domingo, 4 de agosto de 2019

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) III


NÃO ESTOU SÓ

Nestes últimos tempos
vivo me esbarrando com a saudade,
mas a solidão intrometida vai se achegando
e se instala no quarto ao lado.
De repente, sem que eu perceba ela se acomoda
no sofá da sala.
Pergunto o que ela deseja e logo me responde:
- ficar em sua companhia.
Por isso, nunca estou só,
aonde quer que eu vá,
a solidão me acompanha.

NOVA AURORA

Eu me tornei um pobre vagabundo
quando partiste pela vida afora...
Talvez sonhaste conquistar o mundo
deixando aqui um coração que chora.

De luz, amor e inspiração me inundo
e vislumbro o romper de nova aurora,
acredito no Amor puro e profundo
que mitiga a tristeza que apavora.

Creio no Amor intenso, verdadeiro,
sempre perdoa, espera e crê primeiro
sem julgamento, ofensa ou coisa assim.

Quero colher a Paz em farta messe,
sentir a graça singular da prece
para encontrar o Amor dentro de mim!

NOVA COBRANÇA
(Filosofando)

Se cobro alguma coisa desta vida,
ela disfarça e vai me respondendo:
“qualquer dia, meu caro, pago a dívida”
e sem pensar, aceito e vou vivendo.

O tempo vai passando e na corrida
aqueles sonhos vão-se desfazendo,
já não sinto esperança na descida
e o mundo, sem amor, está horrendo.

A vida dissimula um falso encanto
que acaba em choro, dor e desencanto
sem cumprir as promessas que me fez.

E tudo não passou de ledo engano,
porque sem fé, sem luz, o ser humano
carrega a cruz de sua insensatez.

O PODER DO AMOR

Quanto mais penso no poder que o amor
exerce sobre mim e me fascina,
convenço-me, serás o meu torpor,
não importa o que diz a medicina.

Se estás comigo, sinto o teu calor
e uma paz silenciosa me domina,
o tempo não mais corre com rancor
e o teu olhar, meus olhos, ilumina.

Eu quero me prender neste pecado,
e em teu amor ficar acorrentado
como fiquei nos versos que compus.

E prometo cantar com tal Doçura
uma canção de Paz e de Ventura
que o nosso Amor nos levará à Luz!

POEMA SEM NOME

Fui buscar na memória da saudade
o arrulho da juriti, no pé da serra,
o canto do sabiá nas mangueiras do pomar,
quando havia ainda floresta sobre a Terra.

Fui buscar na prece da tarde
a ternura do sol em pleno Ocaso.
Fui buscar o perfume da rosa
que, sorrindo no jardim,
torna a paisagem mais radiosa.
Busquei também nos passarinhos
que saltitam, em seus ninhos,
a canção dos amantes.

Busquei a luz no brilho das estrelas,
aquela mais brilhante e resplendente,
aquela luz dos teus olhos.
Busquei a fé, que renasce na alma do poeta,
quando sonha, quando ama, quando crê.

Busquei a plenitude da vida
nas vibrações do amor
quando o céu fica mais perto.
E, mesmo estando no deserto,
sinto que estou num prado tranquilo,
numa paisagem verde, deslumbrante,
onde ouço misteriosamente o som de um violino
e me reencontro enamorando o Mundo
em busca do meu sonho e do meu destino!

POESIA

Enquanto houver natureza
e pássaros cantando,
um botão de rosa se abrindo,
uma criança sorrindo,
então haverá poesia.

Enquanto houver sentimento,
um amor para lembrar
e a brisa leve a soprar,
então haverá poesia.

Enquanto houver um poeta,
estrelas no firmamento,
uma saudade a cantar,
um sonho a acalentar,
então haverá poesia.

Enquanto no mundo houver
um coração de mulher,
o amor terá sentido,
a vida será florida
e a mulher será amada
pelos poetas do mundo.

VITÓRIA

Não há vitórias sem batalhas, creio
que a própria vida terá mais valor,
se a luta for renhida, mais anseio
para lutar na guerra contra a dor.

A competência e a fé já são um meio
de vencer com sucesso e sem favor.
A honestidade traz respeito alheio
e recompensa quando houver amor.

