segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Concurso de poemas para crianças (Poemas Premiados no Tema: Tesourinha)


1º Lugar

Katia Sentinaro
Campinas/SP

ENTRE O CÉU E A TERRA


Tesourinha no céu,
Tesourinha no chão.
Com uma, voa o papel.
Com a outra, voa a estação.
Uma supera a colina,
Outra permanece na mão.
Uma é leve, feito bailarina.
E com as duas voa a imaginação
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

2º Lugar

Décio Romano
Curitiba/PR

TESOURINHA


Tesourinha escolar
De cortar papel
O recorte que me encanta
É a nuvem lá no céu.

Quem recorta a figurinha
Que ilustra a página?
A criança que estuda
Ou a tesourinha mágica?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

3º Lugar
(Poema en espanhol)

Sheina Leoni Handel
Montevidéu/Uruguai

TIJERITA


Corta ,corta , tijerita
Corta, corta tijerita,
y no dejes de cortar;
dale forma a mis hojitas,
que las debo terminar;
con forma de palomita,
para la fiesta final,
pues las clases ya culminan
hoy es el baile especial,
y seremos palomitas,
listas para despegar.
Nuestra maestra querida,
seguro nerviosa está,
un poquito de alegría,
nos ha visto madurar,
más también melancolía,
porque debemos marchar;
piloteando tras la vida,
seguro otro año más;
terminó mi tijerita,
ya tengo pronto el disfraz,
parto para la escuelita,
seguida de mis papás,
a celebrar este día,
fin de otro año escolar,
un momento de alegría,
de esos que hacen llorar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
TRADUÇÃO PARA O PORTUGUÊS, por José Feldman

TESOURINHA


Corta, corta, tesourinha
Corta, corta, tesourinha,
e não pare de cortar;
molda minhas folhinhas,
que devo terminar;
em forma de pomba,
para a festa final,
pois as aulas acabaram.
hoje é o baile especial,
e seremos pombinhas,
pronto para decolar.
Nossa querida professora,
certeza que está nervosa
um pouquinho de alegria,
nos viu amadurecer,
mas também melancolia,
porque devemos marchar;
pilotando após a vida,
certeza outro ano;
terminei minha tesourinha,
já tenho pronto o traje,
parto para escola,
seguida por meus pais
para comemorar este dia,
fim de mais um ano letivo
um momento de alegria,
daqueles que fazem chorar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MENÇÃO HONROSA

Rita Queiróz
Feira de Santana/BA

MÃOS DE TESOURA


Com as mãozinhas mágicas,
Joaninha e Pedrinho fazem arte.
Cortam tudo que veem pela frente
De papel a sabonete, fazem picadinho
Colam num quadro e fazem um mosaico.
Joaninha e Pedrinho querem outro mundo
As mãozinhas são tesouras afiadas
Cortam os galhos das árvores, as folhas
Tudo voa pelos ares como bolas de sabão
Coloridas imagens recortadas nas asas do avião.
Cabelos e unhas cortados, nariz empinado
Bonecas viram Pinóquios, brincam de Pluft
Fantasminha amigo, corta o branco lençol
Buracos nos olhos, bocas abertas,
Risadas dobradas, origâmis bailam.
Tesourinha é uma varinha de condão
Da fada e do mago, farta imaginação
Corta a tristeza, a mágoa e o mau humor
Vira alegria, amor e muita gratidão,
Fartos pedaços de uma fantasia infantil.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MENÇÃO HONROSA

Flávia Ferrari
São Paulo/SP

FOTOGRAFIA


A menina Rosa gostava de rolar na terra
Correr sozinha pela escola
Contar os tatus-bolas
Olhar as minhocas se esconderem no canteiro
Pendurar-se na trave do goleiro
E durante sua exploração
Aparecia aquele bichinho diferente
De quem a menina não tinha notícia
Com suas garras em forma de pinça
De movimento alongado
E corpo achatado
Gostava de se esconder de Rosa
E ela ficava intrigada
Tocava o sinal e a menina nem se mexia
E logo tirava os sapatos
Voava no balanço sem vontade de aterrissar
Nunca se cansava de brincar
Eis que um dia
Enquanto folheava um livro na sala
Rosa teve uma surpresa
E saiu em disparada
Passou correndo pela amarelinha
Procurou por todo quintal
E a encontrou bem perto do bananal
Com a boca cheia de vontade
Tinha que dizer bem alto
Chegou pertinho da sua nova amiga
Que parecia olhar para Rosa
- Tesourinha, Tesourinha, descobri que você é famosa
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MENÇÃO HONROSA

Elieder Corrêa da Silva
Curitiba/PR

MOTRICIDADE


Marianinha, garota vivaz,
na mão a tesourinha,
repica papéis, sabe, faz.
Faz toalhinhas floridas,
bandeirolas coloridas,
em folhas brancas de papel.
Recorta animaizinhos,
enfeitarão o carrossel.
O carrossel terá cavalos,
peixes e passarinhos,
Nesses momentos
lúdicos com a
tesourinha na mão,
recortou para a mamãe
bonito coração.

Milton S. Souza (Amante à moda antiga)

Tudo começou naquele encontro casual na floricultura. O relógio marcava nove horas da manhã quando ele estava entrando e o outro sujeito, moreno, alto, de bigode, saindo. Quase colidiram na porta. E o enorme ramalhete de flores, com cerca de 30 rosas brancas e vermelhas, que o outro levava nas mãos, chamou a sua atenção. Foi então que resolveu comprar um igual. Afinal, nada melhor do que presentear a sua “filial” com aquele belíssimo buquê de flores. Ela era tão compreensiva. Nunca reclamava da sua condição de homem casado e sempre estava pronta, naqueles poucos momentos em que conseguiam se encontrar, para cobrir a sua vida de carinhos. Ninguém melhor do que ela para merecer aquelas flores...

Pagou caro pelo ramalhete. E pagou um pouco mais ainda para que as flores fossem enviadas diretamente para a casa da “2ª dama”. Não poderia deixar furo. Se fosse visto saindo da floricultura com aquela belezura de buquê, logo a sua mulher saberia de tudo. Foi discreto até mesmo no cartão que escreveu para colocar junto com as flores: “Tu sabes que és a primeira no meu coração”. Não assinou e nem colocou o nome da amada. Nem precisava. Ela logo saberia que o presente era dele. Ainda mais naquela data, 21 de setembro, quando o calendário marcava o Dia da Amante...

Trabalhou o dia inteiro esperando um telefonema de agradecimento da sua amada-amante. Mas o telefonema não chegou. Até tentou ligar para o apartamento dela, do seu celular, mas não conseguiu completar a ligação. E não quis pedir para a secretária tentar, pois poderia levantar suspeitas. Lamentou não ter tempo sobrando para fazer uma visita-surpresa e saborear em carícias aquele “investimento florido”. O dia terminou sem surpresas. Mas a surpresa maior, sem que ele soubesse, estava esperando na sua própria casa...

Quando entrou no “doce-lar” a mulher não estava. Num bilhete, avisava que tinha ido ao instituto de beleza. “A bruxa querendo se enfeitar”, pensou em voz alta. Quase caiu duro, porém, quando penetrou no quarto e viu, sobre a cômoda, um buquê de flores exatamente igual ao que ele havia enviado para a casa da amante. Seus pensamentos dispararam: como um raio, surgiu na sua mente o fantasma do “cara” moreno, alto e de bigode da quase colisão na floricultura. Sentiu uma estranha coceira repentina na testa. Começou a imaginar que aquele sujeito metido a bonitão era amante da sua mulher. Só poderia ser isso. Receber flores no Dia do Amante!!! Desgraçada. Que instituto de beleza, que nada. A esta hora ela deveria estar em algum motel lambendo os bigodes daquele miserável!!! Sentou na cama, arrasado, com a cabeça entre as mãos. Naquele momento, escutou o barulho da porta se abrindo. Só poderia ser ela, a maldita traidora...

A mulher veio quase correndo na direção dele, cabelo cortado e arrumado, toda maquiada e enfeitada. Nem conseguiu falar. Foi sufocado por um abraço e um beijo. E ela começou a desfiar um rosário de agradecimentos pelas flores e de desculpas “por não estar sendo uma boa esposa ultimamente”. Elogiou o cartãozinho escrito com a letra dele, com a declaração de que ela era “a primeira no seu coração”...

Um turbilhão passou pelos seus pensamentos. Só poderia ser isso. Na hora de escrever o endereço para a entrega das flores, pela força do hábito, colocara o da sua casa no lugar do da amante. Um calafrio desfilou pelo seu corpo. Ainda bem que não escrevera o nome da dita cuja, senão... Sentiu dois pesos pontudos saírem da sua cabeça... E se entregou de corpo e alma para as carícias da esposa, que nem lembrou de fechar a porta do quarto para começar a se despir.  Foi o melhor Dia da Amante da sua vida…

Fonte:
Recanto das Letras do autor.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/72831

domingo, 14 de agosto de 2022

Varal de Trovas n. 566

 

Lairton Trovão de Andrade (Enxurrada de Poemas) – 7 -

CANÇÃO DE AMOR

 
"Vem, formosa minha, vem!"
(CL 2.10)


Volta, amada minha,
Vem pra junto de mim,
Que uma canção de amor
Te cantarei.

Eu te espero sempre,
Sempre com ansiedade,
E com canção de amor
Te embalarei.

És toda minha vida,
És tudo para mim,
És tudo,
Tudo o que sonho!
Tudo, tudo,
Meu bem,
Meu bem!

Eu não suporto mais
Este exílio sem fim;
E com canção de amor
Te esperarei.

Tão só estou no mundo,
No mundo tão deserto;
E com canção de amor
Te buscarei.

És toda a minha vida,
És tudo para mim,
És tudo,
Tudo o que sonho!
Tudo, tudo,
Meu bem,
Meu bem!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

DOCE ESPERANÇA

"Eu sou do meu amado, e o meu amado é meu."
(Ct. 6.3)


Longo tempo de espera passou,
Novo dia raiou na estação;
Trago n'alma o nosso passado,
Pra revê-la com toda emoção.

Na memória, bem viva, a guardei,
Eu só tive você na saudade;
Suspirei encontrá-la de novo
- Casarei com a felicidade.

Vou dizer-lhe que o amor é maior,
Ele é puro tal como o marfim;
Ele sabe que digo a verdade
- É o amor que jamais terá fim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MINHA
 
"Graciosa é tua boca!"
(Ct. 4.3)


Bela menina, atraentes olhos,
Com quanto ardor me procuras tanto;
Essa maneira do teu olhar
Faz-me sonhar e compor meu canto.

Lindo botão de rosa vermelha
É tua boca tão redondinha;
Deixa eu te dar, de leve, um beijinho
E, com jeitinho, hás de ser minha.

Que encanto um dia poder beijar-te,
Co'aquele beijo lá d'outro mundo;
Da tua entranha viria um gemido
Estremecido num "ai" profundo.

A brisa iria sentir na tua boca,
Na tua boca tão redondinha;
Suave aroma de puro amor,
Com que calor irias ser minha.

Meiguice estranha deste teu ser
Que, embora em chama, me dá frescor;
És refrigério de sensação,
Rara paixão que fecunda o amor.

Oh, não me deixes, quero-te muito!
Venhas saciar este sonho meu!
Será que alguém te dá mais calor?!
- Maior amor quem te dá sou eu!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

POMBAL
 
"Ali te darei minhas delícias."
(Ct. 7.13)


Rósea pombinha, contempla a alvorada!
Voa pra mim! - É hora da revoada
Para o pombal amigo.
Voarei contigo, no teu doce lado!
Felicidade é o Éden procurado
Que será nosso abrigo.

Não demores mais! - O ágave* te chama
Com voz tangente... O teu ser se inflama
Num idílio de amor.
Voejarei contigo!… Dar-me-ás a mão...
Como ninguém, serás feliz então,
Bem longe do pavor.

Além das vagas, no pombal distante,
O Sol, da Lua, eternamente amante,
Em namoro sem fim,
Contigo ficarei - assim juntinho,
Para te dar amor no mesmo ninho...
E arrulharás pra mim...

Irás repousar em seguros ombros,
Acalentando carícias dos pombos
Do alvejante pombal.
Do mundo esquecerás por um instante,
Reclinarás no ninho aconchegante
- Delícia sem igual.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
* ágave = Planta ornamental. Fig: algo de extrema raridade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Madrigais: poesias românticas. Londrina/PR: Ed. Altha Print, 2005.
Livro enviado pelo autor.

Machado de Assis (Flor anônima)

Manhã clara. A alma de Martinha é que acordou escura. Tinha ido na véspera a um casamento; e, ao tornar para casa, com a tia que mora com ela, não podia encobrir a tristeza que lhe dera a alegria dos outros e particularmente dos noivos.

Martinha ia nos seus... Nascera há muitos anos. Toda a gente que estava em casa, quando ela nasceu, anunciou que seria a felicidade da família. O pai não cabia em si de contente.

— Há de ser linda!

— Há de ser boa!

— Há de ser condessa!

— Há de ser rainha!

Essas e outras profecias iam ocorrendo aos parentes e amigos da casa.

Lá vão... Aqui pega a alma escura de Martinha. Lá vão quarenta e três anos, — ou quarenta e cinco, segundo a tia; Martinha, porém, afirma que são quarenta e três. Adotemos este número. Para ti, moça de vinte anos, a diferença é nada; mas deixa-te ir aos quarenta, nas mesmas circunstâncias que ela, e verás se não te cerceias uns dois anos. E depois nada obsta que marches um pouco para trás. Quarenta e três, quarenta e dois, fazem tão pouca diferença...

Naturalmente a leitora espera que o marido de Martinha apareça, depois de ter lido os jornais ou enxugado do banho. Mas é que não há marido, nem nada. Martinha é solteira, e daí vem a alma escura desta bela manhã clara e fresca, posterior à noite de bodas.

Só, tão só, provavelmente só até a morte; e Martinha morrerá tarde, porque é robusta como um trabalhador e sã como um pero. Não teve mais que a tia velha. Pai e mãe morreram, e cedo.

A culpa dessa solidão a quem pertence? ao destino ou a ela? Martinha crê, às vezes, que ao destino; às vezes, acusa-se a si própria. Nós podemos descobrir a verdade, indo com ela abrir a gaveta, a caixa, e na caixa a bolsa de veludo verde e velha, em que estão guardadas todas as suas lembranças amorosas. Agora que assistira ao casamento da outra, teve ideia de inventariar o passado. Contudo hesitou:

— Não, para que ver isto? É pior: deixemos recordações aborrecidas.

Mas o gosto de remoçar levou-a a abrir a gaveta, a caixa, e a bolsa; pegou da bolsa, e foi sentar-se ao pé da cama.

Há que anos não via aqueles despojos da mocidade! Pegou-lhes comovida, e entrou a revê-los.

De quem é esta carta? pensou ela ao ver a primeira. Seu Juca. Que Juca? Ah! o filho do Brito Brandão. “Crê que o meu amor será eterno!”. E casou pouco depois com aquela moça da Lapa. Eu era capaz de pôr a mão no fogo por ele. Foi no baile do Club Fluminense que o encontrei pela primeira vez. Que bonito moço! Alto, bigode fino, e uns olhos como nunca mais achei outros. Dançamos essa noite não sei quantas vezes. Depois começou a passar todas as tardes pela Rua dos Inválidos, até que nos foi apresentado. Poucas visitas, a princípio, depois mais e mais. Que tempo durou? Não me lembra; seis meses, nem tanto. Um dia começou a fugir, a fugir, até que de todo desapareceu. Não se demorou o casamento com a outra... “Crê que o meu amor será eterno!”

Martinha leu a carta toda e a pôs de lado.

— Qual! é impossível que a outra tenha sido feliz. Homens daqueles só fazem desgraçadas...

Outra carta. Gonçalves era o nome deste. Um Gonçalves louro, que chegou de S. Paulo, bacharelado de fresco, e fez tontear muita moça. O papel estava encardido e feio, como provavelmente estaria o autor. Outra carta, outras cartas. Martinha relia a maior parte delas. Não eram muitos os namorados; mas cada um deles deixara meia dúzia pelo menos, de lindas epístolas.

 “Tudo perdido”, pensava ela.

E, uma palavra daqui, outra dali, fazia recordar tantos episódios deslembrados... “desde domingo (dizia um) que não me esquece o caso da bengala”. Que bengala? Martinha não atinou logo. Que bengala podia ser que fizesse ao autor da carta (um moço que principiava a negociar, e era agora abastado e comendador) não poder esquecê-la desde domingo?

Afinal deu com o que era; foi uma noite, ao sair da casa dela, que indo procurar a bengala, não a achou, porque uma criança de casa a levara para dentro; ela é que lha entregara à porta, e então trocaram um beijo...

Martinha ao lembrá-lo estremeceu. Mas refletindo que tudo agora estava esquecido, o domingo, a bengala e o beijo (o comendador tem agora três filhos), passou depressa a outras cartas.

Concluiu o inventário. Depois, acudindo-lhe que cada uma das cartas tivera resposta, perguntou a si mesma onde andariam as suas letras.

Perdidas, todas perdidas; rasgadas nas vésperas do casamento de cada um dos namorados, ou então varridas com o cisco, entre contas de alfaiates...

Abanou a cabeça para sacudir tão tristes ideias. Pobre Martinha! Teve ímpetos de rasgar todas aquelas velhas epístolas; mas sentia que era como se rasgasse uma parte da vida de si mesma, e recolheu-as.

 Não haveria mais alguma na bolsa?

Meteu os olhos pela bolsa, não havia carta; havia apenas uma flor seca.

— Que flor é esta?

Descolorida, ressequida, a flor parecia trazer em si um bom par de dúzias de anos. Martinha não distinguia que espécie de flor era; mas fosse qual fosse, o principal era a história. Quem lhe deu?

Provavelmente alguns dos autores das cartas, mas qual deles? e como? e quando?

A flor estava tão velha que se desfazia se não houvesse cuidado em lhe tocar.

Pobre flor anônima! Vejam a vantagem de escrever. O escrito traz a assinatura dos amores, dos ciúmes, das esperanças e das lágrimas. A flor não trazia data nem nome. Era uma testemunha que emudeceu. Os próprios sepulcros conservam o nome do pó guardado. Pobre flor anônima!

— Mas que flor é esta? repetiu Martinha.

Aos quarenta e cinco anos não admira que a gente esqueça uma flor. Martinha mirou-a, remirou-a, fechou os olhos a ver se atinava com a origem daquele despojo mudo.

Na história dos seus amores escritos não achou semelhante prenda; mas quem podia afirmar que não fosse dada de passagem, sem nenhum episódio importante a que se ligasse?

Martinha guardou as cartas para colocar a flor por cima, e impedir que o peso a desfibrasse mais depressa, quando uma recordação a assaltou:

— Há de ser... é... parece que é... É isso mesmo.

Lembrara-se do primeiro namorado que tivera, um bom rapaz de vinte e três anos; contava ela então dezenove. Era primo de umas amigas. Julião nunca lhe escrevera cartas. Um dia, depois de muita familiaridade com ela, por causa das primas, entrou a amá-la, a não pensar em outra coisa, e não o pôde encobrir, ao menos da própria Martinha. Esta dava-lhe alguns olhares, mais ou menos longos e risonhos; mas em verdade, não parecia aceitá-lo. Julião teimava, esperava, suspirava. Fazia verdadeiros sacrifícios, ia a toda parte onde presumia encontrá-la, gastava horas, perdia sonos. Tinha um emprego público e era hábil; com certeza subiria na escala administrativa, se pudesse cuidar somente dos seus deveres; mas o demônio da moça interpunha-se entre ele e os regulamentos. Esquecia-se, faltava à repartição, não tinha zelo nem estímulo. Ela era tudo para ele, e ele nada para ela. Nada; uma distração quando muito.

Um dia falara-se em não sei que flor bonita e rara no Rio de Janeiro. Alguém sabia de uma chácara onde a flor podia ser encontrada, quando a árvore a produzisse; mas, por enquanto, não produzia nada. Não havia outra, Martinha contava então vinte e um anos, e ia no dia seguinte ao baile do Club Fluminense; pediu a flor, queria a flor.

— Mas, se não há...

— Talvez haja, interveio Julião.

— Onde?

— Procurando-se.

— Crê que haja? perguntou Martinha.

— Pode haver.

— Sabe de alguma?

— Não, mas procurando-se... Deseja a flor para o baile de amanhã?

— Desejava.

Julião acordou no dia seguinte muito cedo; não foi à repartição e deitou-se a andar pelas chácaras dos arrabaldes. Da flor tinha apenas o nome e uma leve descrição. Percorreu mais de um arrabalde; ao meio-dia, urgido pela fome, almoçou rapidamente em uma casa de pasto. Tornou a andar, a andar, a andar. Em algumas chácaras era mal recebido, em outras gastava tempo antes que viesse alguém, em outras os cães latiam-lhe às pernas. Mas o pobre namorado não perdia a esperança de achar a flor. Duas, três, quatro horas da tarde. Eram cinco horas quando em uma chácara do Andaraí Grande pôde achar a flor tão rara. Quis pagar dez, vinte ou trinta mil réis por ela; mas a dona da casa, uma boa velha, que adivinhava amores a muitas léguas de distância, disse-lhe, rindo, que não custava nada.

 — Vá, vá, leve o presente à moça, e seja feliz.

Martinha estava ainda a pentear-se quando Julião lhe levou a flor. Não lhe contou nada do que fizera, embora ela lhe perguntasse. Martinha porém compreendeu que ele teria feito algum esforço, apertou-lhe muito a mão, e, à noite, dançou com ele uma valsa. No dia seguinte, guardou a flor, menos pelas circunstâncias do achado que pela raridade e beleza dela; e como era uma prenda de amor, meteu-a entre as cartas.

O rapaz, dentro de duas semanas, tornou a perder algumas esperanças que lhe haviam renascido. Martinha principiava o namoro do futuro comendador. Desesperado, Julião meteu-se para a roça, da roça para o sertão, e nunca mais houve notícia dele.

— Foi o único que deveras gostou de mim, suspirou agora Martinha, olhando para a pobre flor mirrada e anônima.

E, lembrando-se que podia estar casada com ele, feliz, considerada, com filhos, — talvez avó — (foi a primeira ocasião em que admitiu esta graduação sem pejo) Martinha concluiu que a culpa era sua, toda sua; queimou todas as cartas e guardou a flor.

Quis pedir à tia que lhe pusesse a flor no caixão, sobre o seu cadáver; mas era romântico demais. A negrinha chegara à porta:

— Nhanhã, o almoço está na mesa!

Fonte:
Publicado originalmente no Almanaque da Gazeta, em 1897.

sábado, 13 de agosto de 2022

Vanice Zimerman (Tela de Versos) 3: Saudades

 

Fabiano Wanderley (Glosas) – 5

ADOTE A SUA CRIANÇA,
ANTES QUE A DROGA LHE ADOTE.


Dê-lhe amor, paz e esperança,
ame-a, com o coração,
dê-lhe estudo, educação,
adote a sua criança.

Seja dela, a segurança,
não deixe que o amor se esgote,
saiba que um papelote,
a deixará sem guarida,
dê-lhe amparo, dê-lhe vida,
antes que a droga lhe adote.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ONTEM FOI NINHO DE AMOR,
HOJE, É TERRA DE NINGUÉM.


Ele, em seu interior,
abrigou paixões, outrora;
se sozinho vive agora,
ontem, foi ninho de amor.

Teve o cárdio ao seu dispor,
segredado, um grande bem,
mas, no entanto, já não tem
quem lhe aguce o palpitar,
é vazio, em seu estar,
hoje, é terra de ninguém.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O SONHO DO JOÃO NINGUÉM,
É MAIOR QUE DO ABASTADO.


Nos anseios que detém,
tem grandezas, tem magias,
são cheios de fantasias,
o sonho do João Ninguém,

Sempre aspira ser alguém,
com destaque afortunado
e em seu delírio acordado,
trás para si, a bonança,
por quanto, sua esperança,
é maior que do abastado.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

POR TRÁS DO AMIGO SISUDO,
ESBOÇA UM LARGO SORRISO.


Quando afirmo, eu não me iludo
e falo com convicção;
há sempre um bom coração
por trás do amigo sisudo.

Ele é o famoso faz tudo,
Rogério é justo e preciso,
detesta ver prejuízo,
protege até os incertos;
traz sempre os braços abertos,
esboça um largo sorriso!

(Versos endereçados ao meu amigo Rogério Vilar, pelas suas qualidades, que tão bem, as desempenha e as merece.)
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

TEREZA, A SANTA DAS ROSAS
ENFEITA O JARDIM, DO CÉU


Entre freiras fervorosas,
contrita, em sua oração,
cumpriu a sua missão,
Tereza, a santa das rosas.

Pelas ações virtuosas,
mostrou-se sempre fiel,
é para Deus um troféu
e por todos seus louvores,
entre rosas multicores,
enfeita, o jardim do céu.

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

Sammis Reachers (Meganha, raça do cão)

Uma das aventuras mais divertidas – hoje é tudo muito divertido – que passei em minha vida de coletor de reciclagem com Renato foi assim: Num belo e ensolarado dia, enquanto transitava sozinho por um trecho da RJ 106 um pouco distante de nossas casas, já no final do bairro Arsenal, Renato viu, desperdiçado ao fundo de um riacho ou valão que cortava a rodovia, um eixo de automóvel. Sim, cinquenta ou mais quilos de ferro estavam ali, jogados fora, sem marca nem dono.

Acontece que o ferro-velho em que vendíamos os frutos de nosso trabalho era relativamente perto daquele ponto – talvez a menos de um quilômetro... Bem, Renato não conseguiria levantar aquele peso lá de baixo do riacho até a altura do asfalto, pois eram quase três metros de pequena e íngreme ribanceira. E mesmo que fossem 30 centímetros: Uma criança não suportaria aquele peso.

Foi já com um plano em mente que Renato chegou na Beira Rio. Após o relato, entendi que não poderíamos carregar aquilo sozinhos. Pergunta daqui, chama dali, e nenhum dos “tradicionais” catadores se dispôs – ou tinha disponibilidade – a ir. Por fim conseguimos convencer dois primos, os “amadores” Rodrigo e Andinho, a nos acompanharem naquele garimpo. Conseguida uma corda, sem a qual não poderíamos içar o butim, partimos em marcha de quase três quilômetros até o tal valão.

Chegados ao local, o diligente líder da expedição logo desceu para tentar amarrar a corda em volta do grande eixo. Agora restava a parte mais doce: Suspender todo aquele peso “no braço”, numa encosta íngreme. Enquanto nós três puxávamos com tudo o que tínhamos, Renato empurrava o grande troço, que vinha lento e agarrando-se vez por outra nas ramas de mato, como quem resiste a sair de seu cemitério pacífico.

Acho que nunca nenhum dos quatro fizera tanta força na vida. Conseguido o suado intento, agora era fácil: Após a pausa para respirar, bastava arrastar asfalto afora aquele pedação de ferro, até o ferro-velho. E lá fomos nós.

A (des)graça da aventura aconteceu quando, poucos metros após o tal riacho, passamos em frente a uma loja de telhas coloniais e pedras ornamentais. Lá de dentro daquele estabelecimento decorativamente burguês, um indivíduo barbudo gritou, espavorido: “Ei! Ei! Cheguem aqui!” Suspeitosos, e ocupados que estávamos arrastando aquele fardo, fizemos menção de seguir nosso caminho. Mas o indivíduo veio ao nosso encontro, e nos fez arrastar o peso para dentro do “quintal” da tal loja. Em seguida, iniciou um interrogatório digno de filmes de mocinho e bandido. Queria saber onde conseguíramos aquele eixo, afirmando peremptoriamente que era de um carro roubado. Queria informações do roubo. Explicamos que ele estava “jogado fora” dentro de um valão ali perto, talvez há anos já. Mas o elemento, apresentando-se agora como policial, não se satisfazia. Apertava-nos, queria confissões, queria saber se conhecíamos ladrões e já nos tratava, moleques de dez e onze anos, como tais.

O agravante que enfurecia o meganha era Renato, que não segurava o riso durante aquele interrogatório, fato que nem eu compreendia. Os outros dois expedicionários, Andinho e Rodrigo, esvaíam-se em lágrimas, achando que seríamos presos, e imaginando a surra que levariam em suas casas. Não posso afirmar com certeza, mas talvez até eu tenha chorado...

Resumo da ópera bufa: O pilantra supostamente a serviço da lei, após nos explicar que aquilo era de um carro roubado e que todas as peças possuem um registro numérico, disse que não poderíamos de maneira alguma vendê-la, e nos obrigou a arrastar o eixo novamente até o riacho, e jogá-lo ribanceira abaixo. Embaralhados em alívio e revolta, fizemos isso, enquanto o canalhinha nos observava, de frente à loja – que, passados quase trinta anos, ainda existe.

Voltamos para casa, uns desiludidos, outros aliviados, e todos com calos nas mãos, lanhadas por aquela maldita corda, por aquela maldita ideia de Natão, o elocubrador de ideias...

Terá nascido aí, em arquétipo, minha ojeriza contra a classe policial? Quem sabe.

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 11

 

Caldeirão Poético LIII


Adão Ventura
Santo Antonio do Itambé/MG, 1939 – 2004

PRECONCEITO

— Muitas vezes
a cor da pele
é uma grande parede.

Daí
o abraço frouxo,
o beijo mal dado
e o sorriso amarelo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Betty Vidigal
(Elizabeth Vidigal Hastings)
São Paulo/SP


PITANGAS

Era uma febre, um delírio,
Uma mandinga bem feita,
cama com cheiro de lírio.

Era um delírio, uma febre,
amor que não se endireita,
quebranto que ninguém quebra,
tremedeira de maleita,
uma mulher e um ébrio
de amor que não toma jeito.
E ela, que não se emenda?

Meus dedos fazendo renda
com os pêlos do seu peito;
o coração que se escuta
pelo quarteirão inteiro;
pitangas no travesseiro,
cama com cheiro de fruta.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Carlos Pena Filho
Recife/PE, 1929 – 1960


SONETO DO DESMANTELO AZUL

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas,

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Dora Ferreira da Silva
Conchas/SP, 1918 – 2006, São Paulo/SP


O VENTO

Na palma do vento
pouso a fronte. Nele confio.
A quem confiaria senão a ele
este rude labor?

Abandono-me à tormenta
(lumes mastros
gaivotas do mar próximo).

Enreda-me a noite.
Mas dele são os dedos leves
que me fecham os olhos. E é manhã.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Ésio Macedo Ribeiro
Frutal/MG


NOME

O poeta quer ter nome fácil: João.
Ninguém erra,
ninguém esquece,
tão barro.

João estuda o céu para o plantio,
poema de outra lavra.

O poeta colhe no espaço uma nuvem-açucena,
que cheira na página que não vinga.

João dorme cedo,
acorda com o galo.

O poeta nunca dorme,
nunca acorda.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Fernando Fábio Fiorese Furtado
Juiz de Fora/MG


COMO DESFAZER BAGAGENS

Como quem de viagem
demora a acomodar-se
ao clima, ao horário,
às vogais de outra sintaxe,
também escrever estranha
quando muda de paisagem.

Como quem de viagem,
o que carrega apouca
a dicionários, passagens
e alguma muda de roupa,
também escrever exige
aprender a descartar-se.

Como quem de viagem
pouco ou nada decifra
do manuscrito-cidade
(mal soletra as esquinas),
também escrever ensina,
menos importa encontrar-se.

Como quem de viagem
evita, quando sabe,
os apelos do fóssil,
do que é fausto adrede,
também escrever prefere
o que se dá sem salvas.

Como quem de viagem
sabe o prazer de andar
sem endereço ou idade,
com a roupa amassada,
também escrever comparte
esse corpo sem abas.

Como quem de viagem,
para rever a janela onde
lhe sorriu uma criança,
o embarque adiaria,
também escrever alcança
os vestígios desse dia.

Como quem de viagem,
das malas faz relicário
de rostos, ruídos e mares,
de balas, livros e ácidos,
escrever também seria
como desfazer bagagens.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Graça Pires
Figueira da Foz/Portugal


AMOR

Quando te procurei
em rotas de seda e ouro,
eu não sabia que o amor
é uma espera de mágoa e mel.
Nem suspeitava
que há nos corpos nus
a enchente das marés
que altera a tempestade.
E desconhecia que é preciso
empunhar o leme
para que as mágoas inundem
desesperadamente as margens.

Sílvio Romero (A mulher gaiteira)

(Folclore do Rio de Janeiro)

= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Havia uma mulher casada e que não tinha filhos. Defronte dela morava um padre, pelo qual a mulher apaixonou-se. Ela chamava-o de Rabo de Galo, por ele ter os cabelos muito bonitos.

O padre não correspondia e mesmo nem sabia de tal paixão.

A mulher já não governava mais a casa e só queria estar na janela para ver o padre. Estava já tão doida, que chegava a dizer ao marido: “Não é bonito aquele padre?” O marido fingia não compreender e afirmava o que ela dizia.

Não satisfeita de ver o padre só da janela, a mulher não perdia missa um só dia, a pretexto de ir rezar, e o marido suportando tudo calado. Querendo ver até que ponto chegava aquela mulher, pretextou uma viagem e escondeu-se perto de casa, recomendando à negra que lhe fizesse sabedor de tudo o que sua mulher praticasse na sua ausência.

Não tardou em que a negra lhe viesse entregar um bilhete que a senhora ia mandar por ela ao padre, no qual pedia-lhe uma entrevista à noite, visto o marido não estar em casa. O homem apoderou-se do bilhete, disse à negra que dissesse à senhora que o tinha entregado ao padre, e escreveu, disfarçando a letra, outro bilhete, dizendo ser do padre, aceitando o convite e marcando a hora da dita entrevista.

Trouxe a negra o bilhete e deu-o à senhora. Esta não cabia em si de contente, e à hora marcada, entrou o marido, que se disfarçou no padre, vestido de batina, e com um grande chicote de couro cru escondido. A mulher convidou-o a entrar no quarto para descansar.

Aí não teve dúvida; o marido empurrou-lhe o chicote a torto e a direito, ainda fingindo ser o padre e dizendo: “Mulher casada, sem vergonha, como é que seu marido não está em casa, e manda-me um bilhete convidando-me para vir aqui! Tome juízo”, dizia o padre, e empurrava o chicote na mulher.

Ela, desesperada com as bordoadas, dizia: “Vai-te embora, padre dos diabos, se eu soubesse que tu eras tão mau, não tinha caído nesta. Sai, malvado, tu queres me matar? Basta, não me dês tanto.”

O marido, depois que deu-lhe muito, saiu deixando a mulher quase morta de pancadas. Mudou toda a roupa, e veio para casa, fingindo ter chegado da viagem. Perguntou pela mulher e disseram-lhe que ela estava doente. Ele, muito penalizado, perguntou que moléstia era aquela, pois ele a tinha deixado tão boa. Ela respondeu que sentia muitas dores pelo corpo, mas que também não sabia o que era. Mal pôde dizer estas palavras ao marido, e começou logo a gritar, tão forte era o seu sofrimento. Então o marido disse que ela estava muito mal, e que ele ia mandar chamar aquele padre, que morava defronte, para confessá-la.

A mulher ouvindo isto, exclamou: “Não, marido, por Nossa Senhora não me mande chamar aquele padre.”

O marido replicou: “Pois mulher, você não o acha tão bonito, e como não quer que ele venha lhe confessar?”

E para apreciar bem o efeito da surra, mandou chamar o padre do Rabo de Galo, como a mulher o chamava, e este veio confessá-la, alheio a tudo o que tinha se passado. A mulher, assim que foi vendo o padre, foi dizendo: “Sim, seu diabo, ainda achou pouca a surra que me deu, e ainda se atreve a vir aqui?

“Sai, diabo, vai-te embora.” O padre ficou espantado, e acreditou que a mulher estava com efeito muito doente, que talvez estivesse com o diabo no corpo, e então benzia-a e dizia: “Filha, acomoda-te, lembra-te de Deus, que estás para morrer. Eu esconjuro este mau espírito, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, amém”.

