sexta-feira, 24 de março de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (171)

 

ENQUANTO ESPERAVA pela minha simpática secretária Carina, no saguão do Aeroporto de Viracopos, em Campinas, onde voaríamos para Nova York, sentado praticamente na cara do portão de embarque dos voos internacionais, um sujeito tentou me contar uma historinha triste. Percebi que ele trazia no rosto corado (não de vergonha, mas pela falta de destreza em arranjar uma desculpa que convencesse), uma cronologia negativa de outras pessoas anteriormente abordadas. 

Deve ter imaginado, ao olhar para mim, que eu era um desses idiotas improvidentes, com o rabo entre as pernas, cheio de medos, fácil de ser levado no bico, e que se afogava tropeçando os pés em pouca água. Como me considero macaco velho, e em razão disso não meto a mão em cumbuca, ando longe, portanto, de cair como um patinho nesses tipos de lorotas baratas expostas às voracidades construídas em botecos de esquina, diante da aproximação do cabra, fiquei, pois, em completo estado de alerta. 

Em sentido idêntico, estou careca de saber que nos ajuntamentos de grandes terminais há sempre algum safardana contador de rodelas, procurando tirar proveito da ingenuidade alheia, notadamente dos sem malícia e dos puros de espírito, e, principalmente, fazendo valer a degenerescência de caráter, muito comum em quem não tem respeito pelos seus semelhantes. Assim, quando a criatura chegou com um sorriso maroto à mostra dos dentes bem tratados, já estava em guarda e tratei de me livrar rapidinho do estouvado, sem magoar a sua coragem, usando de toda elegância possível que me ia na alma.

Nos minutos que ficou ali na minha beira, jogando conversa fora tentando criar cenários ficcionais e se passar pelo bom moço, descobri que o meu interlocutor havia saído do interior de Belo Horizonte para trabalhar em São Paulo. O empregador (depois de ele ter laborado por trinta dias ininterruptos), não pagou ninguém, deu calote e fugiu com o dinheiro deixando todos os funcionários a verem ossos onde sequer existiam pedaços apodrecidos de “pecanhas” (carnes de galinhas sem unhas).  Esses operários, como ele, chegavam a mais de duzentos. Corroborando a sua tese, exibiu um bilhete da Azul (companhia aérea datado de quatro meses atrás), referente à sua vinda com a respectiva taxa de embarque coletada no aeródromo da Pampulha. 

Até aí, tudo bem. Casos assim acontecem. Pode, inclusive, suceder com qualquer um de nós, meros seres mortais. Para pegar a mentira do dito cujo, me fiz solidário à sua desdita. Ato contínuo me propus a ir com o prezado até o balcão de uma das companhias que cobrem o trecho e, no meu cartão de crédito, adquirir a passagem de volta para as Minas Gerais. Para meu espanto e incredulidade, aconteceu exatamente o que eu não esperava: o jovem recusou a oferta. E o fez veementemente!

— “Oxente – disse a ele meio que intrigado. – O amigo não quer regressar para a sua terra? Estou lhe pagando o bilhete sem pedir nada em troca. Aceite como um presente de coração!”.

Qual o quê! O engraçadinho tratou de sair da minha aba sem se beneficiar da alvissareira generosidade que lhe oferecia. Sumiu do pedaço e, de repente, se tornou invisível, mais difícil de pôr os olhos em cima que mulher virgem em terra de tarado. Graças à Deus, estava certo. Senti que ficou pairando no ar, no curto interregno de nosso bater de línguas, uma cansativa transição frustrada entre a verdade e a mentira em rejeitar a minha oferenda, e, por derradeiro, se eximir sem mais detenças, da auspiciosa ajuda. 

Valeu, a bem da verdade. Tirei um peso da consciência. Penso sempre o seguinte: se não estendo à mão à caridade dos necessitados, me condenaria a depois. Poxa!... Poderia ter concordado...  se ofereço ajuda, como de fato me dispus, de coração aberto, o que aconteceu? Me deparei com uma surpresa desagradável. A repugnante esquivança de uma negação fria e repulsiva. Nessa hora, a gente se sente impotente, fraco, débil, como se passado para trás. Ele não queria a passagem, deixou isso bem claro. Almejava o dinheiro vivo. 

Fatos como esses, me levam a analisar o impasse, como se espiasse para quadros de um mesmo pintor com molduras diferentes: 1) o cidadão pretendia, realmente me enlear numa garabulha (embrulhada) maquiavélica e, ao final, passar a mão no meu rico e suado dinheirinho ou, 2): não viera de onde havia dito coisíssima nenhuma e só almejava inteirar a grana, não para uma passagem de regresso à terra de origem, obviamente com a finalidade preestabelecida de mergulhar no submundo das drogas. 

Ou coisa pior, vai se saber, agora, nessa altura do campeonato. Embora estivesse vestido com certo apuro, acompanhado de uma porção de malas à tiracolo, percebi nessa mescla de tantas palavras ardilosas que o seu objetivo não se prendia a rever seu velho e abençoado lar, sua casa, seus pares. Ao contrário, tinha por pretensão me engambelar, como certamente tentaria (ou tentara) fazer com outros, antes de me acercar, numa patranha mal ajambrada (desajeitada) com finalidades inverídicas e escusas. Nesse escopo meio confuso, pela falta de lisura das pessoas, até pelas mentiras, falta de decoro e compostura, acaba o justo pagando pelo pecador.  