Têm mais sabor vitórias alcançadas
quando são justamente conquistadas,
sem artifícios ou qualquer trapaça.

Feliz de quem, na vida, assim peleja
porque a felicidade vem e beija
os que venceram com amor e graça.

Para conhecer mais poesias do poeta, visite o blog do poeta, em atividade desde 2010:

Lima Barreto (Hussein Ben-Áli Al-Bálec e Miquéias Habacu)



Antes da conquista francesa, havia, na Argélia, uma família composta de um velho pai doente e seis filhos varões. Desde muito que o pai, devido aos achaques da idade, não se entregava diretamente aos trabalhos da sua lavoura; mas, sempre que o seu estado de saúde lhe permitia, tinha o cuidado de correr as suas terras com plantações, que eram de tâmaras, alfa, oliveiras, laranjeiras, havendo somente uma parte que era destinada à criação de ovelhas, cabras e bezerros. As plantações e a criação estavam entregues a cinco dos seus filhos, pois o mais velho, ele o tinha mandado ao Cairo, para estudar profundamente, na respectiva universidade, a lei do Profeta e vir a ser um ulemá digno e sábio no Corão.

Áli Bâlec Al-Bâlec era o nome desse filho do velho árabe e esteve de fato no Cairo; mas, bem depressa, abandonou o estudo das santas leis de Alá e do Profeta e procurou a sociedade dos infiéis.

Foi ter nas suas aventuras à Grécia, onde se demorou muito tempo e adquiriu dos gregos muitos hábitos, costumes e vícios. Não se pode em confiança dizer que os atuais sejam bem netos dos antigos; mas são aparentados. A finura e sagacidade dos últimos para abstrações filosóficas, para especulações científicas, para a análise dos sentimentos e paixões, do que dão provas as suas obras de filosofia, as suas criações científicas e as suas grandes obras literárias, empregam nos nossos dias os atuais na mercancia, no tráfico, no escambo, em que sempre procuram, com a máxima habilidade e sabedoria enganar não só os estrangeiros, como os seus próprios patrícios.

No Oriente, só há um traficante que não seja enganado pelo grego: é o armênio. Diz-se mesmo lá: o judeu é enganado pelo grego, mas o armênio engana ambos.

Os turcos, de onde em onde, matam estes últimos aos milheiros, não tanto por motivos religiosos, mas por ódio do comprador cavalheiresco, do homem leal e crédulo, que se vê enganado despudoradamente, e sente que não há, no outro que o ludibriou, nenhum princípio de honra, de lealdade, de honestidade, que as relações entre os homens o exigem.

Ali Bálec AI-Bálec, apesar de ser muçulmano, foi atraído para o meio dos gregos e, com eles, aprendeu as suas espertezas, maroscas e habilidades para enganar os outros.

E assim foi que ele andou fora da casa paterna, fazendo o escambo dos mares do Levante, indo de Alexandria para Constantinopla, dai para Jafa, deste porto para Salônica, desta cidade para Corfu, perlustrando todos aqueles mares azuis, cheios de história, de lenda, de sangue e piratas, comerciando e mesmo pirateando quando a ocasião se lhe oferecia.

Ao saber da morte do pai, vendeu logo a faluca (1) que possuía e correu a receber a herança. Coube-lhe uma grande data de terra, coberta de pés de tâmaras, enquanto os irmãos tinham as suas cultivadas com alfa, com laranjeiras, oliveiras e um mesmo recebeu a sua parte em terrenos de pastagens magras, onde pascentavam rebanhos enfezados de ovelhas e cabras.

Todos, porém, ficaram contentes com a partilha e iam vivendo.

Áli Bálec Al-Bálec trouxera como sua mulher uma israelita que renegara o Talmude pelo Corão, mas, apesar disso, tinha o maior desprezo pelos muçulmanos, aos quais considerava grosseiros, convencendo de tal coisa o marido a ponto dele não dar mais importância aos seus próprios irmãos.

Logo ao voltar ainda os atendia e os visitava; mas a mulher lhe dizia sempre:

— Esses teus irmãos são uns brutos! Parecem mochos! Uns bobos! Que sandálias! O pano das suas chechias (2) é barato e sempre está sujo! Deixa-os lá!

