-me na alma como a voz do pai de Hamlet nos subterrâneos de Elsenor:

Pooonto finale!!!

Fonte:
Domínio Público

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Amadeu Amaral (Memorial de um Passageiro de Bonde) 2. Um Soneto

Saí, hoje, de casa maquinando um soneto. Não foi culpa minha, mas obra do acaso. Lendo um jornal, depara-se-me, perdido no entrecho de uma notícia ordinária, em que se narrava a prisão de uma negrinha gatuna, este retalho de frase: "Toda a ilusão da triste Gabriela..." -Magia do número! Não foi sem razão, ó sombra venerável de Pitágoras! que a pressentiste por tudo nas esferas como nas almas. Repeti duas, três, dez vezes esse pedaço de frase vulgar, que é um verso inteiro e excitante. Gabriela alvejou-se-me e transfigurou-se-me logo na remota imagem de uma linda pessoa que de repente se vira nua de toda ilusão, nua como lady Godiva montada num asno, em meio da praça. Comecei a compor... não, começou a compor-se em mim um soneto:

Já não tens ilusão, ó Gabriela!
Nega-ta o amor, essa comédia triste.
Nega-ta a vida. E em tudo quanto existe,
O espinho do real se te revela.

Subi para o bonde a escandir mentalmente esses decassílabos, que para ser sincero comigo mesmo, não me pareceram maravilhosos. Mas alentava-me a esperança de que pudessem ir melhorando do meio para o fim do soneto. -O que me apepinava um bocado era que as rimas aproveitáveis não se deixavam pegar como frangos de pés amarrados. A memória, afeita a servir-me os torresmos do vocabulário trivial, só me deparava coisas como fivela, moela, espinhela, chiste, alpiste, que não se coadunavam à pura nobreza da inspiração. Encolhi-me, cerrei as pálpebras e atirei-me à caça de boas rimas, exercício muito útil, para refrescar as idéias e especialmente indicado como passatempo higiênico e divertido para homens atarefados, nas horas vagas.

Ia engolfado nesse labor -Cellini do verso! - quando senti que uns dedos me bicavam no ombro. Voltei-me, era o meu amigo Fabiano Alves, prático de farmácia meu vizinho. Bom homem, mas confiado, e ainda com a particularidade esquisita de se achar sempre numa temperatura espiritual completamente diversa da minha.

-"Está calculando?" indagou.

Tive ganas de lhe perguntar que conta lhe fazia que eu estivesse calculando ou voando muito acima do lodaçal do mundo, onde patejam os boticários sem alma.

-"Vem tão concentrado, mexendo com os lábios."

-"Cá umas coisas."

Fabiano entrou imediatamente a explicar que era tapadíssimo em questões de cálculo. Decididamente, não dava para essa especialidade. De uma feita, propuseram-lhe um problema, no clube de Periquitos, sua terra natal: "Um pássaro faz sete voltas em redor de uma torre de cantaria em quarenta segundos; quantas torres serão precisas para que sete pássaros façam uma volta..." Mais ou menos isso. Coisa à-toa, simples aplicação da regra de três; podendo-se também resolver rapidamente por análise. Pois levou mais de meia hora para dar com a solução! Uma vergonha.

-"Ainda assim, você é um bicho, Fabiano."

-"Não; em Matemática, serei bicho, mas de má qualidade: um burrego. De todas as ciências, a que dá com o meu feitio é esta" (e batia com a larga e magra mão sobre a capa de um livro de espiritismo) "é esta, a filosofia."

E Fabiano falou copiosamente sobre a doutrina espírita, "a mais consoladora de todas", e em particular sobre a moral, "sem discussão possível, a mais perfeita."

-"Fabiano" (lhe disse eu, apenas por dizer alguma coisa), "você conhece a moral de Sócrates?

Ele sorriu:

-"Esse, justamente, freqüenta o meu círculo. Um espírito evoluído. Adiantado!"

E dizendo "adiantado", Fabiano esticou os beiços para um assobio, que deixou subentendido. Mas eu, intrigado, questionei:

-"Como é isso, ó Fabiano? Então Sócrates freqüenta..."

Ele sorriu com bonomia, explicando:

-"Manifesta-se, compreende? Está desencarnado há muitos anos, desde um desastre que houve aqui na Central. Saiu com as pernas esmigalhadas. Nesse mesmo dia visitou uns nossos irmãos, no Pará; por sinal que fez o pobre do aparelho gritar com dores nas pernas!"

Fabiano discorria, discorria. A certeza da verdade dava-lhe um ar de beatitude. "Ele já parecia respirar o eterno, planava além de todas as coisas perecedouras, que vão da molécula às estrelas. Este prático de farmácia, que acabava de largar o almofariz para ir comprar uma porção de calomelanos à drogaria, achava-se absolutamente integrado nos planos perpétuos da vida e do movimento universal. E o curioso é que se consolava com isto.

Ia sorrindo, no bonde, como sorriria um arcanjo na sua biga de chamas, através do infinito, assistindo ao florir e ao despertar das constelações pelos abismos sem fundo. Ou como uma criança contemplando um queimar de rodinhas e traques.

Com isto, deixei de fazer o meu soneto. Quando pretendi reinvocar a inspiração, ela havia batido as asas. Um acaso ma trouxera, um outro ma levou.

Assim acontece com tantas coisas belas e boas da alma! Nascem e morrem por aí na sombra e na bruma da vida larvada. Nascem por acaso, por acaso morrem. E nós caminhamos sobre as flores mortas dos nossos jardins interiores, como um cordão de porcos-do-mato sobre uma camada de pétalas, na época da inumerável florescência dos manacás. Mas entre a preta Gabriela e o boticário Fabiano, minha alma teve um momento de ventura inocente, embalada no berço dos ritmos e dos timbres. E, se não chegou a perpetrar nada, tanto melhor.

O melhor da poesia e de tudo quanto se lhe parece é a elaboração, o estado de graça, a embriaguez esporeante, a doce liberdade interior em que vive quem a elabora ou rumina. Talvez que o mais alto poeta seja um simples ruminante mudo de formas, O mais, vaidade e pretexto.

Bendita a Gabriela, e bendito o Fabiano.

Fonte:
Domínio Público

Ferreira Gular (Não Há Vagas)

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão.

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

– porque o poema, senhores,
está fechado: “não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira.

Fontes:
Toda Poesia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980. p. 224
Imagem = http://www.rascunho.gazetadopovo.com.br

Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 3

Três semanas, contadas dia por dia, após o último desastre, meu aparelho, o n.º 6, estava pronto.

O tempo, porém, continuava mau. Em 19 de Outubro (1901), à tarde, pois a manhã foi chuvosa, subi de novo, contornei a Torre, a uma altura de 250 metros, sobre uma enorme multidão que aí estacionava à minha espera, e passei por Autenil, sobre o hipódromo do mesmo nome, que ficava em meu caminho.

Havia corridas; a minha passagem, tanto na ida como na volta, despertou um delírio de aplausos; ouvi a gritaria e vi lenços e chapéus arrojados no ar; eu distava da terra apenas de 50 a 100 metros...

Da minha saída ao momento em que passei do zênite do ponto de partida, decorreram 29 minutos e 30 segundos.

Com a velocidade que levava, passei a linha da chegada — como fazem os yachts, os barcos a petróleo, os cavalos de corridas, etc. — , diminuí a força do motor e virei de bordo; então, voltando, e com menos velocidade, manobrei para tocar a terra, o que fiz em 31 minutos após minha partida.

Pois bem, alguns senhores quiseram que fosse esse o tempo oficial!

Grandes polêmicas.

Tive comigo toda a imprensa e o povo de Paris e também Son Altesse Imperiale le Prince Roland Bonaparte, presidente da Comissão Científica que ia julgar o assunto.

O voto me foi favorável.
* *

Não se tinham passado dois anos e eram ganhos os cem mil francos do prêmio Deutsch, que, acrescidos aos juros e mais prêmios pequenos, perfazia o total de 129.000 francos, que foram assim destinados: 50.000 francos aos meus mecânicos e operários das usinas que me tinham auxiliado; e o restante a mais de 3.950 pobres de Paris, distribuídos, a pedido meu, pelo Sr. Lepine, Chefe de Polícia, em donativos de menos de 20 francos.

Por essa ocasião, o saudoso Sr. Campos Sales, então Presidente da República, enviou-me uma medalha de ouro e, logo, em seguida, fui agradavelmente surpreendido com o recebimento com o prêmio de 100:000$000, que me foi oferecido pelo Congresso Nacional; além destas, duas outras medalhas recebi: uma do Instituto de França, outra do Aero Club de França.
* *

Depois do meu n.º 6, construí vários outros balões, que não me deram os resultados desejados. Há um ditado que ensina "o gênio é uma grande paciência"; sem pretender ser gênio, teimei em ser um grande paciente. As invenções são, sobretudo, o resultado de um trabalho teimoso, em que não deve haver lugar para o esmorecimento.

Consegui, afinal, construir o meu n.º 9; com ele pude alcançar alguma coisa; fiz dezenas de passeios sobre Paris, fui várias vezes às corridas, dele me apeei à porta de minha casa, na Avenida dos Campos Elíseos, e nele, quase todas as noites, fiz corso sobre o Bois de Boulogne.

A minha presença com ele na revista militar de Longchamps, em 14 de julho de 1903, causou um imenso sucesso.

Foi o mais popular de todos os meus... Filhos, só mais tarde suplantado pela minúscula "Demoiselle".
* *

Depois... Eu ouvia chalaças deste gênero: "O Sr. não faz nada?" "Está sempre fechado em seu quarto, a dormir!"

Nesse ínterim vim ao Brasil; no Rio de Janeiro, em São Paulo, Minas e Estados do Norte, por onde passei, me acolheram os meus patrícios com as mais cativantes festas de que jamais me esquecerei e que tanto me penhoraram.
* *

Durante as minhas horas de intensa alegria e felizes sucessos, só uma saudade me fazia triste: era a ausência de meu pai. Ele que me dera tão bons conselhos e os meios de realizar o meu sonho, não mais estava neste mundo para ver que eu "me tinha feito um homem".

É costume oriental fazer recair sobre os pais todo o mérito, toda a glória, que um homem conquiste na vida. Esta maneira de ver pode ser criticada ou desaprovada, porém, no meu caso, ela seria muito justa, pois, tudo devo a meu pai: conselhos, exemplos de trabalho, de audácia, de economia, sobriedade e os meios com os quais pude realizar as minhas invenções.

Tudo lhe devo, desde os exemplos.

Nascido na Cidade de Diamantina, o Dr. Henrique Dumont, formou-se, em Engenharia, pela Escola Central de Paris e, depois de trabalhar vários anos na E. F. Central (foi em uma casita situada na garganta João Aires que eu nasci) dedicou-se à lavoura no Estado do Rio. Vendo que aí nada de grande podia fazer, partiu com minha mãe e oito filhos, então todos crianças, para Ribeirão Preto, que se achava a três dias de viagem a cavalo da ponta dos trilhos da Mogiana.

Explorara, antes, o interior do Estado de São Paulo e ficou maravilhado com as matas de Ribeirão Preto.
* *

Neste país essencialmente agrícola, ele foi o protótipo do fazendeiro audacioso, e, com uma energia tão grande como a sua confiança no futuro, desbravou sertões e cultivou o solo, aí trabalhou durante dez anos, ao cabo dos quais, por ter sido acometido de uma paralisia, vendeu aquelas "matas", então transformadas em cerca de 5.000.000 de cafeeiros, servidos por uma estrada de ferro particular, por ele construída e que os liga a Ribeirão Preto.

Hoje, para que não morresse na memória dos homens a lembrança do valor desse audacioso, os ingleses, em significativa homenagem, conservaram em seu nome na companhia proprietária atual daquelas terras.

Em 1905, a Dumont Coffee Company colheu, naquele cafezal, 498 mil arrobas; em 1911, obteve uma renda bruta de 3.883 contos de réis.

Um de nossos grandes estadistas, depois de uma visita que fizera a meu pai, escreveu, numa impressão de viagem, referindo-se àquela fazenda: "Ali tudo é grande, tudo é imenso; só há uma coisa modesta; a casa onde mora o fundador de tudo aquilo".
* *

Dormi três anos e no mês de julho de 1906 apresentei-me no campo de Bagatelle com o meu primeiro aeroplano.

Perguntar-me-á o leitor porque não o construí mais cedo, ao mesmo tempo que os meus dirigíveis. É que o inventor, como a natureza de Linneu, não faz saltos; progride de manso, evolui. Comecei por fazer-me bom piloto de balão livre e só depois ataquei o problema de sua dirigibilidade. Fiz-me bom aeronauta no manejo dos meus dirigíveis; durante muitos anos, estudei a fundo o motor a petróleo e só quando verifiquei que o seu estado de perfeição era bastante para fazer voar, ataquei o problema do mais pesado que o ar.

A questão do aeroplano estava, havia já alguns anos, na ordem do dia; eu, porém, nunca tomava parte nas discussões, porque sempre acreditei que o inventor deve trabalhar em silêncio; as opiniões estranhas nunca produzem nada de bom.
* *

Abandonei meus balões e meu hangar no parque do Aero Club.

Em completo silêncio trabalhei três anos, até que, em fins de julho, após uma assembléia do Aero Club, convidei meus amigos a assistirem minhas experiências, no dia seguinte.

Foi um espanto geral. Todo mundo queria saber como era o aparelho.

A suas dimensões eram: comprimento, 10 metros; envergadura, 12 metros; superfície total, 80 metros quadrados; peso, 160 quilos; motor, 24 HP.

Era uma aparelho grande e biplano e assim o fiz, apenas, a fim de reunir maiores facilidades para voar, pois sempre preferi os aparelhos pequenos, tanto que me esforcei para inventa-los, o que consegui com o minúsculo "Demoiselle", o aeroplano ideal para o amador.

Continuando na minha idéia de evolução, dependurei o meu aeroplano em meu último balão, o n.º 14; por esta razão, batizaram aquele com o nome de 14-bis. Com esse conjunto híbrido, fiz várias experiências em Bagatelle, habituando-me, dia a dia, com o governo do aeroplano, e só quando me senti senhor das manobras é que me desfiz do balão.


É verdade que sempre fui de uma felicidade, de uma sorte inaudita em todos os meus empreendimentos aéreos; tive uma boa estrela.

Atribuo, também, essa sorte à minha prudência.

Nesta ordem de idéias; o primeiro problema que tive a resolver foi a possibilidade de levar-se um motor à explosão ao lado de um balão cheio de hidrogênio. Uma noite, tendo suspenso a alguns metros de altura o motor no meu n.º 1, pus-o em marcha; — estava com o seu silencioso — notei que as fagulhas que partiam com os gases queimados iam em todas as direções e poderiam atingir o balão.

Veio-me a idéia de suprimir o silencioso e curvar os tubos de escapamento para o chão. Passei da maior tristeza à maior alegria, pois, quanto maiores eram as fagulhas, com maior força eram jogadas para a terra e, por conseguinte, para longe do balão. Estava, pois, resolvido este problema: o motor não poria fogo ao balão.

Só o que precisava impedir era que, em caso de escapamento dos gases do balão pelas válvulas, estes não viessem alcançar o motor, Para impedir isto, eu sempre coloquei as válvulas bem atrás, à popa do balão, por conseguinte, longe do motor.

O ponto fraco nos aeroplanos era o leme; dei, pois, sempre a maior atenção a este órgão e seus comandos, para os quais sempre empreguei os cabos de aço de 1ª qualidade que são usados pelos relojoeiros nos relógios de igreja.

Lutei, a princípio, com as maiores dificuldades para conseguir a completa obediência do aeroplano; neste meu primeiro aparelho coloquei o leme à frente, pois era crença geral, nessa época, a necessidade de assim fazer. A razão que se dava era que, colocado ele atrás, seria preciso forçar para baixo a popa do aparelho, a fim de que ele pudesse subir; não deixava de haver uma certa verdade nisso, mas as dificuldades de direção foram tão grandes que tivemos de abandonar essa disposição do leme. Era o mesmo que tentar arremessar uma flecha com a cauda para a frente.
* *

Em meu primeiro vôo, após 60 metros, perdi a direção e caí.

Este meu primeiro vôo, de 60 metros, foi posto em dúvida por alguns, que o quiseram considerar apenas um salto. Eu, porém, no íntimo, estava convencido de que voara e, se me não mantive mais tempo no ar, não foi culpa de minha máquina, mas, exclusivamente minha, que perdi a direção.

Com grande velocidade, consertei rapidamente o aparelho, fiz-lhe algumas pequenas modificações e, durante algumas semanas, "rodei" em Bagatelle a fim de me aperfeiçoar no seu difícil governo.

Logo depois, em 23 de outubro, perante a Comissão Científica do Aero Club e de grande multidão, fiz o célebre vôo de 250 metros, que confirmou inteiramente a possibilidade de um homem voar.

Esta última experiência e a de 12 de julho de 1901, me proporcionaram os dois momentos mais felizes de toda a minha vida.
* *

––––––-
Continua…

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

Angela Lago (O Dicionário de Formas)

Era uma vez eu, Zé Sorveteiro, que me apaixonei por uma princesa que acabara de chegar do outro lado da Terra. Bolei para ela um dicionário de quatro palavras: bola, quadrado, retângulo, triângulo. Japonês se escreve com desenhos. Com desenhos a princesa aprenderia português!

Não demorou, ela estava arrasando. Ia até meu carrinho e pedia, desenhando no ar:

– Triângulo-bola.

Sorvete na casquinha! O dicionário funcionava às maravilhas.

Eu? Mandava bilhetes. Desenhava um quadrado com um triângulo em cima e escrevia: casa!!! Caprichava nos pontos de exclamação. Casa!!! Casa!!! Fácil de entender: casa comigo.

Mas toda princesa tem uma fera para encontrar bilhetes. Uma hora a fera mandou me chamar. Aí…

Aí eu transformei ponto de exclamação em sinal de aguaceiro:

– Um traço com um pingo é chuva. Três – !!! – muita chuva. Casa, chuva, chuva, chuva. Estou só avisando… Cuidado com goteiras.

Acabei subindo e limpando as calhas do telhado do futuro sogro e as de cada um de seus amigos e parentes.

Hoje, 60 anos depois, repito, valeu a pena. E lá vou eu apanhar uns triângulos vermelhos para a minha rainha arrumar no triângulo do retângulo do quadrado da frente. Perfeito. Daqui a pouco a jarra da mesa da sala estará toda perfumada com os… Como é mesmo? Vá lá! Com os triângulos vermelhos.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Soares de Passos (Esperança)

Povo! que fazes? desmaias
Sob o peso do sofrer?
Oh! nesse abismo não caias
Senão vê – tens de morrer:
O teu colo não se dobre,
Levanta essa alma que é nobre,
Tens, ó povo, um coração!
Ergue a fronte triunfante,
Ergue-a qual cedro gigante,
Não a rojes pelo chão!

Os teus irmãos sucumbiram?
Ao longe os viste expirar?
Não importa, – eles sorriram
De assim a vida exalar.
Era pela humanidade, –
Era pela liberdade:
Que lhes custava morrer?
Do céu te bradam: «esp'rança,
Irmãos, irmãos a bonança
Há-de um dia alvorecer!»

Povo! olha ainda espumante
O sangue desses heróis;
Olha as ruínas fumantes
Como sinistros faróis;
Contempla todo esse estrago,
Olha de prantos um lago,
Olha um pai órfão além,
Um amante aqui chorando,
Acolá um filho orando
Na campa de sua mãe!

Mil cadafalsos aos ares,
Repara, não vês erguer?
São teus irmãos que aos milhares,
Ai de ti! lá vão morrer!
Tu aos cruéis perdoavas,
A vida tu lhe ofertavas,
Que não tinhas mais que dar.
Eles querem tua morte...
Dá-lha, povo não te importe,
Que o teu sangue há-de medrar.

Mas chora teus irmãos, chora;
Quem é que o pranto retém?
Chora, sim, que escrava outrora
Já chorou Jerusalém:
Chora, sim, como chorava
O povo que suspirava
Pela mísera Sião,
Ou como na soledade
Suspirava de saudade
A corrente do Cedron.

Chora, mas em 'stragos tantos
Não apagues teu ardor;
Esgotaste sangue e prantos,
Não esgotes teu valor:
Recupera alento novo,
O lume da esp'rança, ó povo,
Não o deixes expirar;
Guarda-o vivo na tormenta,
Como a vestal que alimenta
O sacro fogo no altar!

Vossa aurora bonançosa,
Povos da terra, esperai!
Vós a vereis majestosa
Como os fogos do Sinai;
Vós a vereis radiante
Vós a vereis triunfante,
Qual no Gólgota brilhou,
Quando a toda a humanidade
Uma voz – fraternidade,
Lá duma cruz ressoou.

Um dia essa voz que encerra
O resgate universal,
Retumbará pela terra
Como a trombeta final...
Há-de ver-se o tenro infante
Sorrir à mãe nesse instante,
E ela unindo-o ao coração
Que há-de dizer com ternura:
«Filho, hás-de gozar ventura,
Que chegou a redenção!»

Povos, povos, esse dia
Será um dia sem par:
A campa que vos cobria
Se há-de então despedaçar;
As nações hão-de enlaçar-se;
Os homens hão-de sentar-se
Ao banquete fraternal,
E o céu olhando o mundo
Há-de em silêncio profundo
Ver o abraço universal.

Nesse dia tão formoso,
Astros! mostrai-vos sem véus!
E tu, ó mar proceloso,
Suspende teus escarcéus:
Terra, cobre-te de gala,
Os teus perfumes exala!
Povos da terra, folgai!
E entre mil nuvens d'incenso,
Um hino geral e imenso,
À liberdade entoai!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Cacaso (Algumas Poesias)

A CASA
Na minha infância quando chovia
batia sobre o telhado
uma pancada macia
a noite vinha de fora
e dentro de casa caía
meu olho esquerdo dormia
enquanto o outro velava
havia portas rangendo
lá fora o vento miava
no fundo da noite a casa
parece que navegava
meu coração passeava
por uma sala sombria
por este lado se entrava
por este outro se olhava
e por nenhum se saía

Na minha infância quando chovia
batia sobre o meu peito
uma suave agonia
a noite vinha de longe
e dentro da gente caía
meu pai que sempre saía
numa viagem calada
havia vozes chamando
na boca da madrugada
no fundo da noite a casa
parece que despertava
assombração que passava
no sopro da ventania
por este lado se entrava
por este outro se olhava
e por nenhum se saía

(in Mar de Mineiro)

AS COISAS

O melão melou
A casa casou
A bola bolou
A rola rolou
O mato matou
O dia adiou
A gia giou
A pia piou
O pinto pintou
O boi boiou
O gato engatou
O pato empatou
A pomba empombou
A paca empacou
O galo galou
O ralo ralou
O calo calou
O barco embarcou
A vaca avacalhou
A banana embananou
A sombra assombrou
O raio raiou
O piru pirou

JOGOS FLORAIS I

Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.

Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.

LERO-LERO

Sou brasileiro
de estatura mediana
gosto muito de fulana
mas sicrana é quem me quer
porque no amor
quem perde quase sempre ganha
veja só que coisa estranha
saia dessa se puder

Eu sou poeta
e não nego minha raça
faço verso por pirraça
e também por precisão
de pé quebrado
verso branco rima rica
negaceio dou a dica
tenho a minha solução

Não guardo mágoa
não blasfemo não pondero
não tolero lero-lero
devo nada pra ninguém
sou esforçado
minha vida levo a muque
do batente pro batuque
faço como me convém
Sou brasileiro
tatu-peba taturana
bom de bola ruim de grana
tabuada sei de cor
4 x 7
28 noves fora
ou a onça me devora
ou no fim vou rir melhor

Não entro em rifa
não adoço não tempero
não remarco o marco zero
se falei não volto atrás
por onde passo
deixo rastro deito fama
desarrumo toda trama
desacato satanás

Diz um ditado
natural da minha terra
bom cabrito é o que mais berra
onde canta o sabiá
desacredito
no azar da minha sina
tico-tico de rapina
ninguém leva o meu fubá

(in Mar de Mineiro)
O FAZENDEIRO DO MAR

Mar de mineiro é
inho
mar de mineiro é
ão
mar de mineiro é
vinho
mar de mineiro é
vão
mar de mineiro é chão
Mar de mineiro é pinho
mar de mineiro é
pão
mar de mineiro é
ninho
mar de mineiro é não
mar de mineiro é
bão
mar de mineiro é garoa
mar de mineiro é
baião
mar de mineiro é lagoa
mar de mineiro é
balão
mar de mineiro é são
Mar de mineiro é viagem
mar de mineiro é
arte
mar de mineiro é margem

(...)

Mar de mineiro é
arroio
mar de mineiro é
zem
mar de mineiro é
aboio
mar de mineiro é nem
mar de mineiro é
em
Mar de mineiro é
aquário
mar de mineiro é
silvério
mar de mineiro é
vário
mar de mineiro é
sério
mar de mineiro é minério
Mar de mineiro é
gerais
mar de mineiro é
campinas
mar de mineiro é
Goiás
Mar de mineiro é colinas
mar de mineiro é
minas

(in Mar de Mineiro)
 POÉTICA

Alguma palavra,
este cavalo que me vestia como um cetro,
algum vômito tardio modela o verso.

Certa forma se conhece nas infinitas,
a fauna guerreira, a lua fria
encrustada na fria atenção.

Onde era nuvem
sabemos a geometria da alma, a vontade
consumida em pó e devaneio.
E recuamos sempre, petrificados,
com a metafísica
nos dentes: o feto
fixado
entre a náusea e o lençol.

Meu poema me contempla horrorizado.

EX (3)

A minha ex-namorada
inundou minha vida de coisas belas demais
evitava que eu tivesse qualquer aborrecimento
impedia que eu saísse no sereno
me conduzia pela mão ao atravessar a rua
velava enternecida pelo meu futuro

a minha ex-namorada usurpou o lugar
onde floria, exuberante, a esposa atual
de meu pai onipresente

                    De Beijo na Boca (1975)
LAR DOCE LAR

                         p/ Maurício Maestro
Minha pátria é minha infância:
Por isso vivo no exílio.

                    De Na Corda Bamba (1978)
REFÉM
Eu sempre quis requebrar
só me faltou poesia
eu nunca soube rimar
mas sempre tive ousadia
nunca joguei o destino
e nem matei a família
a minha sorte na vida
se escreve com C cedilha
Eu nunca tive ideal
nunca avancei o sinal
nem profanei minha filha
Eu me perdi muito além
sendo meu próprio refém
na solidão de uma ilha

Eu sempre quis acertar
só me faltou pontaria
eu nunca soube cantar
mas sempre tive mania
nunca brinquei carnaval
e nem saí da folia
nunca pulei a fogueira
e nem dancei a quadrilha
Eu nunca amei a ninguém
nunca devi um vintém
nem encontrei minha trilha
Eu me perdi muito além
sendo meu próprio refém
na solidão de uma ilha

(In Mar de Mineiro)
CINEMA MUDO IV

Neste retrato de noivado divulgamos
os nossos corpos solteiros.
Na hierarquia dos sexos, transparente,
                                    escorrego
para o passado.
Na falta de quem nos olhe
vamos ficando perfeitos e belos
                             tão belos e tão perfeitos
como a tarde quando pressente
as glândulas aéreas da noite.

                    De Grupo Escolar (1974)

INFÂNCIA (2)

Eu matei minha saudade mas depois
veio outra

                    De Mar de Mineiro (1982)

HAPPY END

O meu amor e eu
nascemos um para o outro

agora só falta quem nos apresente

(de "Beijo na boca")

ESTILOS TROCADOS

Meu futuro amor passeia — literalmente — nos
píncaros daquela nuvem.

Mas na hora de levar o tombo adivinha quem cai.

(de "Beijo na boca")

Quem de dentro de si não sai
Vai morrer sem amar ninguém


A parte perguntou para a parte qual delas
é menos parte da parte que se descarte.
Pois pasmem: a parte respondeu para a parte
que a parte que é mais — ou menos — parte
é aquela que se reparte.

(de "Beijo na boca")
PASSEIO NO BOSQUE

o canivete na mão não deixa
marcas no tronco da goiabeira

cicatrizes não se transferem

(de "Beijo na boca")

DESCARTES

Não há
no mundo nada
mais bem
distribuído do que a
razão: até quem não tem tem
um pouquinho

(de Inimigo Rumor 8)

Fonte:
Imagem = Libreria Fogola Pisa

Cacaso (1944 – 1987)

Mineiro de Uberaba, o poeta Antonio Carlos Ferreira de Brito (1944-1987), conhecido como Cacaso, viveu desde os onze anos no Rio de Janeiro. Cacaso estudou filosofia e lecionou teoria literária na PUC-RJ. Foi também ensaísta e letrista de música popular. Nesse último gênero foi parceiro de compositores como Edu Lobo, Francis Hime, Sueli Costa e Maurício Tapajós.

Para os mais jovens, que talvez não saibam identificar letras de Cacaso, basta citar duas: "Face a Face" (São as trapaças da sorte / são as graças da paixão); e "Lero-Lero" ("Sou brasileiro / de estatura mediana / gosto muito de fulana / mas sicrana é quem me quer"). A primeira tem música de Sueli Costa. A outra, de Edu Lobo.

Na poesia, Cacaso estréia em 1967 com o livro A Palavra Cerzida. Nos anos 70, ele se destaca como um dos expoentes da chamada "geração mimeógrafo", que criaria a "poesia marginal". Os poetas "marginais" retomam alguns procedimentos do modernismo de 1922, a exemplo do coloquialismo, a crítica social e o poema-piada.

Alguns estudiosos fazem restrições à poesia marginal apontando sua falta de rigor. Eles vêem o movimento como uma imagem invertida das vanguardas originárias dos anos 50 (concretismo e afins). Enquanto estas são acusadas de formalistas, o pessoal da poesia marginal recebe a pecha de ter relaxado os procedimentos formais da poesia.

A poesia marginal ganhou especial divulgação após a publicação da coletânea 26 Poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda, em 1976. Além de Cacaso, estão nessa antologia poetas como Francisco Alvim, Torquato Neto, José Carlos Capinan, Ana Cristina César e Waly Sailormoon.

Durante os anos 70, Cacaso lançou os livros Grupo Escolar (1974), Segunda Classe (1975), Beijo na Boca (1975) e Na Corda Bamba (1978). Em seguida, publicou ainda Mar de Mineiro (1982) e Beijo na Boca e Outros Poemas (1985), que reunia toda a sua produção até então. Em 2002 saiu, postumamente, sua poesia completa, que inclui todos os títulos citados aqui, mais poemas inéditos.

Um recurso muito praticado por Cacaso (e herdado do modernismo) é a paródia, com referências bem-humoradas a outros poetas. Em "Há Uma Gota de Sangue no Cartão Postal", por exemplo, o título lembra o livro de Mário de Andrade Há uma Gota de Sangue em Cada Poema. No mesmo poema há também citações da música popular — "Luar do Sertão", de Catulo da Paixão Cearense, e "Tropicália, de Caetano Veloso —, além da "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias, e ainda do poema "Amor e Medo", de Casimiro de Abreu.

"Ex (3)" é o típico poema-piada. "Jogos Florais" esboça uma crítica ao chamado milagre econômico dos anos 70 e retorna à "Canção do Exílio". O espírito da paródia e da gozação estão em toda a obra de Cacaso. O poema que originou o título da coletânea Mar de Mineiro — um título que, por si só, anuncia um conteúdo jocoso — chama-se "Fazendeiro do Mar", uma óbvia brincadeira com o Fazendeiro do Ar, de Carlos Drummond de Andrade. 

Fonte:
Carlos Machado, in http://www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet199.htm

Olivaldo Junior (Morangos Silvestres)

Sei que venho prometendo algo que não tenho feito. Os “morangos” de minha vida foram colhidos, e eu nem vi. Devo ausentar-me por um tempo. Segue – para quem se interesse – meu “morango” para Bergman.

Morangos Silvestres – Um poema*
Para Ingmar Bergman


Os morangos, silvestres ou não, jamais fenecem.
Nalguma parte de nós, no canto escuro da alma,
ensolarados apenas quando de nós se esquecem,
os morangos silvestres, na selva, em minhalma,
são vermelhos, enrubescem-se quando perecem,
pois nunca o fazem de todo.
Posso ser velho, posso ser jovem, que fascinam.
Os rubros da vida me ensinam que sou sanguíneo,
bem mais que eu descortino, pois ainda ensinam
mais ciência que poesia nas escolas: que declínio!
Os morangos, mofados, ou não, são os silvestres
que nasceram nos rupestres corações que trago,
como se eu fumasse algo, no “cinema sem testes”
que compreendo ao lado, alado pelo que afago
quando me lembro de tudo.
Antes que eu morra, mato este velho que mina,
que mata, que assassina quem eu fui: um menino,
talvez com melhor destino que o deste (ruína)
homem, o que se inclina sobre as águas do ensino
que só os sonhos tem, e colhe o fruto que mina
da boca o não-silvestre de morangos que rumino.