Ora, se a intenção do cidadão se baseava, mesmo, em voltar nos passos que o trouxeram à um fiasco, por que recusou a minha oferta ao seu pedido de socorro? Diante dessa imprevista e inesperada rejeição, restou patente que ele não estava com nenhuma vontade de embarcar para Belo Horizonte. Recepcionava, por certo, dar o surrado “golpe da volta para casa” e, pior, repetindo, tricotando por conhecidos fios de uma malha de linhas retorcidas que não o levaria à lugar nenhum, a não ser a desgastante indução maligna de algum outro futuro imprudente desavisado a rodopiar feito pião bêbado em “esparrelado” (logrado) erro. 

Não só ao juízo falso, igualmente ao desvio do caminho reto, sem mencionar a fraude, embutida no artigo 171 do Novo Código Penal, tendo como seslóio (*) à conversa mole que não convenceria nem uma dessas nobres velhinhas que não pensam duas vezes antes de abrirem as bolsas e doarem os poucos tostões disponíveis, pensando nas regalias do “emprestando aos pobres, se tornarão virtuosas aos olhos do Criador”. Apesar desse entrave, eis que a Carina apontou lá longe, cheia de malas e sacolas. A sua chegada, como sempre, despertando em mim, il bimbo nel vecchio (a criança no velho).   
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Seslóio – Não confundir com soslaio. Seslóio variante de referência, ou alusão.   

Fonte:
Texto e notas enviadas pelo autor.

terça-feira, 21 de março de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 2

 

Cecy Barbosa Campos (Recomeço)

Maura pensou, com alívio, que o mais difícil já havia passado. Aqueles longos anos de um casamento convencional, frio e sem entusiasmo, que se limitava a um educado "Bom dia", a cada manhã, num café com torradas, que entalava na garganta, sufocada pelos longos silêncios que se alternavam com frases corriqueiras e ocasionais.

Não havia o que dizer. O que acontecera com eles. Maura não conseguia entender. Sem brigas, sem rancor, sem discussões, só aquele afastamento inexplicável, a falta de carinho, a apatia total. Até o sexo acabara, se fora distanciando, acontecendo às vezes, pela insistência de Maura, que sentindo na mecanização do ato, o cumprimento de uma obrigação, acabou desistindo. Passou a sonhar apenas, com a volta de um momento em que o marido lhe tomasse o rosto entre as mãos, suavemente, e murmurasse: Eu só queria te dizer que te amo muito, sim? — numa declaração inesperada, que poderia acontecer sem hora marcada e que seria seguida por um terno abraço, ao qual Maura corresponderia, cheia de emoção.

Se houvesse outra, teria sido mais fácil de entender. No princípio, fez perguntas e cobranças, dava indiretas, mostrava-se carente e insegura. O marido não parecia incomodar-se e nem mesmo se aborrecer com os questionamentos da esposa. Na verdade, à medida que o tempo passava, deixou até mesmo de responder, e Maura chegou à conclusão de que, por ele, não teria nenhum esclarecimento. 

Apelou, então, para um detetive particular, indicado por uma amiga que, suspeitando do marido, havia comprovado a eficiente discrição do serviço. Este era um quesito fundamental, pois Maura sabia que, caso se descobrisse vigiado, o marido se sentiria alvo de uma ofensa mortal.

As investigações não levaram a nenhum fato desabonador, a nada que pudesse comprometer a reputação de Roberto como um marido fiel, mas o espaço entre os dois aumentava, cada vez mais, num constrangimento insuportável que a presença de um causava no outro.

Finalmente, Maura, sem premeditar, pôs fim á situação. No café da manhã, gritou desvairada:

— Chega! É impossível continuar assim! Não podemos mais viver este casamento de aparências!

Aquele rompante imprevisível, que não fora precedido por nenhuma conversa ou acontecimento, não causou qualquer reação em Roberto. Ele permaneceu impassível, sem manifestar espanto ou susto. Simplesmente, concorda.

— Está bem. Posso contratar um advogado que cuide dos trâmites legais, enquanto você pode ir escolhendo os objetos de sua preferência e separando nossos livros, discos e objetos pessoais...

Agora, que estes detalhes materiais e prosaicos já estavam resolvidos, Maura sentia-se cansada, muito cansada. Olhando-se ao espelho, observou que aqueles anos de agonia e dúvida haviam sulcado seu rosto e escrito várias linhas.

— Sem dúvida, falou consigo mesma, enquanto puxava a pele em direção às orelhas - não é nada tão grave que uma boa plástica não possa resolver…

Fonte:
Enviado pela autora.
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.

Carolina Ramos (Folclore Brasileiro) Amazonas

A Amazônia, mercê dos encantos oferecidos pela pujança de sua flora e fauna,  atrai não só os que a procuram por interesse turístico, mas também desperta e cada vez mais incrementa a cobiça mundial de olhos voltados para as riquezas entesouradas no seu solo.

E é lá que o folclore avulta a correr livre como se, "num rasgo de benevolência da Natureza, a Amazônia inteira tivesse sido escolhida para perfeito habitat e abrigo de mitos, lendas e de personagens os mais diversos, tais como Curupiras, Caiporas, Sacis, Saçurás, Uiaras e demais entidades que se acoitam naquele mundo verde que pulsa, irrigado pela pujança dos rios ainda não rendidos à poluição ambiental."