Aos poucos, devido aos conselhos de sua mulher, Salisa, da sua insistência, ele deixou de procurar os irmãos, fez-lhes má cara, embora os filhos deles viessem de quando em quando, à casa do tio, para ver o primo Hussein, que se ia criando mais pérfido que o pai e mais orgulhoso que a mãe.

Em pouco, Ali ficou inteiramente convencido da sua imensa superioridade sobre os seus humildes e resignados irmãos.

Por ter na sua sala um tapete de Esmirna, serem as suas armas de aço de Damasco, tauxiadas de ouro, julgava os seus manos, que se tinham habituado á simplicidade e à modéstia, como inferiores, iguais aos das tribos negras que viviam para além do deserto. Julgando-os assim, esquecia-se que, enquanto ele viajava, enquanto ele aprendia aquelas coisas finais, os irmãos plantavam, ceifavam e colhiam, para ele aprender.

Além disso, Ali, como falasse alguns patoás levantinos, julgava-se muito mais que todos os do vilaiete (3) e também, por possuir joias de ouro e pedras caras, valendo muitas piastras, imaginava que tudo podia.

Por esse tempo, chegaram os franceses e o caid (4) apelou para todos, a fim de socorrer o bei (5) com homens e valores. Ali ofereceu uma das joias do seu tesouro e quase por isso foi empalado. O joalheiro do palácio verificou que as joias eram inteiramente falsas e, vindo o bei a saber disso, tomou a cousa como afronta e mandou castigar severamente o doador.

Salisa, sua mulher, ficou, ao conhecer a notícia, no mais completo desespero, não porque o marido estivesse em risco de vida, mas pelo fato que a fortuna representada por aquelas joias não era mais que fumaça.

Ali foi solto e jurou que havia de enriquecer de novo. Aceitou sem resistência a dominação francesa e, com alegria, viu que essa dominação trazia uma grande alta para as tâmaras que o seu terreno produzia prodigiosamente.

Seus irmãos, a seu exemplo, aceitaram os francos e continuaram na sua modéstia, observando muito religiosamente as leis do Corão. Ali, já habituado, em pouco se misturou com os infiéis a quem vendia as tâmaras por bom preço e gastava o grosso do rendimento que ia tendo em bebidas, apesar da proibição do Corão, em orgias com os oficiais e funcionários franceses. Construiu um palácio que ele pretendia parecido com aquele do grande califa. Harum Al-Rachid, em Bagdá, conforme é descrito no livro de histórias da princesa Sherazade.

Vendo que as tâmaras eram muito procuradas pelos francos que, por elas, pagavam bom dinheiro, por toda a parte começaram a plantar tâmaras; os irmãos de Ali, porém, não quiseram fazer tal, pois sabiam por experiência de seu pai, que, desde que houvesse muitas tâmaras para vender e, não se precisando desse fruto para o nosso comer diário, não era possível que muita gente as quisesse comprar tão caro. Abundando tinham que vendê-las mais barato, para atingir e provocar os compradores mais pobres.

Continuaram com a sua alfa, as suas laranjeiras, a pascentar os seus rebanhos, sem nenhuma inveja do irmão que parecia rico e os desprezava.

Os seus sobrinhos, de quando em quando, iam às terras do tio e ele, por ostentação, por vaidade e para mostrar riqueza, lhes dava uma libra turca e as crianças voltavam para casa dos pais, dizendo:

— Tio Ali é que é gente! Tem tudo! Como ele é rico, por Alá!

Os seus pais respondiam:

— Cada um se deve conformar com o que Alá lhe dá! É bom que prospere, pois tem família… Deus é Deus e Maomé é seu profeta.

Veio a morrer Ali, quando as tâmaras começaram a cair de preço. Herdou-lhe os bens, além da mulher, o seu único filho Hussein Ben-Ali Al-Bálec que tinha todos os defeitos do pai aumentados com os de sua mãe.

Era vaidoso, presunçoso, ávido, desprezando os parentes, para os quais era avaro, desprezando-os como se fossem animais imundos e tidos em maldição pelas Leis do Profeta. Com os franceses, entretanto, era mais pródigo do que o pai e fingia ter as suas maneiras e usos.

Nas gazetas que começaram a aparecer em Argel, Hussein Ben-Áli AI-Bálec era gabado e, apesar das leis do Corão proibirem a reprodução da figura humana, uma delas lhe publicou o retrato. As tâmaras começaram a descer; e, como Hussein tivesse notícias que, duas léguas próximas, um outro muçulmano possuía uma grande plantação delas, começou a pensar que era esta que fazia descer o preço das suas.

Em Argel, sobretudo no vilaiete de Hussein, personificam-se sempre os fenômenos e a sutileza de um plantador de tâmaras não pode bem conhecer, apesar de raça árabe, o filigranado das induções da economia política…

Imaginou logo destruir a plantação e mesmo toda aquela que aparecesse na redondeza. Supôs de bom alvitre ir com alguns homens e queimar os coqueiros. O dono certamente queixar-se-ia ao caide às autoridades francas; e seria uma complicação. Homem de expedientes, lembrou-se de conseguir do capitão francês da guarnição, AL-Durand OU Al-Burhant, a destruição do plantio rival. Habitualmente, fez-se amigo do rume, encheu-o de presentes, de festas, de bebidas, pois seguia o exemplo de seu pai nesse tocante; e o “cão do cristão” se fez afinal seu amigo. Um dia, depois de uma festa, o militar, que pisava indignamente a terra onde estavam os ossos do seu pai, após muitas queixas de Ali, apiedado do árabe, apressou-se em ir à plantação do vizinho e castigá-lo. Assim fez, com os seus soldados e os ferozes serviçais de Hussein. Houve queixa; o capitão foi punido; mas o saás de tâmaras não subiu nem meio gourde (moeda).

As suas finanças iam de mal a pior, a casa magnífica ia dando mostras de ruína e os seus móveis e alfaias deterioravam-se com o tempo. Sua mãe não cessava de censurar-lhe pelas faltas que não lhe cabiam. Ela, com aquela arrogância muito sua e inveja também muito sua, repreendia-o:

— Vês: as tâmaras caem de preço e tu não tomas providência alguma. Os meus não são assim… Mas tens o sangue de teu pai… E verdade que teus tios estão vendendo alfa, oliveiras, gado e laranjas e ganham… Se tu não fizeres esforço algum, ficarás como eles, uns macacos a viver em tocas e a dormir em pelegos de cameiro… Xmed, o teu segundo tio, ganhou duzentas piastras em azeitonas e ficou contente. Queres ser como ele?

— Que hei de fazer, mãe?

— Pensa; e não fiques aí a chorar como mulher. Saul chorou? Davi chorou? Só o Deus dos cristãos chorou: Jeová não ama o choro. Ele ama a guerra e o combate, até o extermínio. Lê os livros, os que foram os meus e os teus que são também agora os meus. Lembra-te de Débora e de Judite e eram mulheres!

Hussein Ben-Ali AI-Bálec não podia dormir com a impressão das palavras de sua mãe. O saás de tâmaras continuava a descer de gourde em gourde, e ele só se lembrava de Áli, de Ornar, de todos aqueles de sua raça que as tinham levado em meio século, do Ganges ao Ebro. Mas o saás de tâmaras parecia não temer aquelas sombras augustas e ferozes. Descia sempre.

Certo dia, apareceu-lhe um homem que queria falar a sua mãe, Salisa. Era o irmão dela, Miquéias Habacuc. A irmã e o sobrinho acolheram muito bem tão próximo parente e lhe falaram na baixa das tâmaras que os atormentava. Miquéias, que era homem esperto em negócios, disse para o sobrinho:

— Filho de minha irmã, tens meu sangue, mas não a minha fé nos livros santos da sinagoga; mas teus avós Isaac, Baruc, Daniel, Azaf, Etã, Zabulon, Neftali e tantos outros mandam que eu te auxilie nesse transe da tua vida que é preciosa a eles e a mim, pois ela é deles e também minha. Portanto, tal forem os presentes que tu me fizeres, eu posso purificar-me de ter socorrido um ente que não é de Israel. Dize-o que o rabino me perdoará.

Hussein ficou de pensar e, à noite, conferenciou com sua mãe Salisa.

— Filho, dá-lhe alguns cequins turcos e aquelas joias falsas que quase custaram a morte de teu pai. Porque — ouve bem — o conselho dele pode ser falaz.

Despertando Miquéias, logo Hussein foi ter com ele e propôs-lhe o escambo. O israelita, ao ver as joias, nem olhou mais os cequins. Ficou com os olhinhos fosforescentes de tigre na escuridão. Era como se fosse dar um salto de felino. Contou então ao sobrinho como devia proceder.

— Tu que tens o sangue de minhas avós Micaia, que era da tribo de Jeroboão, e de Azarela, que era da casa de Leedã, ouve, comprarás todas as tâmaras que houver na redondeza, mesmo antes de amadurecerem, ficando elas nos pés. Quando for época de colhê-las, colhe-las-ás todas, guardando em surrões nos armazéns de tua casa e não venderás senão quando te oferecerem um lucro que dê a fartar para gastares…

— Tio amado e sábio: elas não apodrecerão?

— Não importa. As poucas “medidas” em que isto acontecer darão prejuízo, mas tu marcarás o lucro de modo que o cubras.

Hussein Ben-Ali Al-Bálec descansou um instante a cabeça sobre o peito, depois a ergueu de repente e exclamou:

— Falas com a sabedoria do Profeta, Miquéias Habacuc. Que Alá seja contigo!

Miquéias Habacuc, filho de Uriel de Sepetai, não se quis demorar mais e partiu despedindo-se da irmã Salisa e do sobrinho Hussein Ben-Áli AI-Bálec com lágrimas nos olhos, canastras pesadas com os cequins turcos e as joias falsas com que o sobrinho lhe pagara o seu profundo conselho de economia política hebraica.

Hussein fez o que lhe foi aconselhado; e as tâmaras começaram a ter mais oferta de preço. Vendeu-as com grande lucro no primeiro ano; no segundo, se sentia uma certa resistência no mercado, ele as reteve em grande parte; mas, no terceiro ano, ele teve que comprar a produção e viu que ia aumentando o estoque do que, se pode chamar de valorização das tâmaras. Viu bem que se continuasse a comprar a produção, ficaria com ele demasiado aumentado, a sua fortuna comprometida e que fez? Cedeu. As tâmaras começaram a descer gourde a gourde. Teve uma ideia que um sargento francês lhe indicou. Vendo que elas encalhavam nos seus armazéns e os pedidos cresciam lentamente; vendo, pouco a pouco, os seus coquinhos perdendo o valor, alugou alguns gritadores que berrassem, nas ruas de Argel, a guerreira:

— Vivam as tâmaras! Não há cousa melhor que as tâmaras de Hussein Ben-Áli Al-Bálec!

Nas gazetas, ele pagava anúncios das suas tâmaras, mas não vendia mais que dantes. Deu-as de graça e, como toda coisa dada de graça, elas só agradavam desse modo.

Em se tratando de vendê-las, nada! Os surrões de tâmaras aumentavam nos seus armazéns, pois teimava em comprá-las e guardá-las, para que elas não viessem afinal a não valer nada.

O tapete de Esmirna que o pai lhe deixara desfiava-se, empenhou as armas preciosas, também a herança do pai, para comprar mais sacas de tâmaras. Comprou um tapete falso e umas armas vagabundas de um cabila (6) mais vagabundo ainda, para pôr no lugar das antigas preciosidades. Os outros plantadores, que se tinham limitado a colher e vender, iam vivendo das suas modestas plantações; ele, Hussein Ben-Áli AI-Bálec, corria para a ruína certa.

Foi por ai que, novamente, lhe apareceu Miquéias Habacuc, seu tio, homem hábil e esperto nos negócios. Hussein ficou espantado, mas o tio lhe disse:

— Rebento da minha querida irmã, pelo Deus de Abraão, de Israel e de Jacó, não te amedrontes: vendi as joias por um bom preço a um grego, com o que ganhei duas coisas: dinheiro e a glória de ter enganado um cão dessa espécie. Mas, pelo Eterno! Esta ideia de pagar-me o conselho em joias falsas não é tua… Isto tem dedo de pessoa inteiramente da minha raça de Mardoc e Malaquias… Isto é de minha irmã! Não foi tua mãe quem…

— Foi. E que fizeste do dinheiro, tio amado da minha alma; socorro da minha vida?

— Emprestei-o aos turcos com bons juros e quando os cobrei, quase me esfolaram. Muito tem sofrido a raça de Israel; mas o que sofri deles, nem contar te posso — ó descendente do grande Al-Bâlec, companheiro de Musa — conquistador das Espanhas!

Acabava de dizer estas palavras, quando entra no aposento em que estavam Salisa, a feroz Judite, a eloquente Débora — que, ao dar com o irmão, se põe em prantos, exclamando:

— Irmão do coração, sábio Miquéias! Tu que descendes como eu de Micaia, da tribo de Jeroboão, e de Azarela, que era da casa de Leedã, salva-me pelo nosso Deus de Abraão, de Israel e de Jacó — salva-me!

E a feroz Judite e eloqüente Débora chorou não a sua dor, nem a dos outros, mas o dinheiro que se sumia.

Contou, então, Hussein ao tio, como a ruína se aproximava; como a valorização das tâmaras, no começo dando tão bom resultado, viera a acabar, no fim, em desastre completo.

O velho Miquéias, filho de Uriel de Sepetai, coçou as barbas hirsutas; os seus olhinhos luziram naquele quadro de pelos cerdosos; depois, faiscando-os malignamente, perguntou ao sobrinho:

— Com que dinheiro tu, sobrinho meu; com que dinheiro fizeste a operação?

Hussein disse-lhe que fora com o dinheiro dele e o da sua mãe. Miquéias Habacuc, judeu de Salônica, homem esperto e hábil em negócios, sorriu com gosto e demora, dizendo após:

— Tolo que és!

— Por quê?

Habacuc assim falou de súbito, logo imediatamente á pergunta:

— Que me darás em troca pela explicação?

— A última bolsa de cequins de ouro que me resta.

— És generoso e grande, sobrinho meu, filho de Salisa, minha irmã, guarda-a. Ganharemos mais. Fizeste mal em empregar o teu dinheiro e o da tua mãe. Devias empregar o dos outros.

— Como, tio Miquéias?

— Tu não sabes, meu sobrinho, essas operações de câmbio e de banco. Eu as sei. Nós agora vamos organizar a defesa das tâmaras, isto é, impedir que especuladores reduzam à miséria e à desolação esta rica região do Magreb, como dizia o teu grande avô, Al-Bálec. Vamos pedir dinheiro aos seus habitantes, para que não morram de fome e não pereçam à míngua por falta de trabalho.

— Não me darão, tio.

— Dar-te-ão, sobrinho do meu coração; dar-te-ão. Chama teus tios, irmãos de teu pai, e os filhos, e convence-os que devem dar as economias que têm, em moeda, para poderes lutar com os que querem acabar com as plantações de tâmaras do vilaiete. Dize-lhes que se não o fizerem as plantações morrerão, os habitantes fugirão, aqui ficará tudo deserto, sem água e sem pastagens; e os bens deles nada valerão e serão também eles obrigados a fugir, perdendo muito, senão tudo.

— E em troca?

— Tu lhes darás vales que vencerão juros e pagarás os vales em certo prazo.

— Mas…

Nada objetes, meio do meu sangue de Sepetai, mas meu sobrinho inteiramente. Não sabes o que é a cobiça; não sabes o que é querer ter dinheiro sem trabalhar. Eles aceitarão na certa e, não sendo ricos em breve precisarão de dinheiro. Eu vou pôr um “bazar” com o saco de cequins d’ouro que te resta e farei saber que desconto esses vales teus, em dinheiro ou em mercadoria. O pouco dinheiro que tens atrairá o deles, tu comprarás tâmaras, mas pagarás em vales que vencerão o juro de dois por cento, mas que eu descontarei a vinte, trinta e mais por cento.

— Se não quiserem descontar, tio que és sábio como o mais sábio dos ulemás, como há de ser?

— Tens o dinheiro dos teus parentes. Em começo, pagarás tudo em dinheiro. Mas teus parentes, precisando de dinheiro, irão, como te disse, procurar-me. Eu os atenderei imediatamente. A fama correrá e ninguém temerá receber os teus vales.

— Compreendo. E as tâmaras?

