quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Batista de Lima (1949)

José Batista de Lima, nascido em Lavras da Mangabeira/CE (1949), embora pertença ao “grupo” da revista O Saco, pois seu primeiro livro, de poemas, é de 1977, passou a divulgar seus contos mais recentemente: O Pescador da Tabocal saiu em 1997 e Janeiro é Um Mês Que Não Sossega, em 2002. Seminarista no Crato, formou-se em Letras e Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará. Especializou-se em Teoria da Linguagem na Universidade de Fortaleza, onde exerceu a chefia do Departamento de Letras e a diretoria do Centro de Ciências Humanas. Cursou o mestrado em Literatura na Universidade Federal do Ceará. Iniciou-se como professor de Português em colégios de Fortaleza.  

Na vida literária deu os primeiros passos no Clube dos Poetas Cearenses. Mais tarde participou ativamente dos grupos Siriará, Arsenal, Catolé e Plural. Pertence à Academia Cearense de Letras, à Academia Cearense da Língua Portuguesa e à Academia Lavrense de Letras. Desde 2009, é conselheiro do Conselho Estadual de Educação. Publicou Poemas: Miranças (1977); Os Viventes da Serra Negra (1981); Engenho (1984); Janeiro da Encarnação (1995); O sol de cada coisa (2008); Tiborna (2014); Concerto para espantos (2015). Contos: O pescador de Tabocal (1997); Janeiro é um mês que não sossega (2002); Assim falou Sipaúbas (2019). Ensaio: Os vazios repletos (1993); Moreira Campos, a escritura da ordem e da desordem (1993); O fio e a meada (2000); Uma casa toda mãe (2022).

Sua fortuna crítica está reunida no livro Pele e Abismo na Escritura de Batista de Lima (Fortaleza, Unifor, 2006), organizado por Nilto Maciel.

A presença do poeta é visível em muitas histórias. O ensaísta talvez se mostre quando a narrativa se aproxima da crônica social e política.

Batista de Lima apresenta os contos quase sempre em diversas ações, isto é, em diversos tempos e lugares. Em “Os Cavaleiros da Lua”, que oferece características de lenda, vemos: “Deu-se que Adamastor parou de respirar, porque morrer mesmo ela já havia morrido desde que voltara do seringal.” A linguagem, porém, é sempre poética e muito particular.

Ora em Tabocal, ora em Sipaúbas, é nesses lugarejos do sertão cearense que as personagens se movimentam, nascem, vivem e morrem. O sertão é pintado sem exageros de descrição. Há somente referências a objetos, situações, seres, como parte do cenário ou das vidas dos personagens: tapiocas, esterco de vaca, cuia de leite mungido, pé de muçambê, palhoça à beira do açude, vagens de feijão, queijo de cabras, coité. Nada de descrições inúteis ou excessivas.

Os personagens de Batista são homens e mulheres do sertão ou das cidades pequenas, até mesmo aqueles já desaparecidos, já tornados mitos, como Lampião. Alguns desses personagens, sempre secundários, se repetem em diversas histórias: padre Inácio é “habilidoso” em “A Festa de Janeiro”, aparece “já velho e ocupado com o rebanho em Cristo, de Tabocal”, em “O Pícaro”; Coronel Nicodemos, ou Demo, é o mandão do lugar, Tabocal; Dona Bilinha, mulher do coronel; major Apolônio; padre Otávio, Cabo Zezinho; e outros. Isto dá aos livros de Batista certa unidade, embora os dramas não se misturem, não se confundam.

Muitos dos personagens Batistianos têm características próprias - são caracteres. Como Maria Raimunda, a vendedora de abelhas (“As abelhas”). Ou como os padres, coronéis, doutores, fabricantes de cachaça, valentões, afinadores de violões, coveiros e até animais. A presença de cobras, cachorros e gatos é frequente na obra de Batista de Lima: em “O Lobisomem de Tabocal” o bicho “veio dos lados do cemitério, já trazendo uma porção de cachorros latindo desesperados.” Dona Margarida, na história de título homônimo, herda do terceiro marido alguns cachorros. Em “Bonifácio bom de fala” vê-se “um amontoado de cachorros”. Em “A botija” há também a presença desses animais. Há até um conto de gatos, que passam a dominar a casa de Macário (“Os gatos”).

O universo de Batista de Lima é habitado por criaturas às vezes picarescas, mas sempre muito reais. O narrador-escritor ou o narrador-onisciente atua como um memorialista muito cioso da verdade dos fatos ou um repórter astuto. Em vista disso, aqui e ali o leitor perceberá na narrativa o tom da crônica, como em “O Hospital Fantasma” e “O saque a Sipaúbas”. Neste a problemática da seca é o drama central: “Os sipaubenses comiam calango, miolo de mandacaru, carne de urubu, mas resistiam.” Na mesma linha está “Os sobreviventes”.

Alguns dos personagens de Batista são caricaturas, como Manilton, cheio de manias. Outros, como Macário, têm desenhado o comportamento ou o caráter e não tanto a fisionomia ou a aparência. Em vista disso, muitas histórias são de personagem. Malaquias, de “O póstumo”, por exemplo, “era morto de preguiça.” O conto de personagem é o mais frequente na obra de Batista. Muitos têm por título o nome ou o apelido do protagonista (“Carmina”, “Banana”); outros, a condição física, social (“O velho”, “O delegado”, “O insepulto”).

O tempo em Batista de Lima é dilatado. As ações de um mesmo drama são narradas de forma sucinta, ligadas uma a outra, porém entre uma e outra o tempo é de dias, meses, anos. Em “O Pícaro” no primeiro parágrafo Dona Bilinha “estava sentindo as primeiras dores do primeiro parto”. No segundo parágrafo o rebento, Caetano, “foi dado para criar ao Pe. Inácio”. No outro, o menino já crescido, bebia o vinho, comia as hóstias e roubava o dinheiro da coleta da igreja. Mais adiante, aos doze anos, virou lavador de pratos e limpador de banheiro em um bar. Mais adiante, tornou-se guia de cego. Termina sargento e provável candidato a prefeito. Em “O Afinador de Violões” a vida do protagonista daria um romance, como diz o povo. A história tem começo como muitas narrativas populares: “Naquele tempo”. A seguir o afinador de violões “tornou-se cassaco”. As referências ao passar do tempo são frequentes na narrativa: “Dias depois”, “O afinador começou a afinar-se de carnes”, “voltou para a companhia da mãe”, “Os anos se passaram”, “Foram anos e anos de afinação”, “Certa feita”, “Uma noite de agosto”. Essa variedade de ações/tempos está presente em muitos outros contos, como um recurso de linguagem utilizado com insistência.

Batista não se atém ao instante, ao flash, ao momento de tensão da trama. Importa a ele o ritmo do calendário, o passar do tempo. Em “Julho é um mês que não tem fim” o próprio título é significativo. Todo o passado do lugarejo é “revivido” como num sonho. Os mortos revivem suas façanhas. (…) “a noite continuou por dias e anos transfigurados. Muitas moagens e histórias se repetiram no pequeno espaço de horas.” Em “Dona Margarida” o mesmo processo: “em outros tempos”, “uns foram embora”, “de tempos em tempos”, “já enterrara dois maridos”, “chegou a festa do padroeiro”, “depois de alguns anos”.

Há dois tipos de contos nos dois livros de Batista de Lima: as histórias do sertão e as narrativas poéticas, quase poemas em prosa, como “Vertigem” e “A pedra”. Nestes a ausência de trama e de personagens chama a atenção do leitor. Às vezes há personagens, como em “O eremita”. São personagens-símbolo: Deus e Canlima, o eremita. Em “O capote” a protagonista Marta é uma menina. E tudo gira em torno de sua amizade com um capote, isto é, galinha d’angola. A narrativa se desenrola com suavidade e poesia até o desfecho, quando Marta se sente adolescente, “o capote já velho”: “Certa feita, depois de algum tempo,” o capote “amanheceu morto.” A menina “não derramou sequer uma lágrima. Andava muito entretida em se arrumar, ultimamente.” Vê-se também o fantástico ou o fantasioso em algumas narrativas, como “O encontro” e “Projeção”. Esses contos geralmente não se localizam no campo, no sertão, constituindo, pois, uma minoria no conjunto das histórias.

O conto sem enredo, de personagens sem nome, também compõe a obra de Batista, como “O cordeiro”. Algumas dessas peças podem ser denominadas parábolas, como “A Carta”. E o que dizer de uma história cujo personagem principal é a morte? Em “Lindolhar” o protagonista se vê “perseguido” ou “olhado” pela morte: (…) “ela estava no último galho da árvore”, como se fosse uma coruja. “Ela estava lá, antiga como a noite, afinando as garras para o bote”, como uma cobra.

E como o contista arranja os desenlaces de suas narrativas? Muitas vezes o desfecho é a morte do protagonista, como em “Luizão”, “O Lobisomem de Tabocal”, “O Afinador de Violões”. Em outros contos, no entanto, nada de tragédia no desenlace. Em “Os Enganos das Aparências” o suposto machão soldado Viriato, “só músculos”, o “gigante”, é flagrado em banho com negro Terto no banheiro de Dona Maroca. “Naquela mesma noite” “desapareceu pelos fundos da pensão”, “levando nas costas a mala de roupas e de surpreendentes mistérios.” Esse tipo de humor contido está presente em diversas narrativas, como “O Herói que não Retorna”, “Manilton”, “Os Azares do Aspirante”. Desfecho com humor se vê também em “O falso crime do Padre Arnaldo”. Talvez não tanto com humor é o desenlace de “Os gatos”.

Batista utiliza sempre a narração como forma básica de contar as suas histórias. Não há diálogos explícitos, diretos. E isto se dá tanto do ponto de vista onisciente como da primeira pessoa. As narrativas são constituídas basicamente de narrações, com raríssimas descrições e falas em discurso indireto.

Batista de Lima também cultiva o miniconto, embora os outros não sejam longos. Uns poucos alcançam mais de três páginas de livro, como “Janeiro é um mês que não termina”. Quanto mais reduzido, mais o conto tende a se afastar da forma tradicional. O miniconto às vezes se aproxima do poema. É o que se vê em Batista. É o poeta dando a mão ao narrador ou ao prosador. E ambos caminhando de cabeça erguida, certos de estarem cumprindo suas missões no vasto mundo das letras.

Fontes: - MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008. Enviado pelo autor.
– Soares Feitosa e Nilto Maciel. Jornal do Conto; 
– Academia Cearense de Letras.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capitulo 23: Questionamentos, Amor e Maçãs

Isadora, belamente vestida com um esvoaçante vestido branco, sentada debaixo de seu Ipê amarelo que ficava ao lado da casa, admirando as borboletas que bailavam ao seu redor, se perdeu em reflexões sobre os paradoxos da vida...

“A vida é uma mulher cujo essência chama-se mistério. Ela é poderosa, simples, e ao mesmo tempo, caprichosa... Em meio a belos jardins, de flores e doces frutos, surgem serpentes, e o sonho da existência, de repente, vira pesadelo. E nos força a viver de apelos, campanhas por dias melhores..." 

Mas todos os dias deveriam ser bons. Caso contrário, qual seria o sentido dos desejos que brotam espontaneamente dentro da gente, assim, inocentemente, quase sem querer? Mas o ser humano é parte de tudo isso. Fruto extraído dessa mulher poderosa. Ela é esposa de Deus. Sim, porque Ele é masculino. E suas feições não são encontradas nas pétalas das flores, todavia, o espírito das feições femininas existentes no mundo é sua companheira de missão.    

Ai, esses pensamentos que me vêm não sei de onde, descoordenadamente me perturbam. Será que sou louca? Não. Não sou. Os loucos não possuem consciência de suas insanidades mentais. Mas minha alma precisa entender o porquê do bem e do mal. Se o bem fala sobre o que é certo, por que tenho que deixar o amor verdadeiro para unir-me ao amor que é de mentira? 

Nesse momento, seus questionamentos são interrompidos pela voz amorosa de Genuíno:

- Isadora...

Ela se move com agilidade olhando para trás.

- O que fazes aqui? 

- Desculpa, prenda! Tinha que te ver. Ficamos de dar continuidade à nossa conversa.

- Sim. Mas não aqui...

- Se ofereço riscos à tua paz, posso ir embora. 

- Não. Só as mulheres estão em casa. Senta aqui comigo.

Eles ficam frente a frente, e antes que a coragem se esvaísse de suas veias, Isadora disparou:

- Vou me casar com outro.

- Mentira - disse Genuíno meio sem saber o que pensar...

- Verdade. Tenho um noivo. Não o amo, mas infelizmente sou obrigada a casar com ele. 

- Por quê? O que posso fazer para livrar-te dessa situação sem sentido? 

- Nada.

- O que te prende a essa pessoa? 

Isadora faz as revelações e, aos prantos, eles se abraçam. 

Depois de um longo abraço, e de deixarem, o pranto rolar, trocam um beijo cheio de sentimentos... 

Num impulso Genuíno puxou Isadora pela mão.

- Onde vamos? - perguntou ela.

- Vamos terminar o que iniciamos debaixo daquele doce pé de macieira. 

- Queria eu, ser um homem branco, fazendeiro, para livrar-te desta situação – disse ele acariciando a face de sua amada, olhando profundamente em seus olhos ao retornarem ao local do primeiro encontro.

- Tu és perfeito. Um sonho de ser humano.

- Tu que és uma flor de perfeição. Estás a fazer um grande sacrifício por honra e amor à tua mãe. Isso é muito nobre. 

- Eu te amo tanto...

- Eu também. E já que não podemos ficar juntos, quero te amar pelo menos uma vez para levar junto de mim a lembrança de teus carinhos, de teu sabor, de teu perfume...

- Sinto o mesmo desejo, mas temo, sem querer, estar me comportando de forma desonrosa como meu pai.

- Não há desonra alguma em se entregar por amor. Teu pai, sim, desonra, não apenas a família, mas todas as outras mulheres que são usadas por ele. Não sinta raiva delas. Elas também são vítimas de uma sociedade hipócrita. E em sua maioria, não são felizes. Nem teu corpo nem tua alma pertencerão a esse tal de Fábio. Somos um do outro. Para sempre...

A natureza, protetora dos amantes, preparou o cenário para que o amor pudesse acontecer... 

O entardecer se aproximou de mansinho pintando um céu de horizonte rosado e fundo vermelho paixão! Vermelho coração... 

Com elegância, o sol se debruçou sobre a terra reverenciando e consagrando o amor daquele casal perfeito. Os pássaros não querendo atrapalhar, se recolherem em seus ninhos. E assim, em meio a toda aquela beleza, sentindo o cheiro das maçãs, Genuíno e Isadora, sem medos, sem preconceitos, sem pensar no depois, se entregaram ao amor... 
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continua…

Fonte: Texto enviado pela autora

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Filemon Martins (Aquarela de Trovas) 26

 

Mensagem na Garrafa – 48 -


Machado de Assis
(Joaquim Maria Machado de Assis)
Rio de Janeiro/RJ,  1839 - 1908

UM ANJO

(À Memória de minha irmã)

FOSTE A ROSA desfolhada
Na urna da eternidade
Pr'a sorrir mais animada,
Mais bela, mais perfumada
Lá na etérea imensidade.

Rasgaste o manto da vida,
E anjo subiste ao céu
Como a flor enlanguecida
E pouco a pouco morreu!
Que o vento pô-la caída

Tu'alma foi um perfume
Erguido ao sólio divino;
Levada ao celeste cume
C'os Anjos oraste ao Nume
Nas harmonias dum hino.

Alheia ao mundo devasso,
Passaste a vida sorrindo;
Derribou-te, ó ave, um braço,
Mas abrindo asas no espaço
Ao céu voaste, anjo lindo.

Esse invólucro mundano
Trocaste por outro véu;
Deste negro pego insano
Não sofreste o menor dano
Que tu'alma era do Céu.

Foste a rosa desfolhada
Na urna da eternidade
Pra sorrir mais animada
Mais bela, mais perfumada
Lá na etérea imensidade.

Milton S. Souza (Banho de espuma)

Amanhecia, mas ainda estava escuro. Nenhum vento. A calmaria era total na beira do mar naquela manhã de março. O sol, preguiçosamente, banhava seu rosto no horizonte sem ondas. E as ondas calmas vinham, em procissão, beijar meus pés semi-enterrados na areia molhada, como que querendo saudar o raro veranista naquela solidão de pós-verão. Foi então que avistei, ao lado de uma grande pedra, um verdadeiro colchão de espumas. O mar, durante a noite, por certo, deveria ter depositado carinhosamente aquela espuma na beira da praia, bem assim como a insônia, que me fizera sair a caminhar tão cedo, depositara uma grande quantidade de saudade tua no meu coração. 

Com os pés, comecei a abrir sulcos na espuma. Sem querer querendo, terminei escrevendo o teu nome, deixando as letras marcadas na areia, cercada de espuma. A primeira estrela da manhã chegou mais perto para ler o meu poema-espuma. Seus raios cintilaram nas gotas brilhantes, tingindo de prata aquele nome que um sonho quase impossível havia gravado, bem forte, no meu coração.

Sentei na pedra molhada e tentei desenhar mentalmente, na neblina da manhã, o teu rosto que tanto me fascina. Uma gaivota passou voando, atravessando com suas asas brancas o teu sorriso imaginário. Uma leve brisa começou a soprar quando a saudade quis brincar de transformar em lágrimas o nó que eu trazia preso na garganta. Aos poucos, o vento foi ficando mais forte, fazendo a espuma voar e despedaçando as letras do teu nome. Os flocos de espuma subiram no ar e foram se chocar contra o meu rosto e com meu corpo semi-despido. Em poucos segundos, meus ombros e meus braços nus ficaram tomados por pedaços de espuma gelada. A gaivota voltou, piando alto, como que zombando dos soluços que brotavam de dentro de mim.

Chorei naquele exato momento, porque entendi a mensagem que a natureza estava me passando. Entendi que o sentimento que eu sinto por ti é do tamanho daquele mar que, calmo ou violento, não para nunca de se agitar, exatamente como o meu coração. Entendi também que o aquilo que sentias por mim era como a espuma que esvoaçava: algo frágil, inconstante e facilmente levado pelo vento da tua vontade para qualquer lado. Talvez por isso, tantas vezes, inventavas desvios para teus passos não cruzarem com os meus. Outras vezes, porém, parecendo querer brincar comigo, atiçavas perigosamente o fogo que ardia dentro de mim.

O sol até resolveu despontar mais rápido, quando sentiu as lágrimas deslizando pelo meu rosto. Carinhosamente, fez com que seus raios deslizassem até mim, secando com o seu calor as minha lágrimas salgadas. O mar, avançando rapidamente, destroçou o resto das espumas que ainda mantinham alguns pedaços das letras do teu nome. E, depois, voltou a beijar levemente os meus pés, completando aquele conforto que eu estava necessitando. Não sei por quanto tempo fiquei fazendo parte daquele belo quadro composto por Deus. Só sei que, aos poucos, fui me acalmando e fazendo aquela saudade doída voar ao lado daquela gaivota errante. Lentamente, segui caminhando pela beira do mar, mas sempre mantendo os olhos presos no horizonte, na esperança inútil de ver o teu vulto surgindo, como numa miragem, naquela faixa de areia tingida de dourado pela luz do sol…

Fonte: Recanto das Letras do autor
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/68473

Caldeirão Poético LXXIII


Nilo Aparecida Pinto
Caratinga/MG, 1915-1974, Rio de Janeiro/RJ

CASA GRANDE

A Casa Grande, na fazenda, eu via
abrindo ao sol, com modos patriarcais,
o alpendre, onde meu pai lia e relia
"A Morgadinha dos Canaviais"...

Ficava ao pé da serra, em que eu ouvia,
naqueles dias calmos e rurais,
a cachoeira que, a saltar, gemia,
como eu a dor do que não volta mais.

Meu pai envelheceu. Desfez-se a casa.
Nem ele mais sua bondade expande,
porque a morte o levou, num rufio de asa...

Mas, se o procuro — o seu amor me atrai —,
parece ainda maior que a Casa Grande
a sepultura estreita de meu pai!…
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Nilo Bruzzi
Pomba/MG, 1879 – 1978, Rio de Janeiro/RJ

A VOZ AMIGA

— “Tu que passaste a vida sem roseiras
que dessem flores para perfumá-la;
tu que tiveste sombras agoureiras
que emudeceram sempre a tua fala;

tu que desceste mudo as cordilheiras
de teu sonho — gigante cor de opala;
que sozinho choraste horas inteiras
por entre a pompa, a graça, o brilho, a gala;

toma o meu braço carinhoso e amigo
e caminhemos com tranquilidade,
toma o meu braço e eu morrerei contigo...”

— Parei diante da sombra triste e esguia...
Era a voz compassiva da Saudade
que estas palavras mansas me dizia...
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Octávio Venturelli
Rio de Janeiro/RJ, 1937 – 2019

MINHA LEI

Venho de Zambi, Pai Onipotente,
e de Oxalá, o Rei maior da Umbanda,
e de meu Pai Xangô, do sol nascente,
da pedreira, e dos raios que comanda.

Sou filho dessa Oxum bela e potente,
faz do amor as armas da demanda.
Senhora universal da água corrente
sentada está no trono de Aruanda!

Para seguir tranquilo a minha estrada,
levo também a proteção firmada
da Orixá do trovão, lansã querida.

A todos querer bem é minha sorte!
E assim eu hei de ser até que a morte
venha mostrar-me o rumo de outra vida...
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Osório Dutra
Vassouras/RJ, 1889 – 1968

TAPIR SELVAGEM

Deve correr dentro das minhas veias
o sangue puro de um tapir selvagem:
amo a tranquilidade das aldeias
e a música do vento na ramagem.

Indiferente às intenções alheias,
bebo a luz policroma da paisagem,
e durmo sobre a colcha das areias,
tendo a lua, que sonha, por miragem.

Bendito seja este rincão fecundo,
que põe, assim, dentro de cada planta,
toda a harmonia de um pequeno mundo!

Sei que sou rude. A minha voz espanta,
mas o meu coração guarda no fundo
a doçura de um córrego que canta.
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Palmira Wanderley de França
Natal/RN, 1894 – 1978

PITANGUEIRA

Termina Agosto... A pitangueira flora...
A umbela verde cobre-se de alvura;
e, antes que de Setembro finde a aurora,
enrubesce a pitanga... Está madura.

Da flor, o fruto é de esmeralda, agora...
Num topázio, depois, se transfigura,
e, pouco a pouco, um sol de estio a cora,
dando a cor dos rubis à carnadura.

A pele é fina, a carne é veludosa,
vermelha como o sangue, perfumosa
como se humana a sua carne fosse...

Do fruto, às vezes, roxo como o aspargo,
a polpa tem um travo doce-amargo,
— o sabor da Saudade, amargo e doce...
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Rodrigues Crespo
Campos/RJ, 1896 –  1976, Belo Horizonte/MG

A INCÓGNITA DO SER

Viver, ou não viver? Que mais importa?
Que tem por fim a vida? A própria vida?
Entramos, ao nascer, por uma porta,
e só na morte achamos a saída...

Viver só por viver não nos conforta.
Falta-nos uma causa mais subida.
Mas, o que fica da carcaça morta?
Restará algo da expressão perdida?

Consola-nos a hipótese da alma.
Mas, por que sobrevive? Por que existe?
Só tem por meta uma existência calma?

Corpo ou alma, afinal, em que consiste
sua razão de ser? E sua palma?
Ah! Como a vida, na incerteza, é triste!

Fonte: Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Contos das Mil e Uma Noites (O Belo adolescente triste)

Fica sabendo, ó meu irmão, que eu também sou filho de rei, e minha história é tão incomum que se fosse escrita com uma agulha no canto interno dos olhos serviria de lição a toda pessoa que gosta de se auto aperfeiçoar. 

Nasci na terra de Kabul onde meu pai, Tigamos, é rei. Ao mesmo tempo poderoso e justo, ele tem sob sua suserania sete reis tributários. Desde a minha infância, meu pai cuidou que fosse instruído nas ciências, nas artes e nos esportes, de maneira que aos quinze anos já era considerado um dos cavalheiros mais finos do reino. Dirigia as caçadas e as corridas, sentado no meu cavalo, mais veloz que um antílope. 

Certo dia, durante uma caçada, ao crepúsculo, vi a poucos passos uma gazela airosa que, ao me ver, fugiu como uma flecha. Segui-a com meus sete mamelucos até que chegamos a um rio caudaloso onde esperávamos acuá-la e prendê-la. Ela, porém, se jogou no rio e nadou com velocidade até a outra margem. Apeamos sem demora, confiamos nossos cavalos a um dos mamelucos, saltamos num barco de pescar que estava lá e fomos em perseguição à gazela. Mal atingimos o meio do rio, perdemos o comando da embarcação e fomos levados pela correnteza. Passamos assim aquela noite e o dia seguinte, incapazes de controlar a violência da água e do vento, receosos, a cada minuto, de bater contra alguma rocha e morrer afogados. 

Foi só na manhã do segundo dia que conseguimos desembarcar numa terra coberta de árvores e atravessada por um córrego. Mas um homem refrescava os pés no córrego. Quando nos viu, pulou, e seu corpo dividiu-se em dois na altura da cintura. Somente a metade superior veio a nós. De repente, de todos os cantos do jardim, apareceram outros homens iguais a ele.

Jogaram-se sobre três mamelucos e começaram a comê-los vivos. Eu e os três outros pulamos no barco, preferindo ser engolidos pela água do que por aqueles monstros. Dois dias depois, desembarcamos novamente numa terra coberta de árvores frutíferas e flores aromáticas. Percorrendo este novo asilo, chegamos a um palácio vazio, com pavilhões de cristal. Entramos. 

Na sala principal, havia um trono de ouro. Sentei-me nele. Mas logo ouvimos um barulho parecido com o tumulto do oceano e vimos uma procissão entrar no palácio, composta de emires, vizires e outros notáveis, todos eles macacos. Uns eram anões; outros, gigantes. O vizir, um macaco de estatura enorme, veio até mim, inclinou-se respeitosamente e informou me, numa voz humana, que seu povo me reconhecia como rei e meus três mamelucos como comandantes do exército. Informou-nos também que estavam prestes a atacar seus vizinhos e inimigos, os Ghuls. Não tínhamos escolha. Montamos em três cães enormes que nos trouxeram e encabeçamos a marcha das forças armadas. E chegamos logo à terra dos Ghuls, os seres mais horrendos que já vira. Alguns tinham cabeças de touro e corpos de camelo. Outros eram como hienas. Outros tinham formas tão estranhas que não se assemelhavam a nada que conhecêssemos. 

Quando os Ghuls nos viram, arremessaram sobre nós uma chuva de pedras, às quais nosso campo respondeu da mesma forma numa batalha terrível. Eu e meus mamelucos usamos nossos arcos e matamos muitos Ghuls, o que nos assegurou a vitória e encantou meus novos vassalos. Incompreensivelmente, esses vassalos me abandonaram após a vitória. E, montado no meu cão, recomecei a errar naquela terra desconhecida.

Um dia, cheguei à cidade dos judeus, que viviam lá desde o tempo de Soleiman. Ao entrar, ouvi um pregoeiro gritar: “Quem quiser ganhar mil libras de ouro e uma jovem escrava, trabalhando apenas uma hora, que me siga.” Segui-o. Na realidade, era o único a segui-lo. Levou-me a um velho judeu que me recebeu com muita simpatia, deu-me um saco contendo mil peças de ouro e me apresentou a uma jovem de grande beleza. - Fica com ela três dias e três noites, disse-me. Depois, irás fazer o trabalho pelo qual estás sendo pago. 

A moça era virgem. Passei com ela as únicas horas felizes de minha vida. No terceiro dia, o velho judeu deu-me uma mula e uma faca e disse-me: “Mata esta mula e separa-lhe a pele do corpo.” Obedeci. Então, disse-me: “Deita sobre esta pele e junta-a em volta de teu corpo. Um abutre gigante vai levar-te no seu bico até o cume de uma montanha. Deixa-te levar sem esboçar um movimento - senão serás morto na hora.”

No alto da montanha para onde o abutre me levou, encontrei um palácio suntuoso e alguém esperando por mim na porta. “Descansa e diverte-te neste palácio, entrando nos aposentos que quiseres com uma única exceção: o aposento que abre com esta chave de ouro,” disse-me o homem. E partiu. 

Passei dias naquele palácio vazio, lutando contra a tentação de abrir a porta proibida. No fim, minha curiosidade prevaleceu. Abri a porta proibida. Havia lá uma piscina e quatro moças nuas tomando banho, como se quatro luas se estivessem refletindo na água. Apaixonei-me por uma delas, denominada Chams, Sol. Esperei até que estivessem todas dentro da piscina e, correndo mais rapidamente que a luz, apanhei a roupa da jovem que amava. Disse-me: “Adolescente bonito, como ousas apoderar-te do que não te pertence?” 

Respondi: “Minha pomba, sai da água e vem falar comigo.” 

Respondeu com suavidade: “Luz de meus olhos, se fizer o que me pedes, estarei plantando uma faca no meu próprio coração.”

Assim mesmo, consegui pegá-la e levá-la até o trono de rubi que estava lá. Vendo que não poderia escapar, cedeu a meus desejos e, pondo seus braços em volta de meu pescoço, deu-me beijo por beijo e carinho por carinho, enquanto suas irmãs sorriam para nós e vigiavam para que não fôssemos surpreendidos.

Momentos depois, meu velho protetor abriu a porta e entrou. Levantamo-nos em sua homenagem. E ele dirigiu a cada um de nós dois palavras carinhosas e incentivou-nos a nos casar, dizendo a Chams: “Minha filha, este moço que te adora é de ilustre linhagem. Seu pai é um rei. Farás bem em aceitá-lo por esposo e eu persuadirei teu pai, rei Nasr, a abençoar-vos.” 

- Ouço e obedeço, disse a moça. 

No dia seguinte, apresentou-me ao pai, o rei Nasr, dono dos gênios, o qual me abraçou e ordenou grandes festas para celebrar o casamento. Mandou também confeccionar um trono tão vasto que, nos seus degraus, podiam ficar em pé duzentos gênios machos e duzentos gênios fêmeas. Sabendo que meus pais estavam ansiosos por minha volta, mandou um exército inteiro de gênios levantar o trono em que minha mulher e eu estávamos sentados e carregá-lo através do espaço até o palácio de meu pai em Kabul. 

A viagem, que leva normalmente dois anos, foi feita em dois dias. Meus pais regozijaram-se e celebraram minha volta e meu casamento com festas mais suntuosas que tudo que tinha sido visto até então. No fim do ano, que passou como uma primavera, minha mulher quis rever seu pai e mãe. Concordei alegremente; mas, para minha infelicidade, foi uma viagem azarenta. Subimos em nosso trono e nossos Afarit carregaram-nos. 

Viajávamos de dia e descansávamos de noite. Uma noite, Chams quis tomar banho num belo rio onde paramos. Tentei dissuadi-la, mas insistiu. Estava no meio da água com suas escravas como a lua no meio das estrelas quando lançou um grito lancinante e caiu morta. Uma serpente das águas, particularmente venenosa, a mordera no calcanhar. Vendo Chams morta, desmaiei. E fiquei tanto tempo desmaiado que julgaram-me morto. Mas, ai de mim, eu devia sobreviver à minha amada para chorá-la e construir-lhe o túmulo que vês. 

Quanto a esse  segundo túmulo, é o meu próprio. Aqui vivo, chorando e rememorando com nostalgia os anos que passamos juntos enquanto se esgota o tempo insuportável que me separa do dia em que dormirei para sempre ao lado de Chams, longe do reino a que renunciei, longe do deserto deste mundo. 

Nasceste de barro e viraste  homem. E aprendeste a retórica e as ciências. Depois, morreste e voltaste à terra como se tivesses sido sempre barro.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Adega de Versos 116: Washington Daniel Gorosito Pérez

 

Mensagem na Garrafa – 47 -


Vinicius de Moraes
(Marcus Vinicius da Cruz de Melo Moraes)
Rio de Janeiro/RJ, 1913 - 1980

O bom pastor

Amo andar pelas tardes sem som, brandas, maravilhosas
Com riscos de andorinhas pelo céu.
Amo ir solitário pelos caminhos
Olhando a tarde parada no tempo
Parada no céu como um pássaro em voo
E que vem de asas largas se abatendo.
Amo desvendar a vaga penumbra que desce
Amo sentir o ar sem movimento, a luz sem vida
Tudo interiorizado, tudo paralisado na oração calma…
Amo andar nessas tardes…
Sinto-me penetrando o sereno vazio de tudo
Como um raio de luz.
Cresço, projeto-me ao infinito, agitando
Para consolar as árvores angustiadas
E acalmar os pinheiros moribundos.
Desço aos vales como uma sombra de montanha
Buscando poesia nos rios parados.
Sou como o bom-pastor da natureza
Que recolhe a alma do seu rebanho
No agasalho da sua alma…E amo voltar
Quando tudo não é mais que uma saudade
Do momento suspenso que foi…
Amo voltar quando a noite palpita
Nas primeiras estrelas claras…
Amo vir com a aragem que começa a descer das montanhas
Trazendo cheiros agrestes de selva…
E pelos caminhos já percorridos, voltando com a noite
Amo sonhar…

Geraldo Pereira (Uma Sereia no Timbó)

 
Aqui, às margens do Timbó, onde as águas do rio se entregam à enormidade maternal dos mares, a madrugada pariu o dia e a manhã ganhou os ares nos braços do astro que é rei, depois a tarde embalou a noite, trazendo outra vez a negritude das trevas. E a noite se foi, parindo outro dia! Eis a metamorfose do tempo! 

Um pescador muito velho, de barbas longas e brancas, tomou a jangada bem usada e se fez ao mar, jogando, seguidamente, a rede, de cujo conteúdo há de alimentar a família. Outro, pisando as areias cálidas da praia, tão alvas quanto a pureza do lírio, de tarrafa à mão, reunia no samburá já surrado as espécimes que podia, de tainhas fresquinhas, fresquinhas. 