Moji Guaçu, SP, trinta e um de janeiro de 2013.
-----
* Morangos Silvestres (1957) é um filme do cineasta sueco Ingmar Bergman (1918-2007), cujo enredo discute sobre a passagem do tempo ao retratar um dia na vida de um velho professor de Medicina, exatamente quando será condecorado pelo trabalho de toda uma vida. Se esse professor está contente pela honraria? Descubra assistindo ao filme e tire suas próprias conclusões.
O poema acima é em homenagem a Bergman, um poeta da escrita, do pensamento e da imagem.


Fonte:
O Autor

Soares de Passos (Um Eco no Cativeiro)

Que tristeza quando penso
Nos povos em servidão!
Nos povos, gigante imenso
Rugindo humilde no chão!
Ao pensar assim comigo,
Quantas vezes eu maldigo
Essa campa de jazigo
Que pesa sobre as nações!
Quantas vezes eu deploro,
Quantas estremeço e choro,
Ouvindo o ranger sonoro
De seus pesados grilhões!

Ouvindo tão tristes queixas
Retumbando por esse ar,
Tantas sentidas endechas
Sobre a terra a suspirar;
Ouvindo-te, humanidade,
Esse gemer de saudade,
Que soltas na imensidade
Sem que te escute ninguém;
Ouvindo-te, ó malfadada,
De teus filhos rodeada,
Suspirar abandonada
Como suspira uma mãe!...

É triste a cena que vejo,
É triste, mas ei-la aí...
Aquém sofismas, sem pejo,
Férreas algemas ali;
Dum lado povos traídos,
Pelos seus escarnecidos,
Soltam queixas e gemidos
Que ninguém quer acolher;
Doutro povos humilhados,
Sob um jugo avassalados,
Por um peso recalcados
Quase nem ousam gemer...

Pobre raça deserdada
Que aí suspiras em vão,
Quando hás-de ter entrada
Na terra da promissão?
Quando hás-de resgatar-te?
Quando é que em toda a parte
Há-de o mundo contemplar-te
Semelhante a um homem só?
Quando raiará o dia
De cessar tua agonia?
Quando terás alegria
Erguendo a fronte do pó?

Hás-de tê-la, que o desterro,
Eia, ó triste, acabará,
Que esse jugo vil de ferro
Em pedaços cairá!
Esgota o cálice inteiro
De teu duro cativeiro;
Porém do solo estrangeiro
Fita ao longe a redenção!...
Esta crença, força e vida
Nos corações mal contida,
Pode acaso ser retida?
Acaso pode?... pode? – Não!

Debalde tentam detê-la
Porque a corrente caudal
Hão-de majestosa vê-la
Transpor o dique afinal...
Tudo no mundo descansa,
Nada progredindo avança,
Tudo avante se abalança
Num eterno caminhar...
Fitai o sol, as estrelas;
Vede se podeis sustê-las,
Se podeis, loucos, fazê-las
Ao vosso aceno parar...

Quem me dera a mim agora
Ter do fogo lá do céu,
Daquele fogo que outrora
Trouxe à terra Prometeu!
Oh! que se eu pudera tê-lo,
Eu havia de vertê-lo
Nessa montanha de gelo
Que inda dos seios não cai...
Sobre a raça amortecida
Dos homens soprara a vida,
E com voz, do mundo ouvida,
Lhes bradaria: – Acordai! –

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Artur Azevedo (O Galã)

Um belo dia, naquela pacata e honesta capital da província de segunda ordem, apareceram, pregados nas esquinas, enormes cartazes anunciando a próxima estréia de uma excelente companhia dramática, vinda do Rio de Janeiro.

Há muito tempo o velho teatro não abria as portas ao público, e este, enfarado de peloticas e cavalinhos, andava sequioso de drama e comédia.

Havia, portanto, na cidade uma animação e rebuliço desusados.

Falara-se na vinda da companhia, mas ninguém tinha absoluta certeza de que ela viesse, porque o empresário receava não fazer para s despesas. Agora, os cartazes, impressos em letras garrafais, confiram a auspiciosa notícia, provocando um entusiasmo indizível. Muita gente saía de casa só para os ver, certificando-se, pelos próprios olhos, de tão grata novidade.

A companhia anunciada era, efetivamente, a melhor, talvez, de quantas até então se tinham aventurado às incertezas de uma temporada naquela tranqüila cidade.

Dois artistas, pelo menos, a primeira dama e o galã, vinham precedidos de grande fama. Ela já lá tinha estado, quando menos célebre, porém, era a primeira vez que lá ia, e por isso o esperavam com uma ansiedade fácil de imaginar.

Quando a companhia chegou, foi uma verdadeira festa. Grande massa de povo aguardava-a no cais de desembarque; houve música, foguetes e aclamações.

Tanto a primeira dama como o galã foram acompanhados ao hotel por inúmeros admiradores e ele, solicitado pelo povo, teve que aparecer à janela, onde, visivelmente comovido, expectorou algumas palavras com mais entusiasmo que sintaxe.

A estréia foi um delírio. O teatro encheu-se completamente: não havia um lugar desocupado.

O presidente da província (era no tempo do Império) estava presente, e os camarotes, ocupados pelas primeiras famílias, apresentavam magnífico aspecto.

Representou-se a Morgadinha de Valflor.

A primeira dama agradou muito, mas sem causar grande impressão, porque já tinha sido vista no papel da protagonista e não parecia agora superior ao que dantes fora. Quem triunfou verdadeiramente, quem teve as honras da noite, foi o galã, o melhor Luís Fernandes que até então pisara naquele palco.

Era um artista experimentado, com todas as qualidades e defeitos indispensáveis para agradar às platéias provincianas; bom órgão, gesto largo e abundante, porte esbelto, grande cabeleira encaracolada, bigodes fartos e retorcidos, olhos pisados, bons dentes -nada faltava a Luís Fernandes para ser desejado, não só pela morgadinha de Valflor, como por todas as espectadoras sentimentais.

Entre estas, havia uma, a sinhazinha Brites, cujo espírito enfermiço aquele formoso intérprete de Pinheiro Chagas impressionou singularmente.

Ela sentia-se fascinada pela figura garbosa e varonil do palavroso pintor, em quem tão bem assentavam os calções e as botas do tempo do diretório -e, por mais que tentasse disfarçar, não pôde encobrir ao marido os violentos resultados daquela fascinação.

Ele, o marido, o Brites, era um sujeito observador e inteligente, a quem não deixava de inquietar o caráter romanesco de sinhazinha. Estudara-a a fundo, atentando nas suas longas cismas em noites de luar, ou examinando cuidadosamente os livros cuja leitura ela preferia. Houvera certa desigualdade naquele casamento: o marido era quinze anos mais velho que a mulher; ele, um homem positivo, encarando a vida como a vida é, procurando o lado prático de todas as coisas; ela, com uns ares vaporosos de femme incomprise, divagando continuamente pelos intermúndios da quimera e do sonho. Ele, criatura comum, homem feio como todos os homens sem educação física; ela, uma das moças mais bonitas da terra.

Demais, faltava-lhes a maior ventura dos casais felizes: faltava-lhes um filho, que reprimisse na senhora as fantasias da senhorita.

Com uma boa posição no comércio, rico ou, pelo menos, remediado, honesto, escrupuloso, solícito, amável, e, como já ficou dito, inteligente, o Brites era, entretanto, um marido ideal.

O segundo espetáculo da companhia foi com o Romance de um moço pobre.

Observou o sobressaltado marido que Máximo Odiot causava à sinhazinha uma impressão ainda mais pecaminosa que a produzida por Luís Fernandes.

Quando o pano desceu depois da famosa cena das ruínas do castelo abandonado, em que o herói de Octave Feuillet se atira num precipício, exclamando: -Vou salvar a honra! -sinhazinha ficou uns bons cinco minutos estática, sem articular um som, os lábios entreabertos num quase sorriso voluptuoso, o olhar úmido perdido no vago.

