quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Raul Pompéia (Decotes de quinze anos)

Curiosa coincidência, pensava Otília, debruçando-se à janela com a carta que lhe escrevera a prima, curiosa coincidência, aquela carta e aquela situação!

Do outro lado da rua em frente, erguia-se em grande prédio de dois andares. Na última janela do segundo andar, à direita, lá estava ele, o impertinente vizinho, que não lhe tirava os olhos de cima, uns vivos olhos vorazes de meter medo.

Com ela, com a sisuda Otília aquele rapaz perdia o seu tempo.

Mas era interessante a coincidência... Ela e aquele sujeitinho ali... e o assunto da carta, da terrível carta!...

Sob a fuzilada de olhares que lhe chegavam da última janela à direita do 2o. andar fronteiro, a mocinha tornou a ler.

"... Nada conheces, na tua idade de inexperiência e de surpresas.

Sou do número das trintonas de Balzac, um escritor que ainda não leste, entendido nos mistérios da alma feminina, sou do número das educadas do amor, mulheres de curso completo na ciência do coração.

Mas já tive a tua idade, os deliciosos quatorze ou quinze anos de criança, quando o sexo nos revela apenas pela prevenção desconfiada do pudor, essa tolice adorável do sangue.

Amanhã, muito breve, saberás o que valem as flores de fogo que às vezes te abrasam o lindo rosto. Então na hora do amor, compreenderás os vagos temores, indefinidos sustos que te assaltam, como um rebate, de extraordinárias coisas. O coração fugir-te-á do peito, a internar-se como um herói de balada, pela floresta das fantasias. Sonharás o eleito dos teus afetos.

Instintivamente entregar-te-ás à impaciente urdidura de quantas armadilhas imaginares para a caçada do ideal.

A propósito, conto-te uma historieta dos meus quinze anos. Uma lição que te dou de experiência galante.

Eu morava na rua dos Arcos, naquela casa assobradada, de seis janelas, onde hoje habita a família da R . C.

Enclausurada na rede de solicitude, com que nos cercava, a mim e às manas, meu pai, avaro dos seus tesouros (tesouros éramos nós) arredada severamente do comércio da sociedade, ardia-me o desejo curioso de uma aventura, fora do círculo conhecido dos carinhos domésticos.

Diante da nossa casa morava um moço moreno, esbelto... circunstância propícia! Um belo companheiro para a minha escapula.

Ser amada por um rapaz como esse, eu não queria mais! Um só olhar de amor que ele me dirigisse, arrebatar-me-ia às sonhadas viagens azuis.

Dezoito anos parecia ter; sobre os lábios começava a acentuar-se-lhe o desenho volteado de um futuro par de bigodes; grandes olhos negros, exprimindo mansidão, pupilas que se moviam devagar, oleosamente no corte das pálpebras.

De manhã, cedo, aparecia à janela do sótão que lhe servia de quarto e, com um copo-d'água, regava amorosamente o vergel de madressilvas que diante dele se espraiavam pelo telhado até envolver as goteiras prolongadas sobre a rua em bocas de corneta.

Banhava as flores e as flores enviavam-me baforadas de doce perfume.

Mas só as madressilvas se apercebiam de mim. Cândido demais, ou demasiado altivo, o vizinho não me ligava importância.

Ora eu tinha veleidades de beleza; avalias o meu despeito.

Dizem que a melhor maneira de atrair o olhar é olhar. Eu olhava, olhava e perdia o esforço. Cheguei a supor que o inflexível moreno, já não era senhor do seu coração e caprichava em manter a lealdade dos seus compromissos.

Era para desesperar.

Felizmente, um dia, eu o surpreendi a observar-me.

Oh, júbilo! Mas era preciso cativar de uma vez aquele olhar que me podia fugir para sempre, esquivo como a ocasião. O demoninho dos quinze anos soprou-me um expediente. Devia ser aquele beija-flor que me passou pelo rosto zunindo.

O pudor é uma grande força.

Esse tesouro de graça saibam-no despender as mulheres.

Loucas as que distribuem, cegamente, o seu patrimônio de rosas. Tolas as que o soterram no segredo desnaturado da inteira reserva, revelando-o quando muito às frias confidências de cristal do espelho.

Toda esta teoria endiabrada do decote ocorreu-me num segundo.

Na tua idade, eu adivinhava os homens!

Resolvi afrouxar o laço de vexame com que me estrangulava, nos vestidos afogados, prescritos por minha mãe.

Fingi que desdenhava o olhar do vizinho, voltando o rosto para outro lado. E atrevidamente soltei um... dois... três... botões da gola do meu princesa!

Ora, minha bela Otília, dai a pouco, eu guardava no seio submisso, rendido o olhar rebelde do meu moreno; acolhia-o no tépido decote dos meus quinze anos, como um pombo no vinho, friorento, trêmulo.

Assim, no dia seguinte, e no outro e no outro...

E começaram a secar de ciúmes as madressilvas..."

Neste ponto, sem saber como, viu Otília que um... dois... três botões do paletó branco, tal qual na história da prima, se lhe haviam desprendido.

Que horror!

E, sob a fuzilada de olhares da última janela do 2o. andar fronteiro, as abas de fustão, como grandes pétalas, abertas num desabrochar audacioso de magnólia, entremostravam colorações de carne virgem e fugitivas sombras, rendilhadas, ao fundo, por encantadora desordem de crivos claríssimos de camisa.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

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