“Sim”, dizia a mulher: “Eu esconjuro é a surra que tu me deste.”

O padre, depois de muita reza retirou-se, e o marido quase que não podia conter o riso. Passados muitos dias, de cama, levantou-se a mulher curada da grande surra. A primeira coisa que fez foi pregar a janela que dava para a casa do padre, com uns pregos bem fortes, o que, vendo o marido, disse-lhe que não fizesse aquilo, que aquela janela era para ela se distrair nas horas vagas. Por mais que o marido pedisse, a mulher não foi capaz de deixar de pregar a janela e nunca mais olhou o padre.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3. Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 59

Os versos acharam interessante como esta forma de escrita - a crônica - entrou em nossa vida. Na verdade, ela sempre andou junto a nós, versejares, embora pouco lembrada. Jamais desprezada.

As delícias da vida devem ser sempre cultivadas. O mel dos dias está em todo lugar. E nós, na condição de abelhas, devemos ensalivar o melífluo da existência, repassando doçuras em doses homeopáticas.

Os pensares, os versos, os viveres, as crônicas, são unidades que entremeiam constantemente. E deslindam, e cantam, e semeiam vozes perenes que Gaia oferece nas incendiárias manhãzinhas, nas tardes ventaneiras, nas silentes madrugadas.

Vozes vívidas vivenciando viveres.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 12

Fonte: Facebook
 

Mário Quintana em prosa e verso – 23 –


O TEMPO E O VENTO


(Para Érico Verissimo, em comemoração aos seus 65 anos)

Havia uma escada que parava de repente no ar
Havia uma porta que dava para não se sabia o quê
Havia um relógio onde a morte tricotava o tempo

Mas havia um arroio correndo entre os dedos buliçosos dos pés
E pássaros pousados na pauta dos fios do telégrafo

E o vento!

O vento que vinha desde o princípio do mundo
Estava brincando com teus cabelos...
*****
A beleza dos versos impressos em livro
— serena beleza com algo de eternidade —
Antes que venha conturbá-los a voz das declamadoras.
Ali repousam eles, misteriosos cântaros,
Nas suas frágeis prateleiras de vidro...
Ali repousam eles, imóveis e silenciosos.
Mas não mudos e iguais como esses mortos em suas tumbas.
Têm, cada um, um timbre diverso de silêncio...
Só tua alma distingue seus diferentes passos,
Quando o único rumor em teu quarto
É quando voltas, de alma suspensa — mais uma página
Do livro... Mas um verso fere o teu peito como a espada de um anjo.
E ficas, como se tivesses feito, sem querer, um milagre...
Oh! que revoada, que revoada de asas!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

CRÔNICA

(SÃO PAULO, 23 — Morreu ontem o trapezista René Bugler, internado quando o mastro em que fazia acrobacias quebrou e ele caiu de uma altura de 10 metros. (Do noticiário.))

A pantera é uma curva em movimento:
vai-se desenrolando como um desenho.
Mas a sua harmonia é linear como
a figura que, na sucessão de um friso,
repete-se, com o andante ritmo de um verso
num poema...
O trapezista,
entanto,
não quer a pauta de uma corda única
e a curva do seu voo traça geometrias no espaço,
vai e volta, mergulha, sobe, entrelaça-se
como se brincasse consigo mesma.
Só não se brinca com a imperfeição das coisas...
e a tua dança aérea, ó pobre René Bugler,
interrompeu-se:
tombaste, da altura de 10 metros, os braços abertos em cruz
e a maravilhosa curva que traçavas
imobilizada de súbito num corpo inerte.
Sim, tu estás, agora, na reta horizontalidade da morte.
A morte odeia as curvas, a morte é reta
como uma boca fechada.
Tenho até remorsos de fazer-te um poema...
O poema
— o poema da tua vida
está apenas nisto,
nestas simples palavras:
“René Bugler, trapezista,
morto aos 22 anos
no exercício da sua arte”.
*****

Nítido, no espelho,
Meu quarto projeta-se
Em parte nenhuma...
Um dia estarei,
Tão nítido assim,
Em parte nenhuma?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

RETRATO

Morreu ontem.
Portanto, o seu retrato está completo.
A longa vida — sabe Deus com que trabalho —
deixou-nos, na lembrança,
por final,
em companhia de um velhinho suave...

Mas um velhinho suave como os couros gastos,
as madeiras polidas pelo uso,
como os seixos rolados

— suave e rijo!

Sua voz grave e trêmula tinha o som do tempo
e nós sempre nos espantávamos de a estar ouvindo

porque era como se alguém tangesse o silêncio.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PAISAGEM

Sol e sombra brincavam de esconder
sobre o rosto do primeiro morto.

Perto dele, cantavam as águas,
porque ainda apenas sabiam cantar.

Cantavam as águas inocentemente
sua canção de continuar...

— e ele também não sabia de nada!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

EMERGÊNCIA

Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela
abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
— para que possas profundamente respirar.

Quem faz um poema salva um afogado.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

VIDAS

Nós vivemos num mundo de espelhos,
mas os espelhos roubam nossa imagem...
Quando eles se partirem numa infinidade de estilhas
seremos apenas pó tapetando a paisagem.

Homens virão, porém, de algum mundo selvagem
e, com estes brilhantes destroços de vidro,
nossas mulheres se adornarão, seus filhos
inventarão um jogo com o que sobrar dos ossos.

E não posso terminar a visão
porque ainda não terminou o soneto
e o tempo é uma tela que precisa ser tecida...

Mas quem foi que tomou agora o fio da minha vida?
Que outro lábio canta, com a minha voz perdida,
nossa eterna primeira canção?!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ARQUITETURA FUNCIONAL

(Para Fernando Corona e Antonieta Barone)

Não gosto da arquitetura nova
Porque a arquitetura nova não faz casas velhas
Não gosto das casas novas
Porque as casas novas não têm fantasmas
E, quando digo fantasmas, não quero dizer essas assombrações vulgares
Que andam por aí...
E não-sei-quê de mais sutil
Nessas velhas, velhas casas,
Como, em nós, a presença invisível da alma... Tu nem sabes
A pena que me dão as crianças de hoje!
Vivem desencantadas como uns órfãos:
As suas casas não têm porões nem sótãos,
São umas pobres casas sem mistério.
Como pode nelas vir morar o sonho?
O sonho é sempre um hóspede clandestino e é preciso
(Como bem sabíamos)
Ocultá-lo das visitas
(Que diriam elas, as solenes visitas?)
É preciso ocultá-lo das outras pessoas da casa,
É preciso ocultá-lo dos confessores,
Dos professores,
Até dos Profetas
(Os Profetas estão sempre profetizando outras coisas...)
E as casas novas não têm ao menos aqueles longos, intermináveis corredores
Que a Lua vinha às vezes assombrar!

Fonte:
Mário Quintana. Apontamentos de história sobrenatural. 1976.

Jaqueline Machado (Olhai os lírios do campo)

"Olhai os lírios do campo" é uma importante obra literária, escrita pelo gaúcho Érico Veríssimo.

O livro faz um retrato da sociedade brasileira, usando Porto Alegre como cenário principal, no ano de 1938, período marcado pelas consequências do golpe do então presidente Getúlio Vargas, golpe esse, que  marcaria o início de uma ditadura inclemente, claramente inspirada no regime Mussolini, intitulada de Estado Novo. Tendo de contraponto o socialismo de Stálin. Nesse período o mundo estava às vésperas do início da segunda grande guerra e, com isso, surge a crise da democracia liberal.

Abalado com a dramática situação do mundo,  Veríssimo, num ato de desabafo, dá início a essa obra, que segundo ele disse, não estava entre suas obras favoritas, ao contrário, esse livro foi rejeitado por ele, pois trazia pensamentos muito humanitários por parte da personagem Olívia, que mais parecia santa do que gente. Revoltado, Érico Veríssimo se percebeu tolo, pois tais virtudes descritas pela personagem, não pareciam pertencer à raça humana (desumana).

O protagonista da história é Eugênio, um rapaz de origem humilde, filho de um alfaiate e de uma lavadeira de roupas. Ele sabia da bondade dos pais, mesmo assim, sentia vergonha da família. Queria ter nascido rico. Não entendia porque Deus dava tudo para uns, e nada para outros, já que todos eram seus filhos, frutos de sua obra.

Eugênio ganhou uma bolsa da escola onde sua mãe trabalhava e, por isso, teve uma boa educação, tornou-se médico. Gostava de Olívia, sua colega de faculdade. A única mulher em meio a um bando de rapazes a cursar medicina. Mas Olívia, também era de origem muito humilde. Por isso, Eugênio preferiu casar com Eunice, uma mulher de posses, porque assim, finalmente faria parte da elite da sociedade.

Nos jantares e almoços de família assuntos ligados à situação mundial, especialmente sobre a perseguição aos judeus, estavam sempre  presentes. Uns contra as atrocidades ocorrentes, outros, a favor.

Durante as discussões, por vezes, se dispersava e se deixava levar pelas palavras de Olívia, que com suavidade, ressoavam em sua mente. Ele a amava e não podia esquecê-la.  Os dois tiveram uma espécie de “amizade colorida”. Ele não sabia, mas desse relacionamento, a jovem teve uma filha. Olívia adoece, e prestes a morrer, o chama, fala sobre as vontades de Deus, sobre a beleza da vida, ensina-lhe que as verdadeiras riquezas não estão nas conquistas materiais e que todos deveriam dar atenção ao que Jesus disse no Sermão da Montanha. Disse ele: “Olhem os lírios do campo, que não trabalham nem tecem! E contudo nem Salomão em toda a sua glória se vestiu tão bem como eles”.

 A amada morre, ele separa-se de Eunice. Passa a viver o que realmente importa, ajudando os doentes necessitados, relendo as cartas que Olívia lhe escrevia quando estavam separados, e buscando ser um bom pai, à filha órfã. Herança de Olívia.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 15: Epígrafe

 

Humberto de Campos (Zurtz)

Quando o professor Krause esteve no Rio de janeiro, em 1920, falou-nos, a mim e ao seu colega Dr. Fernando de Magalhães, em uma descoberta que estava revolucionando a fisiologia nas vésperas da sua partida da Alemanha. Tratava-se de uma comunicação feita à Academia de Ciências Médicas, de Berlim, pelo professor Zurtz, de Munich, o qual havia conseguido uma fórmula miraculosa para aumentar o crescimento do cabelo. O poder desse preparado era tão prodigioso que, posto pela manhã, o aumento constatado à tarde era de, pelo menos, meia polegada. Um destes dias, ia eu pela Avenida, quando encontrei, com grande alegria de coração e de espírito, o ilustre diretor da Maternidade, que me foi, logo, perguntando:

- Conselheiro, lembra-se daquela descoberta de que nos falou o professor Krause?

- Qual?

- A do professor Zurtz.

Eu fiz um esforço de memória, remexi, com os dedos do pensamento, no escaninho cerebral das minhas lembranças, e respondi afirmativamente.

- Pois, aquilo, - continuou o Dr. Fernando - é um fato. As revistas francesas, italianas, alemãs e inglesas que ultimamente recebi, falam, já, no prodígio.

- Deveras?

- É verdade. E com uma circunstância mais: aperfeiçoando o seu invento, o professor Zurtz conseguiu três modalidades do mesmo preparado, com diversas aplicações. A primeira serve unicamente para o cabelo, o qual pode crescer, com ele, dez centímetros por dia. A segunda é de aplicação zootécnica: faz crescer em poucas horas, com vantagem para a indústria, a lã dos carneiros. E a terceira, destinada à pecuária, faz nascer, com rapidez, os chifres aos bois, aos cordeiros, às cabras e a outros animais que os tenham atrofiados. A esse preparado deu o inventor o seu próprio nome, com diversas numerações: n. 1, n. 2, e n. 3, como os produtos químicos de Mme. Selda Potocka.

Nesse momento, um cavalheiro alto, magro, calvo, que estava perto, aproximou-se de nós, e, pedindo licença, indagou, respeitoso:

- Os senhores acreditam nisso?

O Dr. Fernando olhou-o de alto a baixo, e confirmou.

- Pois, eu, - tornou o desconhecido, sou uma prova da ineficácia desse remédio. Calvo, há muitos anos, mandei buscá-lo, usei-o, e veja!

E descobriu o crânio irregular, pelado como um ovo.

O Dr. Magalhães escorregou os olhos pela cabeça do homem, franziu a testa, mordendo o dedo, com aborrecimento. E, ao fim de um minuto, pediu:

- Diga-me uma coisa.

O indivíduo fitou-o.

- O senhor não tomou errado?

O careca desapareceu.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXXIII

A amizade verdadeira
não se apega à falsidade,
sobrevive à vida inteira
se embasada na verdade.
= = = = = = = = = = =

A criança, pela idade,
fala e não pede segredo,
não teme a privacidade,
mas privada sente medo.
= = = = = = = = = = =

A mais flagrante jactância
presente na humanidade,
tem menor protuberância
que a de crer na falsidade.
= = = = = = = = = = =

A pior das excrescências
que inflama o radicalismo,
tem melhores consequências
que ostentar o pessimismo.
= = = = = = = = = = =

A semeadura bem feita
nunca trai seu plantador,
gera uma farta colheita
se perfeita e com labor.
= = = = = = = = = = =

A vida que nos foi dada
mesmo envolta à finitude,
não deve ser olvidada
mas, levada à plenitude.
= = = = = = = = = = =

Da vida ouço um forte grito,
clamando por liberdade,
a ecoar sob o infinito
da inquieta humanidade.
= = = = = = = = = = =

De que vale um rico teto
sobre estacas de metais,
se não brilhar nele o afeto,
entre os filhos e seus pais?
= = = = = = = = = = =

Embora a noite não tenha
o mesmo brilho que o dia,
às trevas se esconde a senha
que aciona a nostalgia.
= = = = = = = = = = =

Fonte de assombro e de medo
tal força vinda do além,
vê-se no impacto ao rochedo
o poder que a maré tem.
= = = = = = = = = = =

Não bata a porta, esperando,
ser por alguém atendido,
mas, se o fores, vai pensando,
ser mais um agradecido.
= = = = = = = = = = =

Não podemos nos prender
às respostas do passado,
mas ao que nos responder,
o porvir, se questionado.
= = = = = = = = = = =

Nossa alma clama por paz,
verte em pranto se a não tem,
cônscia, busca-a e se compraz,
sempre que a buscar também.
= = = = = = = = = = =

O final de qualquer linha
a casa se debilita,
o alicerce se definha
e o fim passa a ser visita.
= = = = = = = = = = =

O mais fácil preferimos,
menos duro e proveitoso,
olhamos, mas confundimos,
rocha com solo arenoso.
= = = = = = = = = = =

O perdão dá nova vida,
grande sedativo à dor,
que cicatriza a ferida
na enfermidade do amor.
= = = = = = = = = = =

Pode ser que o justo caia
no abismo da ostentação
e assim a conduta o traia
conduzindo-o à perdição.
= = = = = = = = = = =

Quando acontece um combate
é porque um ataque ocorre,
ninguém oprima, nem mate,
mas seja alguém que socorre.
= = = = = = = = = = =

Que um gesto sincero e amigo
abra as portas da amizade,
nunca aquela de um jazigo
que conduz à obscuridade.
= = = = = = = = = = =

Se à tua vida mentires
tu mesmo te enganarás,
pois, se a verdade omitires,
ao nada sucumbirás.
= = = = = = = = = = =

Sempre que uma luta ocorre
numa batalha campal,
o afã de vencer não morre
ancorado no ideal.
= = = = = = = = = = =

Sobre a mesa dos prazeres
o álcool não deve existir,
assim, sempre que o beberes,
nunca deves dirigir.
= = = = = = = = = = =

Toda a justiça divina
não se assenta sobre a morte,
pode tardar, mas culmina,
por julgar o fraco e o forte.
= = = = = = = = = = =

Toda a palavra bem dita,
é bendita se escutada,
mostra-se à vida na escrita
quando bem interpretada.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Versejando 118

 

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Com Verdelírio, no trem

Meados dos anos 1950. Na estação de Maringá embarquei no último vagão do “Expresso Verde”, uma boa maneira de ir a São Paulo naquela época. Antes mesmo de o trem partir, aproximou-se de mim um rapaz, que perguntou: “Você por acaso é o Assis?”. Respondi que sim, e ele se apresentou: “Meu nome é Verde – Verdelírio Barbosa. Te conheço de nome e de foto. Costumo ler o que você escreve nos jornais”. De imediato me lembrei também do nome dele. Era ainda muito jovem, porém já aparecia de vez em quando assinando textos na imprensa local e iniciava carreira no rádio.

Verde sentou-se numa poltrona a meu lado e a conversa foi longa e animada, cada um esmiuçando a vida do outro. Descobri até que ele, além de apaixonado pelo jornalismo, curtia também compor versinhos – sonetos e trovas.

A viagem era comprida, cerca de 20 horas até a capital paulista. Havia três opções: vagão de segunda, vagão de primeira e, de Londrina em diante, cabine em carro leito. Parava em um monte de estações: Sarandi, Marialva, Mandaguari, Jandaia, Apucarana, Arapongas, Rolândia, Cambé... Depois de Londrina parava menos. Em Ourinhos costumava trocar a locomotiva.

Para distrair o tempo, os passageiros achavam chique ir ao vagão-restaurante, onde se podia almoçar, jantar, comer um lanche ou simplesmente tomar uma cervejinha. A gente se sentia como se estivesse numa cena de cinema, esperando ver entrar a qualquer momento uma daquelas bonitonas de Hollywood com chapéu enorme e piteira na boca.

O trem fazia também frequentes paradas nas caixas d’água, para reabastecer a caldeira. Verdelírio comentou: “O comum era ao lado de cada caixa d’água haver uma casa onde morava o responsável pelo serviço. Com o tempo, ali se construíam outras casas e o local virava uma aldeia. Foi por isso que, principalmente no trecho paranaense, se formaram tantas cidades distantes 10 ou 15 quilômetros uma da outra”.

Dia desses Verde e eu almoçamos juntos no Açukapê e no meio do papo essas lembranças vieram à tona. Éramos os dois, naquele tempo de pioneirismo, bem moços ainda, ele mais moço que eu, começando a labuta na imprensa e no rádio. Trabalhamos juntos em emissoras de rádio e em jornais. Depois ele teve intensa participação em programas de televisão, enquanto eu passei a me dedicar mais ao ensino, como professor em alguns colégios e finalmente na UEM, onde me aposentei. Hoje o Verde é o diretor do “Jornal do Povo” e desfruta de grande e merecidíssimo prestígio, não só em Maringá, mas em todo o Paraná e no Brasil.

Como o “Jornal do Povo” fica próximo de onde moro, frequentemente nos encontramos e cada encontro é uma nova oportunidade para a troca de abraços. Mais que colegas e velhos amigos, somos antes de tudo irmãos.

Fonte:
http://aadeassis.blogspot.com/2020/04/com-verdelirio-no-trem.html

Solange Colombara (Ramalhete de Versos) 2

ENCANTOS DA NATUREZA

Céu cinzento
Nuvens carregadas
A chuva cai...

O arco-íris dá sinais
De que amanhã
O sol voltará a brilhar.

Como é bom sentir o vento...
As mágoas são levadas,
A mãe natureza jamais nos trai.

Andorinhas gorjeiam
Em voos matinais
Num balé majestoso...

O crepúsculo desce no horizonte...
O sol encontra o mar num abraço caloroso
Com seus raios a bailar...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ENCONTRO

Que eu não perca minha essência...
Mesmo quando a tristeza me abater.
Que eu não perca a magia
E o encanto que vejo nas pessoas...
Mesmo quando a decepção se apresentar.
Que eu não perca minha alegria...
Mesmo quando tudo parecer desmoronar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ENCONTRO (II)

Nessa espera sem fim
Busco algo dentro de mim.
Não sei ao certo o quê.
Talvez respostas
Ou perguntas...
Quem sabe alguns porquês?
Enquanto espero
Divago em pensamentos
Desejos contidos.
E nessa busca entendo
Que o que sempre esperei,
O que sempre busquei,
Está aqui.
Que bom que te encontrei...
Que bom que me achei...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

EU, POETISA

Sentir o romantismo em um
Fim de tarde no outono...
Permitir que o horizonte
Se misture com o mar...
Sorrir com o olhar...
Imaginar o sol se despedindo...
A poesia se fazendo presente
Em cada veia, em cada batida
Que meu coração dá.
É algo intenso...
Muito maior do que eu...
Um dom misturado a um sentimento.
Impossível de descrever...
Meus escritos expressam
Essa minha maneira de ser.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

INFINITO INSTANTE

Momentos preciosos, momentos só meus.
Somente um instante...
Onde o tempo parece parar.
A vida flui...
A caminhada tem que continuar...
Mas alguns momentos
É impossível deixar para trás.
Sinto relances através do meu olhar.
Vejo lembranças em um futuro
Que parece nunca chegar.
Desfazer os nós é dolorido, sofrido...
Necessário...
Uma alma sonhadora
De vez em quando sem chão...
Sou alegria, sou colorida,
Às vezes cinzenta,
Desprovida de emoção...
Mas sem jamais deixar de acreditar
Que dias melhores e felizes virão.
Sou o caos, sou a calmaria
Contidos no imenso frasco da solidão.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

INSONE MADRUGADA

Nesse silêncio
Essa quietude
Esse sentimento...
Essa vontade de me pertencer.

Mergulho
No inconsciente.
Sinto meu corpo
Amolecer, entardecer...

Percebo,
Com o dia clareando,
Que finalmente
Poderei adormecer.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

INTROSPECÇÃO

Hoje percebo que toda mágoa,
Todo ressentimento, se foi...
E sinto um alívio, uma paz,
Um sentimento bom.
Será esse o verdadeiro amor?
O amor puro, o amor que não fere,
O amor que simplesmente ama
Sem pedir nada em troca,
Sem exigir, sem sofrer, sem doer?
Talvez eu nunca saiba essas respostas...
Mas nesse instante
Eu sei que amo.
E sei que esse momento ficará eterno
Dentro de mim...

Fonte:
Solange Colombara. Dançando com as palavras. SP: Futurama, 2018.
Livro enviado pela autora.

Machado de Assis (Filosofia de um par de botas)

 
Uma destas tardes, como eu acabasse de jantar, e muito, lembrou-me dar um passeio à Praia de Santa Luzia, cuja solidão é propícia a todo homem que ama digerir em paz. Ali fui, e com tal fortuna que achei uma pedra lisa para me sentar, e nenhum fôlego vivo nem morto. — Nem morto, felizmente. Sentei-me, alonguei os olhos, espreguicei a alma, respirei à larga, e disse ao estômago: — Digere a teu gosto, meu velho companheiro. Deus nobis haec otia fecit. (Deus fez esses lazeres para nós)

Digeria o estômago, enquanto o cérebro ia remoendo, tão certo é, que tudo neste mundo se resolve na mastigação. E digerindo, e remoendo, não reparei logo que havia, a poucos passos de mim, um par de coturnos velhos e imprestáveis. Um e outro tinham a sola rota, o tacão comido do longo uso, e tortos, porque é de notar que a generalidade dos homens camba, ou para um ou para outro lado. Um dos coturnos (digamos botas, que não lembra tanto a tragédia), uma das botas tinha um rasgão de calo. Ambas estavam maculadas de lama velha e seca; tinham o couro ruço, puído, encarquilhado.

Olhando casualmente para as botas, entrei a considerar as vicissitudes humanas, e a conjeturar qual teria sido a vida daquele produto social. Eis senão quando, ouço um rumor de vozes surdas; em seguida, ouvi sílabas, palavras, frases, períodos; e não havendo ninguém, imaginei que era eu, que eu era ventríloquo; e já podem ver se fiquei consternado. Mas não, não era eu; eram as botas que falavam entre si, suspiravam e riam, mostrando em vez de dentes, umas pontas de tachas enferrujadas. Prestei o ouvido; eis o que diziam as botas:

BOTA ESQUERDA.- Ora, pois, mana, respiremos e filosofemos um pouco.

BOTA DIREITA.- Um pouco? Todo o resto da nossa vida, que não há de ser muito grande; mas enfim, algum descanso nos trouxe a velhice. Que destino! Uma praia! Lembras-te do tempo em que brilhávamos na vidraça da Rua do Ouvidor?

BOTA ESQUERDA.- Se me lembro! Quero até crer que éramos as mais bonitas de todas. Ao menos na elegância...

BOTA DIREITA.- Na elegância, ninguém nos vencia.

BOTA ESQUERDA.- Pois olha que havia muitas outras, e presumidas, sem contar aquelas botinas cor de chocolate... aquele par...

BOTA DIREITA.- O dos botões de madrepérola?

BOTA ESQUERDA.- Esse.

BOTA DIREITA.- O daquela viúva?

BOTA ESQUERDA.- O da viúva.

BOTA DIREITA.- Que tempo! Éramos novas, bonitas, asseadas; de quando em quando, uma passadela de pano de linho, que era uma consolação. No mais, plena ociosidade. Bom tempo, mana, bom tempo! Mas, bem dizem os homens: não há bem que sempre dure, nem mal que se não acabe.

BOTA ESQUERDA.- O certo é que ninguém nos inventou para vivermos novas toda vida. Mais de uma pessoa ali foi experimentar-nos; éramos calçadas com cuidado, postas sobre um tapete, até que um dia, o Dr. Crispim passou, viu-nos, entrou e calçou-nos. Eu, de raivosa, apertei-lhe um pouco os dois calos.

BOTA DIREITA.- Sempre te conheci pirracenta.

BOTA ESQUERDA.- Pirracenta, mas infeliz. Apesar do apertão, o Dr. Crispim levou-nos.

BOTA DIREITA.- Era bom homem, o Dr. Crispim; muito nosso amigo. Não dava caminhadas largas, não dançava. Só jogava o voltarete, até tarde, duas e três horas da madrugada; mas, como o divertimento era parado, não nos incomodava muito. E depois, entrava em casa, na pontinha dos pés, para não acordar a mulher. Lembras-te?

BOTA ESQUERDA.- Ora! por sinal que a mulher fingia dormir para lhe não tirar as ilusões. No dia seguinte ele contava que estivera na maçonaria. Santa senhora!

BOTA DIREITA.- Santo casal! Naquela casa fomos sempre felizes, sempre! E a gente que eles frequentavam? Quando não havia tapetes, havia palhinha; pisávamos o macio, o limpo, o asseado. Andávamos de carro muita vez, e eu gosto tanto de carro! Estivemos ali uns quarenta dias, não?

BOTA ESQUERDA.- Pois então! Ele gastava mais sapatos do que a Bolívia gasta constituições.

BOTA DIREITA.- Deixemo-nos de política.

BOTA ESQUERDA.- Apoiado.

BOTA DIREITA (com força).- Deixemo-nos de política, já disse!

BOTA ESQUERDA (sorrindo).- Mas um pouco de política debaixo da mesa?... Nunca te contei... contei, sim... o caso das botinas cor de chocolate... as da viúva...

BOTA DIREITA.- Da viúva, para quem o Dr. Crispim quebrava muito os olhos? Lembra-me que estivemos juntas, num jantar do Comendador Plácido. As botinas viram-nos logo, e nós daí a pouco as vimos também, porque a viúva, como tinha o pé pequeno, andava a mostrá-lo a cada passo. Lembra-me também que, à mesa, conversei muito com uma das botinas. O Dr. Crispim sentara-se ao pé do comendador e defronte da viúva; então, eu fui direita a uma delas, e falamos, falamos pelas tripas de Judas... A princípio, não; a princípio ela fez-se de boa; e toquei-lhe no bico, respondeu-me zangada: “Vá-se, me deixe!” Mas eu insisti, perguntei-lhe por onde tinha andado, disse-lhe que estava ainda muito bonita, muito conservada; ela foi-se amansando, buliu com o bico, depois com o tacão, pisou em mim, eu pisei nela e não te digo mais...

BOTA ESQUERDA.- Pois é justamente o que eu queria contar...

BOTA DIREITA.- Também conversaste?

BOTA ESQUERDA.- Não; ia conversar com a outra. Escorreguei devagarinho, muito devagarinho, com cautela, por causa da bota do comendador.

BOTA DIREITA.- Agora me lembro: pisaste a bota do comendador.

BOTA ESQUERDA.- A bota? Pisei o calo. O comendador: Ui! As senhoras: Ai! Os homens: Hein? E eu recuei; e o Dr. Crispim ficou muito vermelho, muito vermelho...

BOTA DIREITA.- Parece que foi castigo. No dia seguinte o Dr. Crispim deu-nos de presente a um procurador de poucas causas.

BOTA ESQUERDA.- Não me fales! Isso foi a nossa desgraça! Um procurador! Era o mesmo que dizer: mata-me estas botas; esfrangalha-me estas botas!

BOTA DIREITA.- Dizes bem. Que roda viva! Era da Relação para os escrivães, dos escrivães para os juízes, dos juízes para os advogados, dos advogados para as partes (embora poucas), das partes para a Relação, da Relação para os escrivães...

BOTA ESQUERDA.- Et coetera (e o resto). E as chuvas! e as lamas! Foi o procurador quem primeiro me deu este corte para desabafar um calo. Fiquei asseada com esta janela à banda.

BOTA DIREITA.- Durou pouco; passamos então para o fiel de feitos, que no fim de três semanas nos transferiu ao remendão. O remendão (ah! já não era a Rua do Ouvidor!) deu-nos alguns pontos, tapou-nos este buraco, e impingiu-nos ao aprendiz de barbeiro do Beco dos Aflitos.

BOTA DIREITA.- Com esse havia pouco que fazer de dia, mas de noite...

BOTA ESQUERDA.- No curso de dança; lembra-me. O diabo do rapaz valsava como quem se despede da vida. Nem nos comprou para outra coisa, porque para os passeios tinha um par de botas novas, de verniz e bico fino. Mas para as noites... Nós éramos as botas do curso...

BOTA DIREITA.- Que abismo entre o curso e os tapetes do Dr. Crispim...

BOTA ESQUERDA.- Coisas!

BOTA DIREITA.- Justiça, justiça; o aprendiz não nos escovava; não tínhamos o suplício da escova. Ao menos, por esse lado, a nossa vida era tranquila.

BOTA ESQUERDA.- Relativamente, creio. Agora, que era alegre não há dúvida; em todo caso, era muito melhor que a outra que nos esperava.

BOTA DIREITA.- Quando fomos parar às mãos...

BOTA ESQUERDA.- Aos pés.

BOTA DIREITA.- Aos pés daquele servente das obras públicas. Daí fomos atiradas à rua, onde nos apanhou um preto padeiro, que nos reduziu enfim a este último estado! Triste! triste!

BOTA ESQUERDA.- Tu queixas-te, mana?

BOTA DIREITA.- Se te parece!

BOTA ESQUERDA.- Não sei; se na verdade é triste acabar assim tão miseravelmente, numa praia, esburacadas e rotas, sem tacões nem ilusões, — por outro lado, ganhamos a paz, e a experiência.

BOTA DIREITA.- A paz? Aquele mar pode lamber-nos de um relance.

BOTA ESQUERDA.- Trazer-nos-á outra vez à praia. Demais, está longe.

BOTA DIREITA.- Que eu, na verdade, quisera descansar agora estes últimos dias; mas descansar sem saudades, sem a lembrança do que foi. Viver tão afagadas, tão admiradas na vidraça do autor dos nossos dias; passar uma vida feliz em casa do nosso primeiro dono, suportável na casa dos outros; e agora...

BOTA ESQUERDA.- Agora quê?

BOTA DIREITA.- A vergonha, mana.

BOTA ESQUERDA.- Vergonha, não. Podes crer, que fizemos felizes aqueles a quem calçamos; ao menos, na nossa mocidade. Tu que pensas? Mais de um não olha para suas ideias com a mesma satisfação com que olha para suas botas. Mana, a bota é a metade da circunspecção; em todo o caso é a base da sociedade civil...

BOTA DIREITA.- Que estilo! Bem se vê que nos calçou um advogado.

BOTA ESQUERDA.- Não reparaste que, à medida que íamos envelhecendo, éramos menos cumprimentadas?

BOTA DIREITA.- Talvez.

BOTA ESQUERDA.- Éramos, e o chapéu não se engana. O chapéu fareja a bota... Ora, pois! Viva a liberdade! viva a paz! viva a velhice! (A Bota Direita abana tristemente o cano). Que tens?

BOTA DIREITA.- Não posso; por mais que queira, não posso afazer-me a isto. Pensava que sim, mas era ilusão... Viva a paz e a velhice, concordo; mas há de ser sem as recordações do passado...

BOTA ESQUERDA.- Qual passado? O de ontem ou de anteontem? O do advogado ou o do servente?

BOTA DIREITA.- Qualquer; contanto que nos calçassem. O mais reles pé de homem é sempre um pé de homem.

BOTA ESQUERDA.- Deixa-te disso; façamos da nossa velhice uma coisa útil e respeitável.

BOTA DIREITA.- Respeitável, um par de botas velhas! Útil, um par de botas velhas! Que utilidade? que respeito? Não vês que os homens tiraram de nós o que podiam, e quando não valíamos um caracol mandaram deitar-nos à margem? Quem é que nos há de respeitar? — aqueles mariscos? (olhando para mim) Aquele sujeito que está ali com os olhos assombrados?

BOTA ESQUERDA.- Vanitas! Vanitas! (vaidades!vaidades!)

BOTA DIREITA.- Que dizes tu?

BOTA ESQUERDA.- Quero dizer que és vaidosa, apesar de muito acalcanhada, e que devemos dar-nos por felizes com esta aposentadoria, lardeada de algumas recordações.

BOTA DIREITA.- Onde estarão a esta hora as botinas da viúva?

BOTA ESQUERDA.- Quem sabe lá! Talvez outras botas conversem com outras botinas... Talvez: é a lei do mundo; assim caem os Estados e as instituições. Assim perece a beleza e a mocidade. Tudo botas, mana; tudo botas, com tacões ou sem tacões, novas ou velhas; direita ou acalcanhadas, lustrosas ou ruças, mas botas, botas botas!

Neste ponto calaram-se as duas interlocutoras, e eu fiquei a olhar para uma e outra, a esperar se diziam alguma coisa mais. Nada; estavam pensativas.

Deixei-me ficar assim algum tempo, disposto a lançar mão delas, e levá-las para casa com o fim de as estudar, interrogar, e depois escrever uma memória, que remeteria a todas as academias do mundo. Pensava também em as apresentar nos circos de cavalinhos, ou ir vendê-las a Nova Iorque. Depois, abri mão de todos esses projetos. Se elas queriam a paz, uma velhice sossegada, por que motivo iria eu arrancá-las a essa justa paga de uma vida cansada e laboriosa? Tinham servido tanto! tinham rolado todos os degraus da escala social; chegavam ao último, a praia, a triste Praia de Santa Luzia... Não, velhas botas! Melhor é que fiqueis aí no derradeiro descanso.

Nisto vi chegar um sujeito maltrapilho; era um mendigo. Pediu-me uma esmola; dei-lhe um níquel.

MENDIGO.- Deus lhe pague, meu senhor! (Vendo as botas) Um par de botas! Foi um anjo que as pôs aqui...

EU (ao mendigo).- Mas, espere...

MENDIGO.- Espere o quê? Se lhe digo que estou descalço! (Pegando nas botas) Estão bem boas! Cosendo-se isto aqui, com um barbante...

BOTA DIREITA.- Que é isto, mana? que é isto? Alguém pega em nós... Eu sinto-me no ar...

BOTA ESQUERDA.- É um mendigo.

BOTA DIREITA.- Um mendigo? Que quererá ele?

BOTA DIREITA (alvoroçada).- Será possível?

BOTA ESQUERDA.- Vaidosa!

BOTA DIREITA.- Ah! mana! esta é a filosofia verdadeira: — Não há bota velha que não encontre um pé cambaio.

Fonte:
Publicado originalmente em O Cruzeiro, 23 de abril de 1878.