O forasteiro, sentado ao largo, vestido à moda urbana, de camiseta estilizada, com inscrição posta na língua lá de fora e de sandálias cobrindo os pés, assistia a tudo isso. Via as mudanças e as transformações, qual observador do cotidiano, anotando vivências e convivências, com as águas sobretudo. Nos dedos contou os barcos e passou de dez nesse exercício, contabilizou gente que ia adentrando as águas, cumprindo o desiderato milenar de buscar nessas intimidades o pão de cada dia. Aceitou o cumprimento respeitoso do caçador de lagostas, de ferro afiado pendendo do indicador e com o apetrecho destinado à sua própria flutuação: “Bom Dia!” E o imaginário soltou-se, libertou-se das amarras que a intelectualidade pode trazer, para rever o tudo e o todo, dali e de fora, do presente e do passado, permitindo-se indagações sobre o futuro.

Como era diferente ele – o forasteiro –, daquele povo simples e aparentemente sem complexos e sem neuroses que por ali passava, livre das injunções sociais, de preceitos e de preconceitos! Ficou filosofando assim ou matutando apenas, sentado como estava, mantendo a sua condição de invasor daquele ambiente tão sagrado e tão puro. Com o calor da manhã e com o sol a pino, viu as lanchas sofisticadas roubarem as águas alheias, provocando ondas no mar, querendo repetir espumas que na beira da praia beijam as areias, deixando telúricos ósculos. 

Assistiu o desfilar de outros forasteiros, veranistas também, de coloridos trajes, falantes e desinibidos, com intenções modernas de relax e de outras práticas. Furtam, na verdade, os ares que desses nativos sempre foram!

Passaram e sujaram, fizeram de seus luxos os lixos daquele canto, um recanto, ainda, das reflexões de Deus. Vieram das paragens sulinas, a tirar pelo sotaque de todos e pelas conversas que vão fiando, trouxeram a fadiga internalizada na bagagem e largaram por cá esses restos de civilização, contaminando o tempo e maculando o espaço. Promoveram no povo daqui mudanças de hábitos, desusados dantes. Pescadores transformados em guias de turismo, carregando pra lá e pra cá gente de fora, em passeios à Ilha de Itamaracá ou à Coroa do Avião. Homens mais velhos com os barcos ancorados, oferecendo passeios, à prainha dizem, seduzindo os outros, como se faz na cidade.

Mas, é do mister de quem observa, anota e vai se permitir a criação do texto, no transbordar do coração diante da inspiração, como agora, madrugada quase de um sábado, aproveitar-se de um cumprimento e fiar conversa, de logo. Como estava o movimento de turistas mandados de São Paulo e do Rio, de outros lugares também? Ruim, respondeu o homem, pescador por profissão e guia por precisão! Depois que fechou o hotel, fugiram daqui os viajantes, foram parar noutros lugares, explicou, justificando! E ficamos a ver navios, disse, fazendo metáfora com as coisas do mar. Tocou a falar de suas experiências, depois que a civilização aportou nessas bandas e o simplesmente nativo foi se adaptando ao inteiramente novo, uma figuração do desenvolvimento emergente. Vira de um tudo por cá, do comum ao inusitado, gente que vai chegando e se deslumbrando com a paisagem do mar, cujo horizonte beija as águas ou com a beleza do coqueiral, no balanço mais do que cadenciado das folhas, ao sabor lúdico dos ventos de janeiro. O coqueiro é a árvore do adeus, as suas palhas se despedem, o tempo todo, do viandante que se vai, entrando nas águas em direção às funduras do mar! 

E o que mais lhe impressionara  nesse tempo das novidades? Confessou, então, a sua perplexidade quando nas águas do rio Timbó viu, depois de trinta anos se pouco, a sereia de seus devaneios e de seus sonhos emergindo, sorrindo para o mundo. Não se falaram, complementou, porque perderam a intimidade, sem precisar aludir a Fernando Veríssimo, mas filosofando à sua maneira!

Entreolharam-se, somente, nada mais!

E para findar a crônica no melhor dos estilos, passou Vando, que da peixaria é o dono, esquipando no alazão tupiniquim, manga-larga da periferia, deixando um dourado aqui e outro ali, um serra para o irmão Getúlio e uma cioba para o escriba. E para Capiba, conterrâneo de Surubim, a prece a Maria Betânia, entoada sob a sonoridade das ondas! E Beto da Goiabeira, que do frágil arbusto caiu em seu primeiro alumbramento, sem invocar o poeta do rio das capivaras, aprendeu de Bandeira os versos cantados na Várzea, dos encantamentos primeiros!

Fonte: Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

Contos e Lendas da África (Por que os bodes são animais domésticos?)

Personagens

Tomba-Ya-Taba (bode)
Etoli — (camundongo)
Vyâdu — (antílope)
Njâ (leopardo)
Ko (rato silvestre)
Njâku (elefante)
Homem
Nyati (boi)

O Bode vivia com sua mãe na aldeia. Um dia ele disse:

— Consegui uma poção que me fará vencer qualquer luta. Ninguém será capaz de me derrubar ou derrotar. Vencerei todos os animais. 

Os outros animais ficaram sabendo dessa bravata e foram desafiá-lo. Os primeiros a chegar foram os camundongos, centenas deles, e assim se deu o primeiro embate. O Bode derrotou um por um de seus duzentos desafiantes. Os camundongos reconheceram que não eram páreo para ele e foram embora.

Então os ratos silvestres chegaram e lutaram com o Bode. Mais uma vez, todos foram derrotados e voltaram para casa.

Em seguida vieram os antílopes. O Bode venceu cada um do bando, nenhum foi capaz de derrotá-lo. E também se foram.

Os elefantes foram os próximos, a manada inteira veio desafiar o Bode. Todos voltaram para casa derrotados.

E assim aconteceu com todos os outros animais. Chegavam e eram vencidos da mesma maneira e, como os outros, também iam embora. Apenas um ainda não havia tentado. O Leopardo decidiu enfrentar o Bode, certo de que sairia vitorioso. No entanto, também foi derrotado e assim ficou provado que não havia um único animal na selva capaz de vencer o Bode.

O Pai de Todos-os-Leopardos ficou sabendo daquilo e disse:

— Que vergonha um animal desse tamanho derrotar um de nossa espécie. Vou matá-lo!

E planejou sua vingança. Foi até a nascente usada pelos Homens e se escondeu ali perto. Alguns moradores da cidade apareceram para pegar água e o Leopardo matou dois deles. As pessoas então foram até o Bode e pediram:

— Vá embora daqui! O Leopardo está matando nosso povo por sua causa.

A mãe do Bode então aconselhou seu filho:

— Se isso for verdade, devemos ir visitar meu irmão Antílope.

Então foram até a aldeia do Tio Antílope e contaram tudo o que estava acontecendo.

— Pois fiquem em minha casa! — disse Antílope. — Quero ver se o leopardo tem coragem de aparecer aqui!

Permaneceram na aldeia do Antílope por dois dias. No terceiro, por volta das oito da manhã, o Leopardo apareceu por lá como se estivesse apenas dando um passeio. Ao vê-lo, o Bode e sua mãe se esconderam, enquanto o Antílope foi conversar com ele:

— Qual é o problema? Por que você está bravo com meu sobrinho?

Antes mesmo que o Antílope terminasse de falar, o Leopardo arrancou-lhe uma orelha.

— Por que me atacou? — gritou Antílope.

— Mostre-me onde Tomba-Taba (bode) e sua mãe estão — ordenou o Leopardo.

Amedrontado, o Antílope respondeu:

— Venha hoje à noite e mostrarei onde dormem. Faça o que quiser com eles, mas não me mate.

O Bode ouviu a conversa e foi avisar sua mãe:

— Temos de fugir ou Njâ (leopardo) nos matará.

Quando o sol se pôs, o Bode e sua mãe fugiram para a casa do Elefante. O Leopardo voltou à aldeia do Antílope por volta da meia noite, conforme o combinado. Procurou em todas as casas do vilarejo e, contrariado por não encontrar o Bode, foi até o Antílope e o matou.

Continuou suas buscas e enfim encontrou o rastro de sua caça. Seguiu no encalço do Bode até chegar à vila do Elefante. Njâku (elefante) o recebeu com indignação:

— Qual é o problema? — e o Elefante repetiu as mesmas palavras que o Antílope.

E como o Bode e sua mãe fugiram para a aldeia do Boi, o Elefante teve o mesmo destino que o Antílope: acabou assassinado pelo felino.

O Leopardo então foi até a aldeia do Boi, que repetiu a mesma conversa e teve o mesmo destino dos outros antes dele. Foi assassinado, mas o Bode conseguiu escapar.

A mãe do Bode, já cansada de tanto fugir e desgostosa com a morte de seus protetores, enfim disse:

— Meu filho! Se continuarmos a fugir de aldeia e aldeia, Njâ nos seguirá matando todos os animais. Vamos para as casas dos Homens.

Fugiram novamente e chegaram até a aldeia dos Homens, onde contaram sua história e foram bem recebidos. Um dos moradores acolheu o Bode e sua mãe como convidados, e mais tarde deu a eles uma casa.

Certa noite o Leopardo chegou à cidade, procurando o Bode. O Homem, ao vê-lo, disse:

— Os animais que você assassinou não souberam te matar. Mas aqui na nossa cidade nós o mataremos.

O Leopardo então voltou para sua casa.

Dias depois, o Homem construiu uma armadilha com dois compartimentos. Colocou o Bode em um deles. Quando chegou a noite, o Leopardo saiu novamente à procura do Bode e voltou para a cidade. Apurou os ouvidos e farejou o cheiro de sua presa.

— Esta noite finalmente o matarei — pensou.

Notou uma trilha que levava até uma casa. Abriu o que acreditou ser uma porta e caiu na armadilha. Podia ver o Bode pelas aberturas da parede, sem conseguir tocá-lo.

— Meu amigo! Você queria me matar, mas não vai conseguir — caçoou o Bode.

Quando o dia amanheceu, os habitantes da cidade encontraram o Leopardo preso na armadilha. Mataram-no a tiros e golpes de facão. O Homem então disse ao Bode:

— Não volte mais para a floresta. Fique aqui para sempre. 

Esta é a razão de os bodes viverem junto dos homens: o medo dos leopardos.

Fonte: texto por Robert Hamill Nassau, in Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 1. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Versejando 127

 

Mensagem na Garrafa – 46 –


Cecy Barbosa Campos
Juiz de Fora/MG

SOLIDÃO

Muitas pessoas veem a solidão como um problema. Porém, o que é a solidão? Entende-se que é o fato de estar só. E estar só é um problema? Isto depende da situação de cada um. Há quem se aceite como uma boa companhia e que se adapte a viver sozinho, sem família ou amigos ao redor.

Quando a solidão é resultante de separação física, forçada ou voluntária, é natural que o sentimento de perda cause sofrimento a quem ficou só, entretanto, o sofrimento pode ser superado pelas boas lembranças. Sentir falta de alguém é um indício de que há coisas boas a serem lembradas, e se temos boas lembranças, elas tolhem o sentimento de solidão.

Diz-se que a pior solidão é aquela de quem vive cercado de muita gente. Neste caso, ela não é aparente, mas é intensa. O indivíduo passa a levar uma vida artificial, ensimesmado em seu interior. Nega-se a aceitar o mundo em que vive, e sua revolta é tão grande que passa a rejeitar o convívio das pessoas que lhe são próximas. Cultiva a sua dor, apieda-se de si próprio e consegue, afinal, afastar de si os amigos bem intencionados que o perturbam.

Conciliando as presenças que habitam em nosso coração com aquelas que, hoje, fazem parte de nossas vidas, nunca nos sentiremos sozinhos e amargurados por problemas de solidão.