O público aplaudiu calorosamente, chamando três vezes os artistas à cena e ela não saiu daquele êxtase.

-Que tens?... Estás incomodada?... - perguntou o Brites.

A moça estremeceu, passou as mãos pelos olhos, como se despertasse de um sonho, e suspirou, dizendo:

-Não, não tenho nada.

Na manhã seguinte o Brites experimentou o maior desgosto da sua vida conjugal: ouviu perfeitamente sinhazinha, dormindo, pronunciar o nome do gala... Isto resolveu-o a atacar de frente o minotauro. Não deixou perceber coisa alguma. Almoçou alegremente e foi para o trabalho à hora costumada. Quando voltou à tarde, aproximou-se de sinhazinha, deu-lhe um beijo, e disse-lhe:

-Trago-te uma notícia que talvez te contrarie...

-Qual?

-O galã da companhia dramática vem cá jantar amanhã.

-O galã!

-Sim; aquele que ontem fez com tanto talento o papel do moço pobre. Foi hoje levar-me ao escritório uma carta de recomendação, e eu, não sabendo como obsequiá-lo, convidei-o para jantar. Amanhã não há espetáculo: ele está livre.

Sinhazinha, que, enquanto o marido falava, tivera tempo de preparar a dissimulação, limitou-se a responder:

-Que maçada!

Ela mal dormiu durante a noite e, no dia seguinte, agitada pela idéia de que ia ver de perto, apertar a mão e falar ao irresistível galã, passou as horas febricitante, nervosa, mudando de lugar a cada momento. Felizmente os preparativos do jantar ofereceram uma espécie de derivativo àquele acesso nervoso.

Quando, às seis horas da tarde, chegou o galã, ela não quis acreditar que fosse ele: olhou para a porta como se esperasse outra visita; mas o marido, que lhe percebeu a surpresa, insistiu na apresentação e sinhazinha dobrou-se à evidência.

Tinha diante de si um homem feio, marcado de bexigas, os dentes postiços, o cabelo cortado à escovinha e a cara inteiramente raspada... de véspera.

A alvura da camisa era suspeita, as botinas eram cambraias, as unhas não eram irrepreensíveis, a sobrecasaca tinha nódoas e as calças joelheiras.

A desilusão continuou durante o jantar. O galã, aliás boa pessoa, não tinha absolutamente conversação, nem de outro assunto traque não fosse da sua vida de teatro. Disse mal dos colegas, arrastou a primeira dama pela rua da amargura, e afirmou que não faria parte daquela tropa fandanga, se não tivesse que sustentar mulher e cinco filhos, em véspera de seis.

E não sabia estar à mesa: repetia todos os pratos, metia a faca na boca, palitava os dentes, limpava a testa no guardanapo, escarrava, cuspia!

Sinhazinha estava pasmada, e o Brites radiante.

Quando o galã saiu, logo depois do café, a mulher do engenhoso Brites sentia-se curada de todos os devaneios da sua imaginação doentia.

-Que diferença!... Não parece o mesmo!...

-Pudera! Quem tu viste no teatro não foi ele: foi o Luís Fernandes, foi o Máximo Odiot.

Alguns meses depois havia naquela casa o que até então lhe faltava: um filho que reprimisse na senhora todas as fantasias da senhorita.

Fontes:
Domínio Público
Imagem = http://rafadraw.blogspot.com.br

Raquel Ordones (Outros Oceanos)

Imagem com soneto obtido no facebook da autora

Santos Dumont (O Que Eu Vi, o Que Nós Veremos) Parte 2

Comprei um dia um triciclo a petróleo. Levei-o ao "Bois de Boulogne" e, por três cordas, pendurei-o num galho horizontal de uma grande árvore, suspendendo-a alguns centímetros do chão. É difícil explicar o meu contentamento ao verificar que, ao contrário do que se dava em terra, o motor do meu triciclo, suspenso, vibrava tão agradavelmente que quase parecia parado.

Nesse dia começou minha vida de inventor. Corri à casa, iniciei os cálculos e os desenhos do meu balão n.º 1.

Nas reuniões do Automóvel Club — pois o Aero Club não existia ainda — disse aos meus amigos que pretendia subir aos ares levando um motor de explosão sob um balão fusiforme. Foi geral o espanto: chamavam de loucura o meu projeto. O hidrogênio era o que havia de mais explosivo!

"Se pretendia suicidar-me, talvez fosse melhor sentar-me sobre um barril de pólvora em companhia de um charuto aceso". Não encontrei ninguém que me encorajasse.

Não obstante, pus em construção o meu n.º 1, e logo  depois o n.º 2.

As minhas experiências no ar começaram em fins de 1898. Foram grandemente interessantes, não pelo resultado obtido, mas pela surpresa de ver, pela primeira vez, um motor trepidando e roncando nos ares. Creio mesmo que foram estas experiências que deram lugar à fundação do Aero Club de França.

As experiências com esse modelo não surtiram o resultado desejado. Eu tinha sido audacioso demais, fabricando um balão demasiado alongado para os meios de que, então, dispunha. Abandonei essa forma e construí um balão ovóide.
* *
Com o primeiro tipo tive uma terrível queda de várias centenas de metros, que muito me ameaçou de ver naquele o meu último dia. Não perdi, porém, o alento. Com esse novo aparelho, o meu n.º 3, atravessei a cidade de Paris.

Houve grande barulho em torno dessa experiência. Creio mesmo que, se as primeiras deram lugar à fundação do Aero Club, esta foi que determinou a instituição do prêmio Deutsch.

De fato, com a travessia que fiz de Paris, começou-se a discutir se seria possível ir de um ponto a outro e voltar ao de partida, em balão.

Grandes controvérsias...
* *
A uma das assembléias do Aero Club compareceu um senhor, desconhecido de todos nós, muito tímido, muito simpático, que ofereceu, ele, Deutsch de la Meurthe, um prêmio de cem mil francos ao primeiro aeronauta que, dentro dos cinco anos seguintes, partindo de St. Cloud, que era então onde se achava o Parque do Club, circunavegasse a Torre Eifel e voltasse ao ponto de partida, tudo em menos de 30 minutos. Acrescentou mais, que no fim de cada ano, caso não fosse ganho o prêmio, se distribuíssem os juros do dinheiro entre os que melhores provas tivessem obtido.

Era sentir geral que cinco anos se passariam sem que o prêmio fosse ganho.

A direção do balão, naquele tempo, era um desejo sem promessa.
* *

No dia seguinte à instituição do prêmio Deutsch, iniciei a construção do meu n.º 4 e de um hangar em St. Cloud.

Opinei novamente pelo balão fusiforme, pois precisava atingir a uma velocidade de mais ou menos 30 km por hora, o que seria difícil com um balão ovóide. Adquiri o motor mais leve que encontrei no mercado; tinha a força de 9 HP e pesava 100 quilos. Era a maravilha de então...

Com esse balão, no ano de 1900, pouco consegui de bom. Meu único concorrente ao prêmio foi o Sr. Rosc, cujo balão não conseguiu nunca subir; os juros do prêmio Deutsch me foram entregue, pois.

Durante o inverno pus em construção o meu famoso n.º 5, que experimentei no Parque do Aero Club.

Em 12 de julho de 1901, às 3 horas da madrugada, auxiliado por alguns amigos e meus mecânicos, levei-os para o Hipódromo de Longchamps; comecei a fazer pequenos círculos com o dirigível, que era verdadeiramente dócil; fui ao bairro de Puteaux e evoluía por cima de suas inúmeras usinas quando, de repente, ouço um barulho terrível: uma a uma todas as usinas tinham posto a funcionar seus apitos e sirenes.

Fiz duas ou três voltas e cheguei novamente a Longchamps.

Fiz um conciliábulo com meus amigos. Pretendia fazer a volta à Torre Eifel; eles me querem dissuadir disso, por não estar presente a Comissão do Aero Club. Não me pude conter; o esporte me atraía; parti. Tudo correu bem até as alturas do Trocadero, quando senti que o balão não me obedecia mais. Arrebentara-se o cabo que ligava a roda do governo ao leme da aeronave. Diminuo completamente a velocidade do motor e manobro para tocar em terra. Fui muito feliz, desci mesmo no jardim do Trocadero, onde, por ser ainda muito cedo, havia muito poucas pessoas.

