terça-feira, 16 de agosto de 2022

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XLV

NADA. PASSARAM NUVENS E EU FIQUEI

 
Nada.  Passaram nuvens e eu fiquei...
No ar limpo não há rasto.
Surgiu a lua de onde já não sei,
Num claro luar vasto.

Todo o espaço da noite fica cheio
De um peso sossegado...
Onde porei o meu futuro, e o enleio
Que o liga ao meu passado?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NADA QUE SOU ME INTERESSA
 
Nada que sou me interessa.
Se existe em meu coração
Qualquer que tem pressa
Terá pressa em vão.

Nada que sou me pertence.
Se existo em que me conheço
Qualquer coisa que me vence
Depressa a esqueço.

Nada que sou eu serei.
Sonho, e só existe em meu ser,
Um sonho do que terei.
Só que o não hei de ter.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NA MARGEM VERDE DA ESTRADA
 
Na margem verde da estrada
Os malmequeres são meus.
Já trago a alma cansada -
Não é de si: é de Deus.

Se Deus me quisesse dá-la
Havia de achar maneira...
A estrada de cá da vala
Tem malmequeres à beira.

Se os quer, colho-os, e tenho
Cuidado com os partir.
Cada um que vejo e apanho
Dá um estalinho ao sair.

São malmequeres aos molhos,
Iguaizinhos para ver.
E nem põe neles os olhos,
Dá a mão pra os receber.

Não é esmola que envergonhe,
Nem coisa dada sem mais,
É pra que a menina os ponha
Onde o peito faz sinais.

Tirei-os do campo ao lado
Para a menina os trazer...
E nem me mostra o agrado
De um olhar para me ver...

É assim a minha sina.
Tirei-os de onde iam bem,
Só para os dar à menina -
E agradeceu-me a ninguém.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NA NOITE QUE ME DESCONHECE
 
Na noite que me desconhece
O luar vago, transparece
Da lua ainda por haver.
Sonho. Não sei o que me esquece,
Nem sei o que prefiro ser.

Hora intermédia entre o que passa,
Que névoa incógnita esvoaça
Entre o que sinto e o que sou?
A brisa alheiamento abraça.
Durmo. Não sei quem é que estou.

Dói-me tudo por não ser nada.
Da grande noite. embainhada
Ninguém tira a conclusão.
Coração, queres?
Tudo enfada Antes só sintas, coração.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NÃO DIGAS NADA!
 
Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender -  
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer
 
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NÃO FIZ NADA, BEM SEI, NEM O FAREI
 
Não fiz nada, bem sei, nem o farei,
Mas de não fazer nada isto tirei,
Que fazer tudo e nada é tudo o mesmo,
Quem sou é o espectro do que não serei.

Vivemos ao encontros do abandono
Sem verdade, sem dúvida nem dono.
Boa é a vida, mas melhor é o vinho.
O amor é bom, mas é melhor o sono.

Nenhum comentário: