sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Caldeirão Poético LIII


Adão Ventura
Santo Antonio do Itambé/MG, 1939 – 2004

PRECONCEITO

— Muitas vezes
a cor da pele
é uma grande parede.

Daí
o abraço frouxo,
o beijo mal dado
e o sorriso amarelo.
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Betty Vidigal
(Elizabeth Vidigal Hastings)
São Paulo/SP


PITANGAS

Era uma febre, um delírio,
Uma mandinga bem feita,
cama com cheiro de lírio.

Era um delírio, uma febre,
amor que não se endireita,
quebranto que ninguém quebra,
tremedeira de maleita,
uma mulher e um ébrio
de amor que não toma jeito.
E ela, que não se emenda?

Meus dedos fazendo renda
com os pêlos do seu peito;
o coração que se escuta
pelo quarteirão inteiro;
pitangas no travesseiro,
cama com cheiro de fruta.
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Carlos Pena Filho
Recife/PE, 1929 – 1960


SONETO DO DESMANTELO AZUL

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas,

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
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Dora Ferreira da Silva
Conchas/SP, 1918 – 2006, São Paulo/SP


O VENTO

Na palma do vento
pouso a fronte. Nele confio.
A quem confiaria senão a ele
este rude labor?

Abandono-me à tormenta
(lumes mastros
gaivotas do mar próximo).

Enreda-me a noite.
Mas dele são os dedos leves
que me fecham os olhos. E é manhã.
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Ésio Macedo Ribeiro
Frutal/MG


NOME

O poeta quer ter nome fácil: João.
Ninguém erra,
ninguém esquece,
tão barro.

João estuda o céu para o plantio,
poema de outra lavra.

O poeta colhe no espaço uma nuvem-açucena,
que cheira na página que não vinga.

João dorme cedo,
acorda com o galo.

O poeta nunca dorme,
nunca acorda.
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Fernando Fábio Fiorese Furtado
Juiz de Fora/MG


COMO DESFAZER BAGAGENS

Como quem de viagem
demora a acomodar-se
ao clima, ao horário,
às vogais de outra sintaxe,
também escrever estranha
quando muda de paisagem.

Como quem de viagem,
o que carrega apouca
a dicionários, passagens
e alguma muda de roupa,
também escrever exige
aprender a descartar-se.

Como quem de viagem
pouco ou nada decifra
do manuscrito-cidade
(mal soletra as esquinas),
também escrever ensina,
menos importa encontrar-se.

Como quem de viagem
evita, quando sabe,
os apelos do fóssil,
do que é fausto adrede,
também escrever prefere
o que se dá sem salvas.

Como quem de viagem
sabe o prazer de andar
sem endereço ou idade,
com a roupa amassada,
também escrever comparte
esse corpo sem abas.

Como quem de viagem,
para rever a janela onde
lhe sorriu uma criança,
o embarque adiaria,
também escrever alcança
os vestígios desse dia.

Como quem de viagem,
das malas faz relicário
de rostos, ruídos e mares,
de balas, livros e ácidos,
escrever também seria
como desfazer bagagens.
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Graça Pires
Figueira da Foz/Portugal


AMOR

Quando te procurei
em rotas de seda e ouro,
eu não sabia que o amor
é uma espera de mágoa e mel.
Nem suspeitava
que há nos corpos nus
a enchente das marés
que altera a tempestade.
E desconhecia que é preciso
empunhar o leme
para que as mágoas inundem
desesperadamente as margens.

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