Várias comemorações ligadas ao folclore agitam anualmente as cidades dos amazonenses, como o Festival da Canção Itacoatiara, Festival de Ciranda de Manacapuru e o famoso Festival Folclórico de Parintins. Este município, durante os três dias que encerram o mês de junho, ferve de entusiasmo acompanhando as disputas entre o Boi Caprichoso, que defende as cores Azul e Branca, e o Boi Garantido, que "briga" pela cor Vermelha. Nessa competição,
mitos e lendas indígenas são exploradas nas letras das músicas que incluem rituais indígenas e regionais e levam a plateia ao delírio.

Várias Lendas enfeitam as páginas da tradicional cultura amazonense. Impossível não começar pela maior delas que é a do Eldorado. Sobre essa lenda, temos em mãos o livro "A fascinação dourada", de autoria de J. Muniz, do IHG de Santos, o nosso "Marechal do Samba", como será explicado no momento oportuno. Na obra citada, J. Muniz inclui, à guisa de prefácio, um texto esclarecedor de Manoelito Teixeira Lima, onde se lê: "O mitônimo "Eldorado" significa lugar de ouro. Litré o vê como um pretendido país que teria sido descoberto por um tenente de Pizarro, na América do Sul".

Teixeira Lima também cita J. O. de Meira Penna, que explica: - "Eldorado inscreveu-se entre os três arquétipos míticos da ficção brasileira, a saber: Visão do Paraíso, Inferno Verde e Eldorado".

É evidente que a história do Eldorado faz parte da história do ouro do Brasil sempre impregnada de lirismo, de imaginação e que se estendeu por todo o mundo, em particular pela península ibérica, estimulando tanto a curiosidade como também a gula dos interesses, através dos tempos, o que, por sua vez, contribuiu bastante para o desenvolvimento da região amazônica.

J. Muniz relata a ousada "passagem dos fenícios e hebreus pela monumental Amazônia, digna de admiração e que continua envolta por muita magia, escondendo segredos e mistérios que aguçam a curiosidade do homem moderno". - Termina a introdução de sua obra, citando palavras do escritor Amorim Neto: -"A Amazônia será eternamente bruta e indomável... Inteligência alguma descreverá a sua beleza e rebeldia"... E exalta, ao terminar: - "Dentro das tuas selvas sombrias guardarás, por toda a vida, os tesouros da tua riqueza fabulosa e os mistérios das tuas lendas fascinantes".

A Lenda do Guaraná

Esta lenda tem por base um casal de índios que não tinha filhos, embora muito desejasse ter... pelo menos um. E isto era motivo de grande sofrimento.

O deus Tupã, reconhecendo o merecimento do jovem casal, acabou por satisfazer-lhe esse desejo. 

O menino chegado foi recebido com muita alegria pela tribo inteira. Crescia cercado de muito afeto e carinho, o que acabou por enciumar Jurupari, deus da escuridão e do mal, que, envenenado pela inveja, tramou-lhe a morte.

Numa tarde, a criança embrenhada na floresta procurava frutos. Jurupari, sob o aspecto de uma cobra venenosa, consumou sua vingança! A triste notícia espalhou-se rapidamente pela tribo e uma tempestade violenta, precedida por trovoada e relâmpagos, apavorou toda a aldeia.

Para a desesperada mãe do menino morto, aqueles trovões soaram como se fossem "mensagem expressa de Tupã, a aconselhá-la a "plantar" os olhos da criança, no local em que ela fora morta - o que daria origem a uma viçosa planta, cujos frutos seriam sempre muito doces".

O conselho foi seguido. E, naquele lugar onde os olhinhos do menino foram "plantados", nasceu o guaraná, cujas sementes negras, cercadas por uma película branca, muito se parecem com olhos humanos.

A Lenda da Uiara ou lara 

A riqueza das lendas da Amazônia! Talvez a mais conhecida e uma das mais belas seja a Lenda da Iara, ou Uiara, entidade meio mulher, meio peixe, sempre sentada à beira d'água, a pentear seus cabelos verdes como algas, enquanto o fascínio da sua beleza leva para o fundo do lago os incautos apaixonados atraídos pela magia do seu mavioso "canto de sereia".

Contam alguns que os cabelos da Iara não eram verdes, e, sim, negros, e que ela era, a princípio, não uma sereia, mas uma jovem índia, que vivia com o pai e dois irmãos. Estes, enciumados pela atenção que o pai dedicava à irmã, decidiram-se a eliminá-la. Ao perceber o perigo, a Iara, tentando defender-se, acabou por matá-los. 

Temerosa da ira do pai, fugiu, então, para a floresta, chegando exausta à beira do rio Solimões, sendo adotada pelos peixes e acabando por transformar-se naquela Sereia que sobe à superfície das águas e atrai jovens incautos com sua voz melodiosa. Sentada à margem do rio, ela penteia os longos cabelos verdes (ou negros), escondendo sempre a cauda de peixe, que é mantida mergulhada nas águas.

É assim que a Iara consegue arrastar para o fundo do lago (lagoa ou rio), os jovens ingênuos que se deixam enfeitiçar pela maviosidade da sua voz - ao concretizar sua vingança de punir os homens, que ela diretamente implica no fato que a levou a ser transformada em Sereia.

Origem do Rio Amazonas (lenda)

A criação do Rio Amazonas tem várias explicações, dentro do imaginário. Segundo uma delas, o imenso rio foi criado pelas lágrimas derramadas pela Lua, ao ver-se separada do seu amado, o Sol, sabendo-se condenada a brilhar apenas à noite, enquanto ele somente durante o dia poderia aparecer. Deste modo, aos dois enamorados, Cuara e Jassy (Sol e Lua), por determinação do deus Tupã, jamais seria permitido um encontro, uma vez que a ardência daquele amor, tão grande e impetuoso, poderia pôr em risco o equilíbrio do próprio mundo!

Boiuna de Prata

A Boiuna de Prata, diz a lenda, é o reflexo da própria Lua, "que chega até a Terra, a afundar navios, a fascinar e desencaminhar meninas, sob a forma de uma grande cobra de prata (o luar), que se esgueira coleante por entre a mata".

"Atraídas pelo fascínio do luar, ou seja, pela Boiuna de Prata, as meninas incautas acabam por ter sua felicidade roubada". Os olhos dessa cobra "iluminam, como dois grandes faróis". 

Ao arremate do assunto que envolve o riquíssimo folclore amazonense, impossível esquecer Macunaíma, esse "herói sem nenhum caráter", "esculpido em letras" pelo paulistano Mário de Andrade, que, no romance, lançado em 1928, usa como protagonista essa mesma figura vivificada, anos antes, por Theodor Koch-Grünberg, etnologista alemão, cujas pesquisas sobre os indígenas, lendas e mitos amazônicos, continuamente exploradas pelos estudiosos, teriam dado base ao trabalho de Mário de Andrade, o que resultou numa acusação de plágio. Entretanto, aquele Macunaíma, ativado e elaborado pelo escritor paulistano, acabou por ampliar e fazer crescer bastante o interesse pelo folclore amazonense, acabando por tomar-se protagonista de um filme. Nesta obra, escrita com bastante humor e linguagem peculiar, Mário de Andrade acentua a falta de caráter dessa personagem clonada do tal "jeitinho brasileiro", feito da contumaz esperteza e malandragem, que esbanja e que fingimos tolerar, embora nos desabone aos olhos do mundo.

Conduzido por Mário de Andrade, Macunaíma tripudia dentro do folclore nacional, imiscuindo-se em suas lendas, mitos e crendices. O sucesso da obra, porém, embora tropece em algumas críticas, acaba por trazer de retorno ao autor a prestigiosa conceituação de ter escrito "uma das mais importantes obras modernistas, numa época em que ele, Mário de Andrade, ferrenho defensor da Semana de Arte Moderna de 22, procurava, por todos os meios, "ridicularizar a maneira de expressão usada pelo Romantismo".

Outro nome, ligado ao acervo folclórico do Amazonas, é o do compositor Waldemar Henrique, que, embora nascido no Pará, inspirou-se bastante no folclore amazonense ao compor grande parte do seu alentado acervo musical, a exemplo das músicas: - Foi boto, Sinhá!, Cobra grande, Coco peneruê, Uirapuru, Curupira, e outras mais.

Fonte:
Enviado pela autora.
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: 
publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.

segunda-feira, 20 de março de 2023

Daniel Maurício (Poética) 49

 

George Abrão (E por falar em amizade...)

Um dos mais importantes fatores que determinam uma amizade verdadeira é a reciprocidade. Sem ela, sem a troca de apoio, confiança e querer bem, ela transforma-se em simples conhecimento como tantos outros. Amigo de verdade é aquele com quem você pode contar a qualquer momento, que está com você sempre que precisar: com quem você chora as suas mágoas e compartilha a sua felicidade, e também mesmo que você não precise, esteja ali, ao seu lado, mesmo que distante. E que, tudo isso, seja recíproco da sua parte, porque amizade unilateral é insustentável. 

Entre amigos não pode haver lugar para melindres, nem para omissões, tudo o que tiver que ser, deve ser dito sem reservas, sem falsos pudores, pois o amigo verdadeiro não se magoa com o que ouve, pode ser que até fique momentaneamente chateado, mas isso passa muito depressa e a amizade até se fortalece. Também saber ouvir é muito importante, sem pressa, sem apartes, deixando que o amigo desabafe seus temores ou que expanda as suas alegrias fazendo parte deles, como se fossem seus.

Um amigo verdadeiro é um presente de Deus, é mais um irmão, não de sangue, mas de alma. É uma planta rara que deve ser sempre regada com afeto, com carinho, com atenção.

A comunicação é muito importante, sempre! Se você não tiver nada importante a dizer, diga apenas um lacônico “oi”, um “como vai? ”, mas diga sempre, não deixe que a amizade entre no ostracismo; não deixe que o seu silêncio seja confundido com falta de interesse.

E, tudo isso posto, você então poderá dizer, como eu e com muita felicidade:

- Eu tenho amigos verdadeiros!

Fonte:
Enviado pelo autor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXXIX

Amor, carinho, amizade,
um tripé na construção
de um lar de felicidade,
se houver participação.
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Deus atenda a cada intuito
que na alma se refugia,
se não for lhe pedir muito:
– Conceda a sabedoria!
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Entre as grades da prisão
o apenado se rebela,
não vê nela uma razão
de estar ocupando a cela.
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Fora do esquife, alguém fala,
implora a quem vai partindo:
– “Por que partes?” Mas se cala,
quem parece estar dormindo.
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Jamais, a felicidade,
venha a nos abandonar,
e um lugar na eternidade
Deus possa nos reservar.
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Muitos pés estão cansados
de tantas adversidades,
outros andam apressados
enfrentando as tempestades.
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Ninguém enfrenta a batalha
sem um leme norteador,
tal um navio que encalha
e aguarda um rebocador.
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Ninguém ouse construir
um sonho sem planejar,
melhor, antes desistir,
que partir e não chegar.
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O infrator mostra a proposta
que o faz do mundo, banido,
tendo, na pena, a resposta
do ato insano cometido.
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Pela força, tão sentida,
da flor ao sopro do vento,
obrigado, ó Deus, a vida,
por viver este momento!
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Pessimista, o sofredor
não deglute a solução,
torna prolongada a dor
no leito da prostração.
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Quem disser, 'não tenho nada',
tentando enganar alguém,
de uma forma equivocada,
está afirmando que tem.
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Quem tem pressa pra chegar
ou se mostrar tão cansado,
bem melhor é descansar
pra ver seu sonho alcançado.
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Que ninguém seja julgado
por algo não cometido
e, tampouco, condenado
por não ter se defendido.
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São tantas pedras e espinhos
ao longo das caminhadas,
que atravancam os caminhos
e emolduram as estradas.
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Se à vida a flor desabrocha
e à noite a estrela incandesce,
o sol, em forma de tocha
ilumina e nos aquece.
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Se colheres nos caminhos
frutos de estranhos sabores,
é porque plantaste espinhos
presumindo que eram flores.
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Sem luz o dia escurece
e atrapalha a caminhada,
mas se o sol desaparece
decreta o fim da jornada.
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Se na eternidade alçamos
de mãos áridas, vazias,
é porque a vida passamos,
sem vivermos nossos dias.
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Tão faminto quanto atento
por um prato de comida,
segue em busca de alimento
o sedento por mais vida.
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Temos leis, até demais,
naturais ou promulgadas,
que entre os seres racionais
muitas nem são respeitadas.
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Toda a beleza que enfeita
o jardim com suas cores,
faz a rosa ser eleita
a rainha, dentre as flores.
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Todo ser vivo, pensante,
só difere dos demais,
se amar o seu semelhante
respeitando os animais.
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Tudo o que ao derredor vemos
podemos engrandecer,
vida, o grande dom que temos,
resta a Deus, agradecer.
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Vida, bem mais que um reflexo
de algo em pleno movimento,
de Deus, um plano complexo,
que foge ao conhecimento.

Fonte:
Enviado pelo trovador.
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.

domingo, 19 de março de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 24

 

Olavo Bilac (Os Anéis)

A bela sociedade, a sociedade alegre, composta de rapazes e de raparigas, estava reunida em roda da larga mesa da sala de jantar, convertida em mesa de jogo. A velha mãe das raparigas, a gorda Sra. Manuela Matias, bem sabia que aquelas noitadas de víspora e chá lhe custavam os olhos da cara... mas que havia de fazer a Sra. Manuela Matias? — morrera-lhe o marido, deixando-lhe aquelas seis filhas, e — com todos os diabos! — era preciso casar as raparigas, pois não era? E ali estava a boa viúva à cabeceira da larga mesa da sala de jantar, embrulhada no seu xale de ramagens, vigiando as filhas, que, ao lado dos namorados, iam cobrindo com os grãos amarelos do milho os cartões do víspora...

Cacilda, a mais velha, (vinte anos, dizia ela; vinte e cinco, diziam as más línguas) estava ao lado do louro Eduardo, um janota que, às vezes, no flerte inocente com meninas solteiras, descansa das aventuras mais práticas com as casadas... Juntos, juntinhos, inclinados sobre os cartões — tão juntinhos que, de quando em quando, as suas cabeças se tocavam e seus hálitos se confundiam... E os outros pares iam marcando os números... E Cacilda e Eduardo — que caiporismo! — tinham os cartões descobertos, tinham o monte de grãos de milho intacto, sobre a toalha da mesa... E a boa senhora Manuela Martins, cochilando, embrulhada no seu bonito xale de ramagens, presidia àquele divertimento inocente. Então? era preciso casar as raparigas, pois não era?

De repente, o louro Eduardo deixa escapar da garganta um grito de dor, de angústia, de horror... E, muito pálido, o louro Eduardo aperta apressadamente com as mãos a... barriga, enquanto Cacilda baixa a face inundada de uma onda de rubor.

— Que foi?

— Que foi?

— Que foi?

— Nada... uma dor que me deu... já passou... já passou...

E, à saída, depois do chá, o louro Eduardo confia ao seu amigo Américo o segredo do seu grito. E Américo, entre duas risadas, indaga:

— ... com as unhas?

— Qual com as unhas, filho! Com os anéis! Eu não sei para que é que aquela rapariga quer tantos anéis na mão direita! Estou todo arranhado...

Fonte:
Disponível em domínio público.
Olavo Bilac. Contos para velhos. Publicado originalmente em 1897.

Raquel Ordones (Poemas em Gotas) III

CLASSIFICADOS

Precisa-se: poetas e humildade.
Verdade em versos; soltos feito brisa.
Precisa é a sua idoneidade
Qualidade; pois é; receita visa.

