quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XLIV

 LONGE DE MIM EM MIM EXISTO
 
Longe de mim em mim existo
À parte de quem sou,
A sombra e o movimento em que consisto.
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MAIS TRISTE DO QUE O QUE ACONTECE
 
 Mais triste do que o que acontece
É o que nunca aconteceu.
Meu coração, quem o entristece?
Quem o faz meu?

Na nuvem vem o que escurece
O grande campo sob o céu.
Memórias? Tudo é o que esquece.
A vida é quanto se perdeu.
E há gente que não enlouquece!
Ai do que em mim me chamo eu!
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MARAVILHA-TE, MEMÓRIA!
 
Maravilha-te, memória!
Lembras o que nunca foi,
E a perda daquela história
Mais que uma perda me dói.

Meus contos de fadas meus -
Rasgaram-lhe a última folha...
Meus cansaços são ateus
Dos deuses da minha escolha...

Mas tu, memória, condizes
Com o que nunca existiu...
Torna-me aos dias felizes
E deixa chorar quem riu.
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MAS O HÓSPEDE INCONVIDADO
 
Mas o hóspede inconvidado
Que mora no meu destino,
Que não sei como é chegado,
Nem de que honras é dino.
Constrange meu ser de casa
A adaptações de disfarce.
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MENDIGO DO QUE NÃO CONHECE
 
Mendigo do que não conhece,
Meu ser na 'strada sem lugar
Entre estragos amanhece...
Caminha só sem procurar…
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MEU CORAÇÃO ESTEVE SEMPRE
 
Meu coração esteve sempre
Sozinho. Morri já...
Para que é preciso um nome?
Fui  eu a minha sepultura.
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MEU RUÍDO DE ALMA CALA
 
Meu ruído de alma cala.
E aperto a mão no peito,
Porque sob o efeito
Da arte que faz trejeito,
O que é de Cristo fala.

Cega, porca, lixo
Da vida que n'alma tem,
Esta criança vem.
Que Deus é que do além
Teve este mau capricho?
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MEUS DIAS PASSAM, MINHA FÉ TAMBÉM
 
Meus dias passam, minha fé também.
Já tive céus e estrelas em meu manto.
As grandes horas, se as viveu alguém,
Quando as viveu, perderam já o encanto.
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MINHA ALMA SABE-ME A ANTIGA
 
Minha alma sabe-me a antiga
Mas sou de minha lembrança,
Como um eco, uma cantiga.

Bem sei que isto não é nada,
Mas quem dera a alma que seja
O que isto é, como uma estrada.

Talvez eu tosse feliz
Se houvesse em mim o perdão
Do que isto quase que diz.

Porque o esforço é vil e vão,
A verdade, quem a quis?
Escuta só meu coração.
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MINHA MULHER, A SOLIDÃO
 
Minha mulher, a solidão,
Consegue que eu não seja triste.
Ah, que bom é o coração
Ter este bem que não existe!

Recolho a não ouvir ninguém,
Não sofro o insulto de um carinho
E falo alto sem que haja alguém:
Nascem-me os versos do caminho.

Senhor, se há bem que o céu conceda
Submisso à opressão do Fado,
Dá-me eu ser só - veste de seda-,
E fala só - leque animado.
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MÚSICA... QUE SEI EU DE MIM?
 
Música... Que sei eu de  mim?
Que sei eu  de haver ser ou estar?
Música... sei só que sem fim
Quero saber só de sonhar...

Música... Bem no que faz mal
À alma entregar-se a nada...
Mas quero ser animal
Da insuficiência enganada

Música... Se eu pudesse ter,
Não o que penso ou desejo,
Mas o que não pude haver
E que até nem em sonhos vejo,

Se também eu pudesse fruir
Entre as algemas de aqui estar!
Não faz mal.  Fluir,
Para que eu deixe de pensar!

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