segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Geraldo Pereira (Uma Sereia no Timbó)

 
Aqui, às margens do Timbó, onde as águas do rio se entregam à enormidade maternal dos mares, a madrugada pariu o dia e a manhã ganhou os ares nos braços do astro que é rei, depois a tarde embalou a noite, trazendo outra vez a negritude das trevas. E a noite se foi, parindo outro dia! Eis a metamorfose do tempo! 

Um pescador muito velho, de barbas longas e brancas, tomou a jangada bem usada e se fez ao mar, jogando, seguidamente, a rede, de cujo conteúdo há de alimentar a família. Outro, pisando as areias cálidas da praia, tão alvas quanto a pureza do lírio, de tarrafa à mão, reunia no samburá já surrado as espécimes que podia, de tainhas fresquinhas, fresquinhas. 

O forasteiro, sentado ao largo, vestido à moda urbana, de camiseta estilizada, com inscrição posta na língua lá de fora e de sandálias cobrindo os pés, assistia a tudo isso. Via as mudanças e as transformações, qual observador do cotidiano, anotando vivências e convivências, com as águas sobretudo. Nos dedos contou os barcos e passou de dez nesse exercício, contabilizou gente que ia adentrando as águas, cumprindo o desiderato milenar de buscar nessas intimidades o pão de cada dia. Aceitou o cumprimento respeitoso do caçador de lagostas, de ferro afiado pendendo do indicador e com o apetrecho destinado à sua própria flutuação: “Bom Dia!” E o imaginário soltou-se, libertou-se das amarras que a intelectualidade pode trazer, para rever o tudo e o todo, dali e de fora, do presente e do passado, permitindo-se indagações sobre o futuro.

Como era diferente ele – o forasteiro –, daquele povo simples e aparentemente sem complexos e sem neuroses que por ali passava, livre das injunções sociais, de preceitos e de preconceitos! Ficou filosofando assim ou matutando apenas, sentado como estava, mantendo a sua condição de invasor daquele ambiente tão sagrado e tão puro. Com o calor da manhã e com o sol a pino, viu as lanchas sofisticadas roubarem as águas alheias, provocando ondas no mar, querendo repetir espumas que na beira da praia beijam as areias, deixando telúricos ósculos. 

Assistiu o desfilar de outros forasteiros, veranistas também, de coloridos trajes, falantes e desinibidos, com intenções modernas de relax e de outras práticas. Furtam, na verdade, os ares que desses nativos sempre foram!

Passaram e sujaram, fizeram de seus luxos os lixos daquele canto, um recanto, ainda, das reflexões de Deus. Vieram das paragens sulinas, a tirar pelo sotaque de todos e pelas conversas que vão fiando, trouxeram a fadiga internalizada na bagagem e largaram por cá esses restos de civilização, contaminando o tempo e maculando o espaço. Promoveram no povo daqui mudanças de hábitos, desusados dantes. Pescadores transformados em guias de turismo, carregando pra lá e pra cá gente de fora, em passeios à Ilha de Itamaracá ou à Coroa do Avião. Homens mais velhos com os barcos ancorados, oferecendo passeios, à prainha dizem, seduzindo os outros, como se faz na cidade.

Mas, é do mister de quem observa, anota e vai se permitir a criação do texto, no transbordar do coração diante da inspiração, como agora, madrugada quase de um sábado, aproveitar-se de um cumprimento e fiar conversa, de logo. Como estava o movimento de turistas mandados de São Paulo e do Rio, de outros lugares também? Ruim, respondeu o homem, pescador por profissão e guia por precisão! Depois que fechou o hotel, fugiram daqui os viajantes, foram parar noutros lugares, explicou, justificando! E ficamos a ver navios, disse, fazendo metáfora com as coisas do mar. Tocou a falar de suas experiências, depois que a civilização aportou nessas bandas e o simplesmente nativo foi se adaptando ao inteiramente novo, uma figuração do desenvolvimento emergente. Vira de um tudo por cá, do comum ao inusitado, gente que vai chegando e se deslumbrando com a paisagem do mar, cujo horizonte beija as águas ou com a beleza do coqueiral, no balanço mais do que cadenciado das folhas, ao sabor lúdico dos ventos de janeiro. O coqueiro é a árvore do adeus, as suas palhas se despedem, o tempo todo, do viandante que se vai, entrando nas águas em direção às funduras do mar! 

E o que mais lhe impressionara  nesse tempo das novidades? Confessou, então, a sua perplexidade quando nas águas do rio Timbó viu, depois de trinta anos se pouco, a sereia de seus devaneios e de seus sonhos emergindo, sorrindo para o mundo. Não se falaram, complementou, porque perderam a intimidade, sem precisar aludir a Fernando Veríssimo, mas filosofando à sua maneira!

Entreolharam-se, somente, nada mais!

E para findar a crônica no melhor dos estilos, passou Vando, que da peixaria é o dono, esquipando no alazão tupiniquim, manga-larga da periferia, deixando um dourado aqui e outro ali, um serra para o irmão Getúlio e uma cioba para o escriba. E para Capiba, conterrâneo de Surubim, a prece a Maria Betânia, entoada sob a sonoridade das ondas! E Beto da Goiabeira, que do frágil arbusto caiu em seu primeiro alumbramento, sem invocar o poeta do rio das capivaras, aprendeu de Bandeira os versos cantados na Várzea, dos encantamentos primeiros!

Fonte: Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

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