Precisa-se: poetas sem vaidade.
Confrade sem status; só poetiza.
Batiza-se POETA; raridade.
Invade-se, o bom não exterioriza.

Precisa-se: poetas: toda idade.
Veracidade; não “se acha” e ironiza.
Pisa; competição; pódium: deidade.

Saudade da atenção, do ler: divisa.
Desliza o olhar; comenta: - majestade!
Velocidade; só se valoriza.
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GRAVADO COM PROFUNDEZA

Fazenda: uma estação feliz que exporta.
Exorta-me: é tão distante a emenda.
Entenda: quase nunca me comporta.
Conforta a imagem linda, não é lenda.

Moenda de café, no quintal a horta.
Corta o capim pro gado: uma oferenda.
Renda numa toalha; sobre: a torta.
Conforta leite e bolo na merenda.

Legenda não precisa; a ideia entorta.
Importa é a estrela do ser: prenda.
Agenda? Só folhinha atrás da porta.

Aorta via aberta: campo tenda.
Parlenda aprendi; minha alma transporta.
Reporta-se de tudo numa venda.
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O MURO DA QUINTA

Tinta; é tanta tinta! O muro noto.
Boto meus olhos, coisa que requinta.
Pinta uma efígie, tão logo a decoto.
Broto junto; minha alma é faminta.

Extinta a escória; agora bela foto.
Adoto a cor; meu ser então se pinta.
Tilinta o coração; de encanto loto.
Borboto gradação; no cinza a finta.

Cinta é colorida; nó picoto.
Devoto-me à obra; coisa absinta.
Sucinta admiração, mas não me esgoto.

Arroto estrelas; obra é distinta.
Sinta-me dentro da arte que piloto.
Denoto-me perante o céu da quinta.
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OUVINDO ESTRELAS

Ouço! Mas não me venha expor:_ Maluca!
Machuca. Escuto estrela em todo gosto.
Rosto feliz, e na alma uma muvuca.
Caduca nada; meu ser é o oposto.

Posto: numa janela. Imo batuca.
Nuca encrespa em contato com o encosto.
Deposto-me ao céu; graça cutuca.
Arapuca, me pego presa. Eu exposto.

Arrosto; à lonjura não retruca.
Cuca fresca assisto ao show disposto.
Agosto, maio; tanto faz. Véu educa.

Truca a imagem; cenário já proposto.
Imposto ouvido; entendo. Nada infuca*.
Suca-me** o verso, verbo bem composto.
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* Infuca = intriga.
** Suca-me = suga-me.
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PARNASUS CONTEMPORÂNEO

Chapéu negro; de costas é tão bela.
Tela no cabelo e no dedo, anel.
Pitéu; mas quando se vira : congela.
Pela um medo; que horror, coisa pinel!

Véu na alma, e pelos olhos a remela.
Mela o nariz e manca em seu tropel.
mundaréu de caras, boca banguela.
Apela em feiura e ganha troféu.

Céu de maldade, nuvem de mazela.
atrela  frisson, bizarro painel.
cruel é seu jeito, em nada singela.

Anela o mal, em volta fogaréu.
Fel e pesadelo  Vênus "Cruela",
flagela o sonho; de Zeus é um réu.

Fonte:
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Carolina Ramos (Folclore Brasileiro) Estado de Alagoas

No Brasil são chamados de festeiros os grupos de foliões, que dançando ou não danças dramáticas, celebram os Reis e também outras festividades da época, o que é bastante comum em Alagoas, sendo estas festas programadas com bastante antecedência.

Afirmam pesquisadores que Alagoas é, dentre os estados brasileiros, aquele considerado como o que apresenta maior diversidade de manifestações culturais, sempre com programações bastante intensas.

Entre as modalidades mais importantes, são citadas as danças e os folguedos, ao todo 27, destacando-se; as Baianas, o Bumba-meu-Boi, a Cavalhada, o Fandango, o Guerreiro, Pastoril, Quilombo e o Reisado.

Pequenos barracões, cobertos com folhas de palmeiras, são armados em bairros distantes - arrabaldes de Maceió - quatro meses antes do Natal. E "é neles, à luz de candeeiros, que acontecem os ensaios". Desses ensaios, participa toda a população mestiça dos subúrbios de Maceió. Barracas e carrinhos de mão ajudam a vender "guloseimas típicas daquela região, tais como cocadas, amendoim torrado, pipoca, paçoquinha, bobó, a animar ruas e praças, e esta é uma das fases mais movimentadas da vida alagoana".

O Rei (Rainha), o Secretário, ou Mestre-Sala, o Contramestre, ou Vassalo, o Mateus e a Catirina compõem o grupo de foliões do reisado alagoano, todos eles personagens com função determinada. 

As vestimentas usadas, ricas em adereços, são adornadas com enfeites feitos de cacos de espelhos, "aos quais é atribuída função amulética".

O Reisado, de origem portuguesa, não foge aos moldes repetidos em vários outros estados do Brasil, aqui chegado via Pernambuco, numa adaptação do Maracatu que, por sua vez, absorveu características das danças e canções de origem afro-religiosa.

O Bumba-meu-Boi, não difere do que acontece nos demais estados.

Quanto ao Fandango dançado em Alagoas, de origem lusitana, é bem diferente daquele originário da Espanha e dançado, aos pares, no sul do país. O Fandango de Alagoas é náutico, ligado à Marinha, representada pelas cores azuis e brancas das vestimentas. Aos violões e cavaquinhos cabe a música.

O Pastoril, também de origem portuguesa, é folguedo natalino dos mais populares. Dele, apenas doze moças participam, divididas em dois cordões, com roupas de cores diferentes, azul e vermelha.

As Cavalhadas, como o nome indica, são corridas de cavalos. Lembram aquelas da Idade Média, realizadas em praça pública, comuns em Siena, Itália, durante as quais "os competidores tentam apossar-se de argolas suspensas por uma garra". A corrida é antecipada por visita à Igreja, sendo, em seguida, o santo homenageado posto em lugar de destaque na Praça.

O Quilombo pode ser apresentado em qualquer época, mas acontece de preferência em festividades de cunho religioso. Trata-se de uma adaptação das danças que representam guerras entre raças, mais objetivamente, entre mouros e cristãos.

Fonte:
Enviado pela autora.
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: 
publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.

Aparecido Raimundo de Souza (Tal mãe, tal filha)


Quando não se pode dizer a verdade, mas se diz algo semelhante à verdade, não se está traindo a verdade”.
José Mauro de Vasconcelos (escritor)

O TELEFONE TOCOU INSISTENTEMENTE na residência da senhora Viviane Cardoso de Godói. Ao ouvir o som do aparelho se destrambelhando, fez sinal para que a sua filha Tati, uma criança ainda, que tomava seu café matinal, atendesse. Antes que a menina tirasse o auscultador do gancho, a mãe insistiu com veemência para que a pequena dissesse a quem quer que estivesse do outro lado da linha (ainda que a figura do papa ou do presidente da república), não importava quem fosse, ela não se encontrava em casa. A guria, contudo, cara de poucos amigos, sem entender bulhufas, contestou:

— Mas a senhora está aqui, mamãe. É feio mentir.

— Faça o que eu digo e não faça o que eu faço. Eu não estou. Não está vendo que eu saí cedo? 

— E a senhora foi aonde mamãe, às oito e meia da manhã?

— Invente uma desculpa qualquer. Seja criativa. Sei que arranjará uma boa desculpa. Atenda logo essa porcaria. A campainha dessa droga me irrita os tímpanos e me tira do sério! Vamos, Tati, se mexa... não estou pra ninguém. NINGUÉM!

A menina obedeceu, o semblante fechado:

— Alô?  Bom dia. Quem é?

— Bom dia, aqui é o Pedro das “bugigangas”. Dona Viviane se encontra?

— Não.

— Saiu?

— Mais ou menos...

— Como mais ou menos? Ela está ou não?

— Não sei não, senhor. Dona Rosa, a vizinha aqui do nosso lado esquerdo acabou de me dizer que ela foi abduzida. 

— Não entendi. Foi o quê?!

— Abduzida.

— Abduzida?

— Foi o que eu disse. 

— Meu Deus, que absurdo. A sua vizinha falou isso pra você?

— Sim, senhor... 

— Essa senhora que disse essa barbaridade está aí do seu lado? Deixa-me falar com ela. Passe, por gentileza, o telefone. É urgente. 

— Não senhor. Dona Rosa deu meia volta e correu para avisar aos outros moradores próximos...

— Mocinha, como é o seu nome?

— O meu?

— É.

— Tati.

— Muito bem, Tati. Lindo nome.

— Obrigada. Foi papai quem escolheu. Se fosse pela vontade de mamãe eu seria batizada Sara. 

— Quantos anos você tem, Sara?

— Eu? Cinco. E não é Sara, é Tati.

— Perdão, minha jovem. Tati. Legal. Nossa! A mim está dando a impressão de ser uma garotinha inteligente, criativa e extrovertida. Pretende ser o que quando crescer?

— Olha, seu Pedro, estou pensando em Física.

— Professora de educação...?

— Não, física mesmo. Gosto de estudar as coisas absurdas.

— Entendo! Minha linda, pegando o gancho desse assunto, acaso saberia me dizer, em poucas palavras, o que eu, particularmente, poderia deduzir dessa expressão “abduzida?”. Confesso minha criança, até agora, essa coisa toda é muito nova e desconhecida para mim...

— Saberia sim senhor. 

— Estou pasmo! Vá em frente. Sou todo ouvidos. O que é ser abduzida? 

— O senhor está fazendo hora com a minha cara. Parece até o tio Pequinês. Tio Pequinês não me leva a sério! 

— Quem é esse tio Pequinês?

— O irmão cachorro de meu pai.

Risos. 

— Tá bom. O que significa ser abduzida? Juro a você, minha curiosidade não é outro senão a de aprender, claro. Hoje em dia adquirimos conhecimento com os mais novos. Essa juventude tem futuro. 

— Tá bom. Pela sua conversa, seu Pedro, isso quer dizer que o senhor nunca foi abduzido! Acertei?

— Com todas as letras, minha princesa. O que é, afinal, ser abduzido ou como sua mãe abduzida? 

— Abduzida ou abduzido tanto faz. A ordem dos cavalos não altera a rotina das cocheiras. Abduzida ou abduzido é tudo aquilo que a física ainda não conseguiu responder. E nos engambela afirmando que abduzido é a mesmíssima coisa que ser raptada ou sequestrada.

— E não é? Não entendi. Poderia ser mais explícita?

— No caso da mamãe?

— No caso da sua mamãe.

— Então, seu Pedro, ela foi abduzida, e não raptada, nem sequestrada, quando saia agora cedo, por volta das oito horas, em direção à padaria. Em resumo, ser abduzida é ser levada do nosso planeta terra para outra dimensão. Nossa empregada está de folga hoje e ela resolveu ir às compras por sua conta e risco. Mamãe é muito apressada.

— Que loucura! Estou passado, Tati. Conte todos os detalhes.

— Segundo dona Rosa...

— Calma lá. Você falou nessa dona Rosa não tem dois minutos. Quem é dona Rosa? Sua empregada?

— Dona Rosa é a vizinha aqui do lado, dois portões abaixo do nosso... e a nossa empregada se chama Elzira. Hoje é folga dela. 

— Continue...

— Segundo dona Rosa, desceu uma nave espacial num campinho de futebol aqui pertinho, colada ao supermercado. O supermercado (não sei se o senhor conhece aqui onde a gente mora) fica uns duzentos metros, mais ou menos da padaria onde mamãe pretendia ir... 

— Não, não conheço. Só falei duas vezes com a sua mãe por telefone e umas quatro, via WhatsApp.

— Entendi. Como dizia, de dentro dessa geringonça saíram vários seres pequenininhos todos verdes. 

— Todos verdes?

— Sim senhor. Verde-musgo. E tinham anteninhas amarelinhas e compridas com bolinhas brancas no alto de suas cabeças. Pareciam os anõezinhos da Branca de Neve. O senhor se lembra dos anõezinhos da Branca de Neve, não lembra? 

— Mais ou menos. Mas deixa pra lá. Prossiga...

— Assim! Essas criaturinhas simplesmente chegaram, viram a mamãe na rua, sozinha e sem mais nem menos, sem nenhuma explicação, “botaram ela” pra dentro da tal espaçonave.

— Meu Deus! Que coisa! Inacreditável!... e depois?

— Depois, seu Pedro, quando a dona Rosa deu o alarme os tais seres verde-musgo acho que se assustaram. Nisso se apressaram (arrastando a mamãe pelos cabelos) e sumiram de vez.

— Su... sumiram de vez?

— Sim e nesse sumiço...

— Minha princesa desculpe interromper. De onde você tirou essa historinha fantasiosa? Da sua imaginação, suponho?

— Não tirei. Aconteceu...

— Agora cedo?

— Cedinho mesmo. Tem uns quinze ou vinte minutinhos. A rua aqui onde eu moro, virou, num piscar de olhos, uma feira livre. O bairro em peso está sem saber o que fazer. Todo mundo abalado e em polvorosa.

— Com a chegada da tal nave?

— Não, senhor. Com a levada à força e contra a vontade da mamãe por essa cambada vinda do espaço. Como disse, ela acabou de ser abduzida. Abduzida não raptada... ou sequestrada.  

— E seu pai? Cadê seu pai?

— Está trabalhando. Ia falar com a senhorita Norma do escritório dele avisando justamente na hora em que o senhor ligou. 

— Meu Deus, criança! Vamos por etapa. Calma. Respira. Conta até dez. Quem é a senhorita Norma?

— A senhorita Norma é a secretária de meu pai.  Quando dona Rosa me deu a notícia de mamãe, ia exatamente fazer isso. Ai então o telefone berrou. Saí aos tropeções da mesa, onde tomava meu café para atender. Era o senhor! Nem sei o que vou dizer a ele... 

— A ele? A ele quem?!

— Ao meu pai... 

— Não entendi.

— É que ele ainda não sabe.

— Tati, minha linda, o que ele, seu pai, ainda não sabe?

— O que eu disse ao senhor...

— Nossa, Tati, você me disse tantas coisas. Estou de queixo caído... tremendo... juro por Deus. Se pudesse me ver...

— Eu estou me referindo ao que lhe disse até agora de mais importante...

— OK! De mais importante?

— Sim senhor...

— E o que foi? Desculpe. Você me falou tanta coisa, me encheu de informações, contou uma novela, me enredou de tal forma... perdi o rumo. Não consegui digerir toda essa babel. É muita coisa pra minha cabeça...  

— Seu Pedro, eu estou me referindo, repetindo o que informei ainda agorinha. O que eu disse de mais importante. Aliás, disse isso (o mais importante), se não me engano, pela segunda vez.

— Tá legal, desculpe. Falha minha. O que foi mesmo?! Me deu um branco áspero. Viajei como diz meu filho, na maionese...

— Eu disse que a mamãe não está. A mamãe como falei há pouco, foi A B D U Z I D A...

Tati tão convincente se fez no que abordava na conversação entabulada, que dona Viviane Cardoso de Godoi (que a tudo assistia e ouvia, diga-se de passagem, incrédula e estupefata), teve um piripaque momentâneo. Emoção, talvez. Caiu desmaiada. A menina largou o fone fora do gancho, com o tal do Pedro das “bugigangas” falando à deriva, dependurado no vácuo da sua ausência e se precipitou porta da frente, se esgoelando, literalmente por dona Rosa. Dona Rosa, desta vez, chegou, de fato, carne e osso, com meia dúzia de vizinhos, num alvoroço medonho. Alguém (da tropa que a acompanhava) ligou para o marido de dona Viviane. O pai de Tati chegou escoltado do doutor Marcos Capiloto (médico da família), vinte e cinco minutos depois.   

Fonte:
Texto enviado pelo autor.