A ruptura se dera em ponto dificilmente acessível; era necessário uma escada. Vão busca-la; quatro a cinco pessoas a sustem de pé e, por ela, consigo subir e consertar o cabo. Parti de novo, circunaveguei a torre e voltei diretamente a Longchamps, onde já havia muita gente à minha espera, inquieta da demora.

Foi um sucesso colossal quando cheguei e parei o motor.

Nesse mesmo dia a imprensa anunciava ao mundo inteiro que estava resolvido o problema da dirigibilidade dos balões.
* *

Aproveito a ocasião para agradecer à imprensa do mundo inteiro a simpatia com que me cativou e, principalmente, a que dispensou à "Idea Aérea". Foi graças a isso que se instituíram prêmios de estímulo e o cérebro dos inventores se pôs a trabalhar para o aperfeiçoamento da aeronave, até podermos, em 1918, possuir aeroplanos e dirigíveis que parecem o resultado de uma evolução milenária.

Se quando nas ruas de Paris apareceu o primeiro automóvel e se quando a Torre Eifel foi circunavegada, não tivesse a imprensa incentivado essa iniciativas, acompanhando de perto o seu progresso, não teríamos hoje, estou certo, as locomoções automóvel e aérea, que são o orgulho da nossa época.
* *

Foi neste dia que começou a minha grande popularidade em Paris; aproveito, pois, também a ocasião para pagar um tributo ao povo de Paris. Foi graças aos constantes aplausos e encorajamento que recebemos, os meus colegas e eu, que encontramos forças para, diante de tantos insucessos e perigos, continuarmos na luta. É, pois, à clarividência do povo da Cidade Luz que o mundo deve a locomoção aérea.

Não só o povo me encorajava nas minhas experiências, mas também a sociedade, as altas autoridades e todos os escritores.

No meu hangar encontravam-se pessoas de todas as classes e opiniões. Um dia apanharam numa fotografia a ex-imperatriz dos franceses ao lado de Rochefort. Tinham sido os maiores inimigos; pois bem, no meu atelier, do qual Rochefort era um freqüentador assíduo, estavam um ao lado do outro!

Rochefort cobriu-me também de elogios; não falemos na legião de escritores, especialistas, como François Peyrey, Besaçon e todos os outros, pelos quais até hoje tenho uma profunda gratidão.

No dia seguinte, em um artigo de fundo, M. Jaurés disse que "até então tinha visto procurando dirigir os balões à "sombra dos homens" hoje viu "um homem".
* *

Recebi felicitações do mundo inteiro; entre elas, porém, uma, certamente a que mais me honrou e para mim a mais preciosa, veio assim endereçada, numa fotografia do maior inventor dos tempos modernos:

"A Santos-Dumont
o Bandeirante dos Ares
Homenagem de Edison".

Naquela época, em que a aeronáutica acabava de nascer, não era muito ser considerado o seu Bandeirante; hoje, porém, que ela existe e vai decidir a sorte da guerra, me é infinitamente preciosa essa apreciação do homem pelo qual tenho a maior admiração.
* *

No dia 13 de julho de 1901, às 6 horas e 41 minutos, em presença da Comissão Científica do Aero Club, parti para a Torre Eifel. Em poucos minutos, estava ao lado da torre; viro e sigo, sem novidade, até o Bois de Boulogne. O sol, mostra-se neste momento e uma brisa começa a soprar, leve, é verdade, porém, bastante, nessa época, para quase parar a marcha da aeronave. Durante muitos minutos, o meu motor luta contra a aragem, que se ia já transformando em vento. Vejo que vou sair do bosque e talvez cair dentro da cidade. Precipito a descida e o aparelho vem repousar sobre as árvores do lindo parque do Barão de Rotschild. Era necessário desmontar tudo, com grande cuidado, afim de que não se danificasse, pois pretendia reparar minha embarcação para concorrer de novo ao prêmio Deutsch.
* *

Nesse dia tinha despertado às três horas da manhã para, pessoalmente, verificar o estado do meu aparelho e acompanhar a fabricação do hidrogênio, pois, de um dia para outro, o balão perdia uns vinte metros cúbicos. Sempre segui a divisa: "Quem quer vai, quem não quer manda"... Já o dia ia findando e eu não abandonava o meu balão um só instante, a despeito da fome terrível.

De repente, — deliciosa surpresa! — apareceu-me um criado com uma cesta cujo aspecto traía iniludivelmente o seu conteúdo; pensei que algum amigo se tivesse lembrado de mim enquanto almoçava... Abria-a e dentro encontrei uma carta: era da senhora Princesa D. Isabel, vizinha do Barão Rotschild, que me dizia saber que eu estava trabalhando até aquela hora, sem refeição nenhuma, e me enviava um pequeno lunch; pensava também nas angústias que deveria sofrer minha mãe, que de longe seguia as minhas peripécias, e declarava ter à minha disposição uma pequena medalha, esperando daria conforto a minha mãe saber que eu a traria comigo em minhas perigosas ascensões.

Essa medalha nunca mais me abandonou.
* *

Sobre essas experiências, publicou "L'Illustration" as seguintes notas: "La première du mois de Juillet 1901 a été signalée par deux événements qui pourralent bien marquer deux grandes dates dans l'Histoire de l'humanité, et qui semblent dans tous les cas promettre qu'en matière de conquétes scientifiques le vingtième siècle ne sera pas inférieur au dix-neuvième.

A dix jours d'intervalle, le sous-marin "Gustave-Zédé" a fait ses preuves en Corse, et le ballon dirigeable Santos-Dumont a fait les siennes à Paris meme. Dans deux numéros consecutifs, l'Illustraction a pu consacrer la gravure de première page à ces deux exploits — les premiers — acomplis dans le domaine de la navigation aérienne.

Le ballon de M. Santos-Dumont, qui vient d'effectuer deux jours de suite le voyage aller et retour de St. Cloud à la tour Eiffel est le cinquième aérostat avec lequel cet ingénieur de vingt-huit ans a tenté de resoudre le problème de la dirigeabilité.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Les positions respectives de ces divers agrès on été déterminées avec beaucoup de soin et après de longs tâtonnements, afin qu'une fois tout en place et en tenant compte du poids mème de l'aéronaute, la quille soit horizontabilité et une égale tension des cordelettes de suspension. Cette condition explique pourquoi le siège de l'aéronaute se trouve éloigné du moteur.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Enfin, c'est par le déplacement du guide-rope, suspendu sous la quille et pesant 38 kilogrammes, qu'on obtient l'inclinaison voulue du système les mouvements d'ascension ou de descente.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

A 7 heures, le Santos-Dumont nº 5 doublait la tour Eiffel en la contournant un peu au-dessus de la deuxième plate forme. Ce virage est executé avec précision remarquable.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Attendons-nous à le voir un de ces jours planer sur Paris et descendre, par example, sur la terrasse de l'Automobile Club, place de la Concorde."


* *

Reposto o balão e estado de funcionar, revistas e consertadas todas as suas peças, cheio de novo, fiz experiências preliminares. Convocada novamente a Comissão do Aero Club, parti para a Torre Eiffel que circunaveguei de novo; mas, ao voltar, desarranjou-se-me a máquina nas alturas do Trocadero. Manobro para escolher um bom lugar para descer. Supunha ter sido feliz em minhas manobras e esperava descer em uma rua, quando ouço um grande estrondo, grande como o de um tiro de canhão; era a ponta do balão que, na descida, que foi rápida, tocara o telhado de uma casa.

Um saco de papel cheio de ar, batido de encontro a uma parede, arrebenta-se, produzindo um grande ruído; pois bem, o meu balão, saco que não era pequeno, fez um barulho assim, mas... em ponto grande. Ficou completamente destruído.

Não se encontrava pedaço maior do que um guardanapo!

Salvei-me por verdadeiro milagre, pois fiquei dependurado por algumas cordas, que faziam parte do balão, em posição incomoda e perigosa, de que me vieram tirar os bombeiros de Paris.

Os amigos e jornalistas me aconselharam a ficar nisso e não continuar em minhas ascensões, da última das quais me salvara por verdadeiro milagre. O conselho era bom, mas eu não pude resistir à tentação de continuar; não sabia contrariar o meu temperamento de sportsman.

