Uma das condições que nos faz ser humanos é a nossa capacidade de ler. Ser leitor é estar inserido, não em um universo, mas em algo maior, uma espécie de pluriverso que é, ainda, mais vasto. Gosto dessa palavra: “Vasto”. Lembro-me de Drummond ao escrever: “Mundo, mundo, vasto mundo. Se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não uma solução”. Bem, não me chamo Raimundo, mas supondo ser esse o nome de todos os alunos e alunas que dizem ter horror à leitura por não entenderem como, ao ler, somos transportados aos vastos mundos, conscientes e inconscientes, reais ou imaginários, busquemos a solução com licença ao poeta.
Antes, o que nos faz verdadeiramente humanos em nossa experiência leitora é perceber que não lemos somente as palavras. Há algo a mais nessa experiência que reflete a nossa condição lúcida de seres racionais dotados de uma inteligência superior. Sempre digo: precisamos aprender a ler a verdadeira natureza íntima de todas as coisas. Eu, como escritor, gosto dos leitores que leem os cheiros, os sabores, as lembranças, as saudades, as esperanças, as suposições… As letras são materializações do que sentimos, mas não devemos ficar presos nelas, pois se assim acontece, ficamos na superficialidade, no espelho das águas e perdemos a oportunidade de desfrutar o encontro das profundidades. É como a árvore; vemos o seu tronco, galhos, folhas e frutos, mas não enxergamos o mais importante: suas raízes. Na escrita se dá o mesmo. É preciso ler as raízes, o que está “escondido”, pois são elas a sustentar sua existência.
Mas deixemos as digressões. Até porque estava nelas quando um aluno levantou a mão no meio da sala.
— É o seguinte, fessô, — disse ele coçando a cabeça. - Eu sei que o senhor é escritor e fala essas coisas aí, mas eu não consigo entender essas paradas de ler o que não tá escrito. Como isso é possível?
— Ora, Raimundo, você ouviu o que eu falei sobre a árvore?
— Ouvi, fessô, mas isso tudo é poético demais… Falando assim até dá pra entender, mas sei lá…
— Certo. Vou te explicar de outra forma. Vamos fazer uma pequena viagem mental.
— Fazer o quê?
— Um faz de conta, vou contar uma história e você vai se vendo dentro dela.
— Pô, fessô, maneiro. A galera pode vir junto?
— Pode. Mas você precisa se concentrar, pode ser?
— Pode crer.
— Vamos lá. Imagina que você está indo para uma cachoeira com alguns amigos.
— Maneiro.
— Porém, durante o trajeto e ao chegar lá o sol foi se escondendo e dando lugar a um tempo nublado e até com alguns pingos de chuva, poucos, mas suficientes para turvar a água e impedir a sua bela visão cristalina.
— Pô, fessô, sacanagem…
— Concentra, Raimundo.
— Vai nessa.
— Se algum de seus amigos falasse para você pular na água de cabeça, você pularia?
— Com a água turva? Tá doido, fessô, de jeito nenhum!
— Ora, e por quê?
— Por quê?! Cê tá doido mesmo! Com a água turva não dá pra ver o fundo e nem onde as pedras estão. É perigoso pacas!
— Pedras? Mas que pedras? Eu não falei em pedras! Além do mais, você nem as viu! Como sabe que tem pedras?
— Ô, fessô, se liga! Cachoeiras são lugares de pedras a contar pelas que existem nas margens. A gente pode até não tá vendo, mas isso porque a chuva que o senhor falou fez mexer as paradas lá embaixo da água e a lama subiu pra superfície. Mas que tem pedra, ah isso tem. E vai que tem uma exatamente onde eu pularia…
— Hummm… Sabe o que você fez, Raimundo?
— Me livrei de uma?
— Isso também. Mas você acabou de fazer uma leitura perfeita da natureza e das suposições.
— Hã?!
— Sim, Raimundo, percebe! Você leu a água, a lama, a chuva… E não havia palavras aí, ou seja, as pedras. Você enxergou o que não estava visível, exatamente como devemos fazer em uma leitura: ler nas entrelinhas, nos espaços vazios onde as palavras já não são necessárias… Entendeu?
Nem era mais preciso perguntar. A sua expressão disse tudo. Ele ficou satisfeito com a explicação. Eu mais ainda por ter, talvez, despertado mais um leitor crítico. Ao vê-lo com seu ar alegre e orgulhoso de si mesmo e em meio à algazarra da turma que o saudava, fiquei a pensar… É, a literatura é mesmo uma escada muito alta e para se chegar ao topo é preciso subir degraus.
__________
Pois é, essa é uma fala corriqueira minha. Quem me conhece sabe disso. Infelizmente, tem muita gente adepta ao salto à distância e quer alcançar, de um pulo só, o último degrau. Vemos isso muito nas escolas quando “obrigam” alunos a lerem autores e obras que ainda não estão preparados e, além de não prepará-los, ainda dão prova de livros, prática que eu nunca fui adepto, pois acredito mesmo que há muitas outras maneiras de se avaliar uma leitura… E você, o que acha disso?
Antes, o que nos faz verdadeiramente humanos em nossa experiência leitora é perceber que não lemos somente as palavras. Há algo a mais nessa experiência que reflete a nossa condição lúcida de seres racionais dotados de uma inteligência superior. Sempre digo: precisamos aprender a ler a verdadeira natureza íntima de todas as coisas. Eu, como escritor, gosto dos leitores que leem os cheiros, os sabores, as lembranças, as saudades, as esperanças, as suposições… As letras são materializações do que sentimos, mas não devemos ficar presos nelas, pois se assim acontece, ficamos na superficialidade, no espelho das águas e perdemos a oportunidade de desfrutar o encontro das profundidades. É como a árvore; vemos o seu tronco, galhos, folhas e frutos, mas não enxergamos o mais importante: suas raízes. Na escrita se dá o mesmo. É preciso ler as raízes, o que está “escondido”, pois são elas a sustentar sua existência.
Mas deixemos as digressões. Até porque estava nelas quando um aluno levantou a mão no meio da sala.
— É o seguinte, fessô, — disse ele coçando a cabeça. - Eu sei que o senhor é escritor e fala essas coisas aí, mas eu não consigo entender essas paradas de ler o que não tá escrito. Como isso é possível?
— Ora, Raimundo, você ouviu o que eu falei sobre a árvore?
— Ouvi, fessô, mas isso tudo é poético demais… Falando assim até dá pra entender, mas sei lá…
— Certo. Vou te explicar de outra forma. Vamos fazer uma pequena viagem mental.
— Fazer o quê?
— Um faz de conta, vou contar uma história e você vai se vendo dentro dela.
— Pô, fessô, maneiro. A galera pode vir junto?
— Pode. Mas você precisa se concentrar, pode ser?
— Pode crer.
— Vamos lá. Imagina que você está indo para uma cachoeira com alguns amigos.
— Maneiro.
— Porém, durante o trajeto e ao chegar lá o sol foi se escondendo e dando lugar a um tempo nublado e até com alguns pingos de chuva, poucos, mas suficientes para turvar a água e impedir a sua bela visão cristalina.
— Pô, fessô, sacanagem…
— Concentra, Raimundo.
— Vai nessa.
— Se algum de seus amigos falasse para você pular na água de cabeça, você pularia?
— Com a água turva? Tá doido, fessô, de jeito nenhum!
— Ora, e por quê?
— Por quê?! Cê tá doido mesmo! Com a água turva não dá pra ver o fundo e nem onde as pedras estão. É perigoso pacas!
— Pedras? Mas que pedras? Eu não falei em pedras! Além do mais, você nem as viu! Como sabe que tem pedras?
— Ô, fessô, se liga! Cachoeiras são lugares de pedras a contar pelas que existem nas margens. A gente pode até não tá vendo, mas isso porque a chuva que o senhor falou fez mexer as paradas lá embaixo da água e a lama subiu pra superfície. Mas que tem pedra, ah isso tem. E vai que tem uma exatamente onde eu pularia…
— Hummm… Sabe o que você fez, Raimundo?
— Me livrei de uma?
— Isso também. Mas você acabou de fazer uma leitura perfeita da natureza e das suposições.
— Hã?!
— Sim, Raimundo, percebe! Você leu a água, a lama, a chuva… E não havia palavras aí, ou seja, as pedras. Você enxergou o que não estava visível, exatamente como devemos fazer em uma leitura: ler nas entrelinhas, nos espaços vazios onde as palavras já não são necessárias… Entendeu?
Nem era mais preciso perguntar. A sua expressão disse tudo. Ele ficou satisfeito com a explicação. Eu mais ainda por ter, talvez, despertado mais um leitor crítico. Ao vê-lo com seu ar alegre e orgulhoso de si mesmo e em meio à algazarra da turma que o saudava, fiquei a pensar… É, a literatura é mesmo uma escada muito alta e para se chegar ao topo é preciso subir degraus.
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Pois é, essa é uma fala corriqueira minha. Quem me conhece sabe disso. Infelizmente, tem muita gente adepta ao salto à distância e quer alcançar, de um pulo só, o último degrau. Vemos isso muito nas escolas quando “obrigam” alunos a lerem autores e obras que ainda não estão preparados e, além de não prepará-los, ainda dão prova de livros, prática que eu nunca fui adepto, pois acredito mesmo que há muitas outras maneiras de se avaliar uma leitura… E você, o que acha disso?
Fonte:
Texto enviado pelo autor, disponível no blog Árvore das Letras.
https://arvoredasletras.com.br/2022/05/21/a-literatura-e-uma-escada-muito-alta-2/
Texto enviado pelo autor, disponível no blog Árvore das Letras.
https://arvoredasletras.com.br/2022/05/21/a-literatura-e-uma-escada-muito-alta-2/
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