— Irás vendendo a bom preço e guardando o dinheiro, deixando que uma grande parte apodreça. Tu viverás na pompa, na grandeza, e um belo dia, em vez de eu descontar vales, adquiro-os com ágio. Toda a gente quererá os teus vales e encheremos as arcas de dinheiro.

— E no fim, no pagamento, como será?

— Marcarás um prazo longo, pela festa do Beirão, e daqui até lá teremos tempo de agir.

Hussein Ben-Áli AI-Bálec empregou todas as lábias que lhe ensinou Miquéias Habacuc. Seus tios e primos entregaram-lhe as economias, pois ficaram muito contentes que ele se lembrasse de defendê-los, de impedir a ser completa a miséria. Tio e sobrinho encheram os simplórios homens de todos os afagos, de todas as blandícias, e iniciaram a defesa das tâmaras, que era a própria defesa do vilaiete.

Um único não quis entregar as terras de pastagem. Foi o tio que herdara as terras de pastagem. Dissera o velho:

— As tâmaras não são do gosto de todo o mundo e as que se colhem são de sobra para os que gostam delas. Hão de se as vender barato por força, pois são demais.

Hussein Ben-Áli AI-Bálec, porém, deu inicio à sua obra de grande eficácia para todo o vilaiete, ostentando uma riqueza, um luxo e uma magnificência que reduziram, fascinaram a imaginação do povo do lugar e das circunvizinhanças.

O seu palácio foi aumentado; as suas estrebarias ficaram cheias de soberbos ginetes do Hedjaz, nas suas piscinas só corriam águas perfumadas — tudo ficou sendo um encanto no seu alcáçar e dependências.

A fama de sua riqueza corria por toda a parte e até, em Argel, a branca, a guerreira, seu nome era falado. Dizia a boca do povo:

— Se todos fossem como Hussein Ben-Ali AI-Bâlec conquistaríamos todo o Magreb, expulsando os rumes.

O seu crédito ficou sendo tal que todo o dinheiro que havia naquelas terras entrou para as suas arcas.

As tâmaras subiram de preço, de fato; mas pouco. Entretanto, enquanto vendia um terço, guardava dous. Miquéias Habacuc exultava, com os descontos que fazia e com o dinheiro que era trazido para as mãos do sobrinho. Só a irmã, a feroz Salisa, temia o fim e perguntava ao irmão:

— Como pagaremos tantos vales, se já gastamos o dinheiro deles e temos mais tâmaras guardadas que vendidas?

— Cala-te, irmã que és minha. Ai é que está a minha grande sabedoria.

O dinheiro amoedado desapareceu e os vales de Hussein corriam como moeda. No começo equivaliam ao seu valor em cequins; mas, bem depressa, para se comprar com eles um saás de trigo, tinha-se de gastar o duplo do que se gastava antigamente. O povo começava a desconfiar, quando veio rebentar a guerra de Abdelcáder, emir de Mascara. Andava ele precisando de homens e víveres. O emir, que sabia do prestígio de Hussein naquele vilaiete, oferece-lhe alguns milhares de libras turcas, para que mandasse homens.

Miquéias, que sabe do caso, intervém, e propõe que o sobrinho aceite, contanto que o emir lhe compre as tâmaras. O emir acede, paga as mil libras turcas, compra as tâmaras de que não precisava.

E Hussein convence os parentes que devem partir para os goums. Para isso falou como um santo marabuto.

Antes da festa do Beirão, época que era marcada para o vencimento dos vales, fugia, com a mãe, a feroz Salisa, o tio Miquéias Habacuc, homem hábil e esperto em negócios — cheios todos de ouro, ricos de apodrecer.

No vilaiete a população caiu na miséria, menos aquele tio de Hussein Ben-Áli Al-Bálec, que não quis entrar na defesa das tâmaras.

Durante muito tempo, pastoreou as suas ovelhas e tosou os seus carneiros. Os seus netos ainda hoje fazem a mesma coisa naquele lugarejo argelino, onde as inocentes tamareiras, se não constituem objeto de maldição, são tidas como simples árvores de adorno.
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Notas (fonte: wukipedia):
(1) Faluca ou Feluca - é um barco à vela tradicional de madeira usado em águas resguardadas do mar Vermelho e Mediterrâneo Oriental, nomeadamente Malta e particularmente no rio Nilo no Egito, Sudão e também no Iraque e na Sicília.

(2) Chechia - é um chapéu tradicional masculino usado por numerosos povos islamizados. É o chapéu nacional da Tunísia. Aparentada com aboina europeia, a chéchia é basicamente um gorro cilíndrico en forma de barrete. É de cor vermelhão na Tunísia, no leste da Líbia e na região de Bengasi (onde é chamada chenna); no resto da Líbia é negro.

(3) Vilaiete - é uma divisão administrativa existente em diversos países africanos e asiáticos. Corresponde ao que em outros países se chama região, província ou estado.

(4) Caid - Na África, designava um notável que acumulava funções administrativas, judiciárias, financeiras e por vezes um chefe tribal.

(5) Bei – é um título nobiliárquico.

(6) Cabila - Os cabilas ou cabildas são um povo berbere que habita tradicionalmente a região montanhosa da Cabília, no nordeste da Argélia.
 

sábado, 3 de agosto de 2019

Varal de Trovas n. 52


Carolina Ramos (O Assobiador)


Largou o cansaço na poltrona do ônibus. Reclinou o encosto ao máximo, estirando as pernas, que ficavam longe de alcançar o apoio convencional. Conformada, fechou os olhos para o ansiado repouso.

Já o veículo resfolegava, puxando fôlego para a longa travessia, quando Solange tomou sentido de que alguém discretamente assobiava no banco traseiro. Apurou o ouvido. Bom assobiador! Reconheceu, de pronto, a melodia: — "Rapaziada do Brás". Evidente que o assobiador não deveria ser jovem, ou a música, certamente, não seria aquela. Acudiu-lhe o nome do autor — Alberto Marino. Vez ou outra, na função de Inspetor, o conhecido maestro visitava o Conservatório onde ela, em tempos estudantis, cursava Música. Recompôs, carinhosamente, a figura saudosa do velho mestre. Sóbrio, discreto, perfeito cavalheiro! Atributos difíceis de serem ainda encontrados. Nos cabelos rebeldes, no nariz proeminente, os traços inconfundíveis da presença de sangue itálico a lhe fervilhar nas veias.

O assobiador prosseguia em plena função alheado, de tudo, sem suspeitar das lembranças inconscientemente despertadas.

Crescia em Solange a curiosidade... mais do que isso, a vontade irresistível de conhecê-lo. Chegou mesmo a ajeitar os cabelos grisalhos, sem contudo encorajar-se, suficientemente, para um olhar furtivo. Um simples virar de cabeça, um inocente encontro de olhos poderiam ser mal interpretados. A idade, a condição, não lhe permitiam tais confusões. Instintivamente, começou a acompanhar, "boca-chiusa", a melodia assobiada com tanta afinação. Outras músicas vieram, num amplo repertório, sempre na mesma linha seresteira, carreando para a ouvinte um mundo de recordações ternas, docemente saudosistas.

Quando o carro parou, Solange esperou, paciente, que a maioria descesse. Na poltrona traseira, o ocupante preparava-se para sair.

Exultou ao ver passar por ela a esperada cabeça branca, portadora de jovial e gaiato boné. Não teve dúvidas! Por intuição, reconheceu, no ato, aquele que lhe amenizara a viagem, improvisando, na lousa do asfalto, a pauta musical por onde haviam deliciosamente deslizado sonhos antigos e lembranças das mais caras.

Quando os olhos de ambos se encontraram, sorriram um para o outro, ao mesmo tempo; como se adrede planejado o bem sucedido encontro.

Ao toque cortês no boné, seguiu-se a gentil indagação:

— "Posso ajudá-la, senhora?"

Sem hesitar, Solange, lisonjeada, entregou a pequena mala ao cavalheiro, dentro da agradável sensação de conhecê-lo desde sempre.

Talvez fosse um dos remanescentes daquela alegre rapaziada do Brás, que um dia inspirara o famoso maestro. Talvez...

Caminharam, lado a lado, conversando animadamente, como bons e velhos amigos.

Sem saber como, nem por quê, Solange pressentiu que sua vida viúva ganhava ritmo e melodia, a partir daquele instante.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.