Convoquei-os para nova experiência daí a três semanas. Eu sabia dos elementos com que podia contar; já conhecia, em Paris, umas vinte casas especialistas, cada qual, de um trabalho, e já tinha conquistado a simpatia dos contramestres e operários de quem podia esperar a maior dedicação e serviço rápido.
* *

Iniciei a construção de um novo balão e novo motor, este um pouco mais forte, aquele um pouco maior.
––––––-
Continua…

Fonte:
Universidade da Amazônia
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Belém – Pará
www.nead.unama.br

Gregório de Matos (Sonetos Dispersos)

SONETO I

Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passadas,
Que como ando por vias desusadas,
Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.

O remédio será seguir o imundo
Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas andam juntas mais ousadas,
Do que anda só o engenho mais profundo.

Não é fácil viver entre os insanos,
Erra, quem presumir que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.

O prudente varão há de ser mudo,
Que é melhor neste mundo, mar de enganos,
Ser louco c'os demais, que só, sisudo.

SONETO II

(A uma dama dormindo junto a uma fonte.)

À margem de uma fonte, que corria,
Lira doce dos pássaros cantores
A bela ocasião das minhas dores
Dormindo estava ao despertar do dia.

Mas como dorme Sílvia, não vestia
O céu seus horizontes de mil cores;
Dominava o silêncio entre as flores,
Calava o mar, e rio não se ouvia,

Não dão o parabém à nova Aurora
Flores canoras, pássaros fragrantes,
Nem seu âmbar respira a rica Flora.

Porém abrindo Sílvia os dois diamantes,
Tudo a Sílvia festeja, tudo adora
Aves cheirosas, flores ressonantes.

SONETO III

(Descreve um horroroso dia de trovões)
                    Na confusão do mais horrendo dia,
                    Painel da noite em tempestade brava,
                    O fogo com o ar se embaraçava
                    Da terra e água o ser se confundia.

                    Bramava o mar, o vento embravecia
                    Em noite o dia enfim se equivocava,
                    E com estrondo horrível, que assombrava,
                    A terra se abalava e estremecia.

                    Lá desde o alto aos côncavos rochedos,
                    Cá desde o centro aos altos obeliscos
                    Houve temor nas nuvens, e penedos.

                    Pois dava o Céu ameaçando riscos
                    Com assombros, com pasmos, e com medos
                    Relâmpagos, trovões, raios, coriscos

SONETO IV

(Continua o poeta em louvor a soledade vituperando a corte)

                    Ditoso aquele, e bem-aventurado,
                    Que longe, e apartado das demandas,
                    Não vê nos tribunais as apelandas
                    Que à vida dão fastio, e dão enfado.

                    Ditoso, quem povoa o despovoado,
                    E dormindo o seu sono entre as holandas
                    Acorda ao doce som, e às vozes brandas
                    Do tenro passarinho enamorado.

                    Se estando eu lá na Corte tão seguro
                    Do néscio impertinente, que porfia,
                    A deixei por um mal, que era futuro;

                    Como estaria vendo na Bahia,
                    Que das Cortes do mundo é vil monturo,
                    O roubo, a injustiça, a tirania?

SONETO V

(Conselhos a qualquer tolo para parecer fidalgo, rico e discreto)

                    Bote a sua casaca de veludo,
                    E seja capitão sequer dois dias,   
                    Converse à porta de Domingos Dias,   
                    Que pega fidalguia mais que tudo.   

                    Seja um magano, um pícaro, um cornudo,
                    Vá a palácio, e após das cortesias   
                    Perca quanto ganhar nas mercancias,
                    E em que perca o alheio, esteja mudo.   

                    Sempre se ande na caça e montaria,   
                    Dê nova solução, novo epíteto,   
                    E diga-o, sem propósito, à porfia;   

                    Quem em dizendo: "facção, pretexto, efecto".
                    Será no entendimento da Bahia
                    Mui fidalgo, mui rico, e mui discreto.

SONETO VI

(Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia)

                    A cada canto um grande conselheiro,
                    Que nos quer governar cabana e vinha;
                    Não sabem governar sua cozinha,
                    E podem governar o mundo inteiro.

                    Em cada porta um bem freqüente olheiro,
                    Que a vida do vizinho e da vizinha
                    Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
                    Para o levar à praça e ao terreiro.

                    Muitos mulatos desavergonhados,
                    Trazidos sob os pés os homens nobres,
                    Posta nas palmas toda a picardia,

                    Estupendas usuras nos mercados,
                    Todos os que não furtam muito pobres:
                    E eis aqui a cidade da Bahia.

SONETO VII

Um soneto começo em vosso gabo;
Contemos esta regra por primeira,
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo.

Na quinta torce agora a porca o rabo:
A sexta vá também desta maneira,
na sétima entro já com grã canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.

Agora nos tercetos que direi?
Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais,
Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei.

Nesta vida um soneto já ditei,
Se desta agora escapo, nunca mais;
Louvado seja Deus, que o acabei.

SONETO VIII

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

SONETO IX

Anjo no nome, Angélica na cara
Isso é ser flor, e Anjo juntamente
Ser Angélica flor, e Anjo florente
Em quem, se não em vós se uniformara?

Quem veria uma flor, que a não cortara
De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente
Que por seu Deus, o não idolatrara?

Se como Anjo sois dos meus altares
Fôreis o meu custódio, e minha guarda
Livrara eu de diabólicos azares

Mas vejo, que tão bela, e tão galharda
Posto que os Anjos nunca dão pesares
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda

Fonte:
www.sonetos.com.br

Fanny Abramovich (Perdidos na Excursão)

Marquito desabou na poltrona. Completamente moído. Exausto! Agarrou o telefone, ligou pro Tiagão. Dos dois lados do fio, só queixas e reclamações. E altos xingos.

Bocas raivosas, por nada ter dado certo. Só confusão durante a excursão inteira.

Marquito relembrou a saída orgulhosa. Um final de semana ecológico-aventureiro. Certeza de voltar triunfantes! Muito pra contar e pra exibir. Turma animada e a fim de descobrir o esconderijo-paraíso dos micos-leões-dourados.

Tiagão ouvia rindo. Logo enfezou. Lembrou da primeira desviada. Um caminho lindo que deu numa cachoeira despencante. Puladas, procuras, nadadas, volta estropiada pra estrada arrebentada... Depois, só mancadas...

A chuva desviante da trilha. A paralisada hesitante se era pra virar à direita ou à esquerda.

Os em-frente-marche dando em barreiras fechadas, sem brecha pra passagem. As voltas, semivoltas, voltas inteiras. A parada pra comilança quase dentro duma fazenda murada e o dono surgindo com as armas em punho... Horror total!!

Marquito parou de sorrir. Partiu pros desabafos gritados. A armação das tendas no escuro e a descoberta rápida de o lindo lugar estar cercado de cobras... Berros desesperados!

O dar de cara com uma margem do rio sem nenhuma ponte para cruzar... O medaço de se afogar atravessando a pé.

Tiagão espirrou. Gripou bravo. Desligou avisando que foi a primeira e última excursão ecológica. Pra ele, fim de papo. Marquito resmungou enfezado. Jurou jurado. Outra, só sabendo antes por onde ia pisar. Chegava de perder tempo, perder a paciência, perder o ânimo.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Hélio Ziskind (Na Casa do Cozinheiro)

Panelinha
Panelão
Panelinha
Panelão
Panelinha pim pim
Panelão pão pão pão
Vivo entre panelas
Pim piririm pampam
Frigideiras e tigelas
Pão pão pim
Quem sou?
Quem sou?
O cozinheiro, acertou!
Minha casa é muito musical
Panelinha agudinha
Pim pim pim piririm pim pim
Panelão gravão
Pão pão pão pararão pão pão
Minha filha maior
Toca o instrumento maior
Enquanto o feijão cozinha
Minha filha menor
Toca um instrumento menor
Lá no andar de cima
Pepino com caramelo
Violino com violoncelo
Pepino com caramelo
Violino com violoncelo
Uôu uôu
A panela de pressão assobiou!
Pss psss
Pss psss
Panelinha linha
Panelão nelão
Panelinha linha
Panelão
Violino lino lino
Violoncelo celo celo
Violino lino lino
Violoncelo celo celo

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos