sábado, 13 de agosto de 2022

Sammis Reachers (Meganha, raça do cão)

Uma das aventuras mais divertidas – hoje é tudo muito divertido – que passei em minha vida de coletor de reciclagem com Renato foi assim: Num belo e ensolarado dia, enquanto transitava sozinho por um trecho da RJ 106 um pouco distante de nossas casas, já no final do bairro Arsenal, Renato viu, desperdiçado ao fundo de um riacho ou valão que cortava a rodovia, um eixo de automóvel. Sim, cinquenta ou mais quilos de ferro estavam ali, jogados fora, sem marca nem dono.

Acontece que o ferro-velho em que vendíamos os frutos de nosso trabalho era relativamente perto daquele ponto – talvez a menos de um quilômetro... Bem, Renato não conseguiria levantar aquele peso lá de baixo do riacho até a altura do asfalto, pois eram quase três metros de pequena e íngreme ribanceira. E mesmo que fossem 30 centímetros: Uma criança não suportaria aquele peso.

Foi já com um plano em mente que Renato chegou na Beira Rio. Após o relato, entendi que não poderíamos carregar aquilo sozinhos. Pergunta daqui, chama dali, e nenhum dos “tradicionais” catadores se dispôs – ou tinha disponibilidade – a ir. Por fim conseguimos convencer dois primos, os “amadores” Rodrigo e Andinho, a nos acompanharem naquele garimpo. Conseguida uma corda, sem a qual não poderíamos içar o butim, partimos em marcha de quase três quilômetros até o tal valão.

Chegados ao local, o diligente líder da expedição logo desceu para tentar amarrar a corda em volta do grande eixo. Agora restava a parte mais doce: Suspender todo aquele peso “no braço”, numa encosta íngreme. Enquanto nós três puxávamos com tudo o que tínhamos, Renato empurrava o grande troço, que vinha lento e agarrando-se vez por outra nas ramas de mato, como quem resiste a sair de seu cemitério pacífico.

Acho que nunca nenhum dos quatro fizera tanta força na vida. Conseguido o suado intento, agora era fácil: Após a pausa para respirar, bastava arrastar asfalto afora aquele pedação de ferro, até o ferro-velho. E lá fomos nós.

A (des)graça da aventura aconteceu quando, poucos metros após o tal riacho, passamos em frente a uma loja de telhas coloniais e pedras ornamentais. Lá de dentro daquele estabelecimento decorativamente burguês, um indivíduo barbudo gritou, espavorido: “Ei! Ei! Cheguem aqui!” Suspeitosos, e ocupados que estávamos arrastando aquele fardo, fizemos menção de seguir nosso caminho. Mas o indivíduo veio ao nosso encontro, e nos fez arrastar o peso para dentro do “quintal” da tal loja. Em seguida, iniciou um interrogatório digno de filmes de mocinho e bandido. Queria saber onde conseguíramos aquele eixo, afirmando peremptoriamente que era de um carro roubado. Queria informações do roubo. Explicamos que ele estava “jogado fora” dentro de um valão ali perto, talvez há anos já. Mas o elemento, apresentando-se agora como policial, não se satisfazia. Apertava-nos, queria confissões, queria saber se conhecíamos ladrões e já nos tratava, moleques de dez e onze anos, como tais.

O agravante que enfurecia o meganha era Renato, que não segurava o riso durante aquele interrogatório, fato que nem eu compreendia. Os outros dois expedicionários, Andinho e Rodrigo, esvaíam-se em lágrimas, achando que seríamos presos, e imaginando a surra que levariam em suas casas. Não posso afirmar com certeza, mas talvez até eu tenha chorado...

Resumo da ópera bufa: O pilantra supostamente a serviço da lei, após nos explicar que aquilo era de um carro roubado e que todas as peças possuem um registro numérico, disse que não poderíamos de maneira alguma vendê-la, e nos obrigou a arrastar o eixo novamente até o riacho, e jogá-lo ribanceira abaixo. Embaralhados em alívio e revolta, fizemos isso, enquanto o canalhinha nos observava, de frente à loja – que, passados quase trinta anos, ainda existe.

Voltamos para casa, uns desiludidos, outros aliviados, e todos com calos nas mãos, lanhadas por aquela maldita corda, por aquela maldita ideia de Natão, o elocubrador de ideias...

Terá nascido aí, em arquétipo, minha ojeriza contra a classe policial? Quem sabe.

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

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