terça-feira, 2 de agosto de 2022

Luís da Câmara Cascudo (O Sonho de Paraguaçu)

Com destino ao mar Pacífico, tomaram o vento do porto de San Lucas de Barrameda, na Andaluzia, em dias de setembro de 1534, duas naus castelhanas tripuladas por 250 marinheiros, soldados e colonos. Destes, não poucos nobres. Dirigia a jornada Dom Simão de Alcaçovas e Soutomaior, fidalgo português a serviço de Carlos V. A expedição tinha por fim explorar e povoar duzentas léguas de costa, desde o povoado de Chincha até o estreito de Magalhães, ao sul do vasto e riquíssimo império que Francisco Pizarro acabava de conquistar para a Espanha, e doadas ao dito Alcaçovas pela Imperatriz Isabel, com o título de Província de Novo Leão.

Tendo navegado em mui curta extensão o estreito, tão trabalhosa e arriscada se lhe prefigurou a travessia, tais dificuldades teve de enfrentar desde logo, que se viu forçado a retroceder, procurando abrigo na ilha dos Lobos, onde sua gente revoltada o assassinou.

Tomou a direção da esquadrilha um Juan de Echearcaguana, que fez degolar os capitães das naves, pondo em seguida a capa sobre o Norte, em busca de São João de Porto Rico, no mar dos Caraíbas. Após haverem navegado em conserva durante dois dias, os baixéis perderam-se de vista.

Viajava aquele em que tremulara a insígnia do desditoso Alcaçovas, sempre amarrado ao litoral e ao atingir a altura de Boipeba, revoltou-se ainda uma vez a tripulação, encalhando-o num recanto da costa da ilha, que até hoje guarda, por isso, o nome de ponta dos Castelhanos. Foi no dia do Apóstolo São Tiago, Ia de maio de 1535. Metendo-se nos botes e numa chalupa, os amotinados abandonaram a embarcação, em busca de terra, onde foram amistosamente recebidos pelos índios tupinambás. Ao fim, porém, de breves dias, pilhando-os desprecatados, chacinaram-nos sem piedade. Poucos dos castelhanos escaparam à sangueira.

A outra nave, denominada "San Pedro", governada pelo piloto Juan de Mori, veio jornadeando igualmente sem perder a costa do horizonte. Fome e enfermidade flagelaram-lhe a tripulação, que de novo se revoltaria se, em tempo, o capitão não metesse nos ferros os mais salientes.

Cinquenta dias eram passados que sobre o mar corria a nau, quando entrou nas águas da baía de Todos os Santos, onde os mareantes toparam Diogo Álvares, Caramuru, em companhia de nove homens brancos, vivendo pacificamente entre os índios das vizinhanças.

Pouco depois chegou ao porto a chalupa do navio soçobrado em Boipeba, com dezessete sobreviventes da traição do gentio, quase todos feridos de flecha, narrando quanto lhes acontecera, dizendo mais que possivelmente outros dos seus companheiros haveriam escapado à mortandade, refugiando-se em qualquer parte da ilha.

Atendendo às súplicas do Mori, dirigiu-se Diogo Álvares ao local sinistro, vinte léguas ao sul de sua aldeia, encontrando ali noventa cadáveres em putrefação e quatro homens milagrosamente poupados da fúria dos selvagens, embora feridos.

Somente a 18 de agosto, a "San Pedro" largou as velas em rumo da Península, tendo alguns tripulantes ou passageiros da malograda expedição ficado na terra com o Caramuru, ao passo que dos companheiros deste alguns quiseram ir-se embora. Em troca de mantimentos que recebera de Diogo Álvares, largou-lhe Juan de Mori a chalupa e duas pipas de vinho.

Um pormenor que define a intensidade do sentimento religioso entre os homens da época, sem, infelizmente, torná-los menos cruéis: antes de partir, o capitão castelhano entendeu ser obra de misericórdia sondar a alma do voluntário exilado minhoto, submetendo-o a uma sabatina de catecismo. Nada havia esquecido, pois, diz um cronista: - "E falou-se-lhe em alguma coisa da Fé, e, ao que mostrou, estava bem nela".

Teve Diogo uma carta de agradecimento do grande Imperador Carlos V - vai por conta de Rocha Pita e do Padre Simão de Vasconcelos – pelo socorro prestado aos náufragos de sangue azul. Que quanto aos plebeus, certamente, pouco importaria ao magnífico senhor de meio universo que levassem eles o capeta.

Eis aí o caso narrado com algumas divergências pelos historiadores. Veja-se agora a seguinte lenda, que se relaciona com o naufrágio do navio castelhano em Boipeba. Na sua aldeia, à entrada da baía de Todos os Santos, residia Diogo Álvares. Em certa manhã de maio de 1536, sua esposa, a celebrada Catarina Paraguaçu, contava-lhe singular sonho por duas vezes tido àquela noite: em extensa praia vira um navio destroçado, homens brancos rotos, encharcados os trapos que mal lhes resguardavam a pele, transidos de frio e inânimes de fome, estando entre eles uma jovem mulher muito alva, de estranha e fascinadora beleza, tendo aos braços não menos bela e alva criancinha.

Mandou Caramuru explorar a costa próxima, desde a entrada da barra até além do rio Vermelho, a ver se nela algum navio fizera naufrágio, pois enxergara no sonho de Catarina celeste aviso para ir em auxilio de cristãos que por aquelas redondezas houvessem sido vítimas
das insídias do mar. Tais pesquisas resultaram negativas.

Nessa noite, Paraguaçu teve outra vez o mesmo sonho. Ordenou Diogo novas buscas, até muito longe estendidas. Passaram-se dias, e vieram os índios trazer-lhe novas de haver-se despedaçado uma embarcação de gente branca na costa da ilha de Boipeba, Boipeba, achando-se em terra os seus tripulantes, a curtir privações. Sem demora, partiu Caramuru em socorro dos náufragos, que eram castelhanos, trazendo-os com ele. Entre os náufragos, porém, não estava mulher alguma. E que não viera a bordo pessoa de outro sexo, asseguraram-lhe. Entretanto, à noite de sua volta, a linda mulher tornou aparecer a Catarina, agora sozinha - dizendo-lhe que a mandasse buscar para a sua aldeia e lhe fizesse uma casa.

Era-lhe a voz tão harmoniosa, que Paraguaçu despertou extasiada, rogando insistentemente ao marido que fosse de novo à ilha, à procura.

Diogo partiu pela segunda vez, e em todas as aldeias vizinhas do lugar do sinistro, deu rigorosa batida, julgando haverem os tupinambás em custódia a moça que se mostrava à esposa adormecida. Finalmente, na palhoça dum indígena, encontrou pequena arca, que dos destroços do navio soçobrado o mar atirara à praia. Abrindo-a, encontrou uma imagem da Virgem Maria, com o Menino Jesus nos braços. Ao ver a imagem, Paraguaçu exultou de alegria, nela reconhecendo os traços fiéis da moça dos sonhos. Diogo fez elevar com presteza, perto da sua habitação, uma ermida de taipa, onde colocou o santo vulto. E porque lhe ignorasse a invocação, deu-lhe a de Nossa Senhora da Graça, pelo que fizera aos náufragos, promovendo-lhes o salvamento, e à Catarina revelando-lhe o seu paradeiro. Mais tarde, Caramuru construiu outra igrejinha, mais bem-cuidada, de pedra e cal, no mesmo sítio de hoje, reedificada em 1770.

Desde o começo do povoamento da terra por cristãos, a Santa Virgem começou também a favorecê-los com muitas graças, sendo frequentes, nos tempos de antanho, as romarias de fiéis que procuravam o seu templo. Aos náufragos, especialmente, e isto logo que foi posta ali, socorreu por multiplicadas vezes. Quando algum navio era sinistrado nas costas próximas, reza a lenda, apareciam umedecidas as vestiduras da santa imagem, testemunhando assim, de maneira irrefragável, a intervenção da Senhora na salvação das vítimas das ondas furiosas e bancos de areia traiçoeiros.

Vindo Dom João de Lencastro governar o Brasil, em 1694, um dos primeiros cuidados que teve ao chegar a esta cidade foi dirigir- se reverentemente à Igreja de Nossa Senhora da Graça, a quem tributava especial devoção, e depor lhe aos pés o bastão de governador, rogando-lhe, com a mais viva fé, que lhe guiasse os passos na administração da república. Ouviu-lhe Maria Santíssima a súplica, pois os seus longos nove anos de gestão do Estado do Brasil resultaram de muito proveito para os povos, quer nas coisas pertinentes ao temporal, quer nas atinentes ao espiritual.

A Capela que Diogo Álvares elevara, bem como o terreno em derredor, doou-os Catarina Paraguaçu, na penúltima década do século de quinhentos, aos padres de São Bento, após haver obtido do Sumo Pontífice - asseveram-no Frei Vicente do Salvador e Padre Simão de Vasconcelos - muitas relíquias e indulgências para os romeiros.

Eis aí, segundo a história e a lenda, a crônica da tradicional Abadia de Nossa Senhora da Graça, onde jazem as cinzas da piedosa esposa de Diogo Álvares, Caramuru.

A imagem que ainda hoje se venera no altar mor é a mesma que foi por aquele encontrada no tejupá do índio de Boipeba, vai por mais de quatro séculos, medindo uns seis palmos de altura. Na sacristia veem-se três antigos óleos em que figura a celebrada princesa brasílica.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. Projeto Livro para Todos.

Nenhum comentário: