segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (Ecos de um silêncio que não dava trégua)

TATIANA SEMPRE amou a música. De paixão. Era a sua vida, o seu objetivo, o seu agora, e, igualmente, o seu porvir. Desde pequena, ainda na faixa dos cinco para seis anos, as notas de um piano ou a melodia suave de um órgão nas missas dominicais do padre Daniel a encantavam e acalmavam o seu espírito inquieto, notadamente quando se deparava com as partituras (ainda que de uma simples melopeia.) Sua paixão avassaladora pelos hinos, e pelas canções românticas se fazia como um trilho paralelo. Uma disposição anímica, um escape no meio do cotidiano efervescente, e uma forma direta de comunicação, tipo assim, como algo soberbo que se estendia além, muito aquém das palavras. No entanto, com o passar dos anos, algo que deveria ser uma fonte de alegria e esperança, se tornou um tremendo campo de batalha emocional, como uma arena imensa onde a frustração e o ressentimento se assarapantaram juntamente com as obras que costumava executar.

O pai de Tatiana, o Chico Marreta, sempre foi um homem de grandes expectativas. Para ele não havia limites. Com o sucesso profissional açambarcado pela sua eterna criança, ele transferiu as todas as suas edacidades (avidez) para ela, esperando que a jovem musicista fosse uma ensancha (oportunidade) sôfrega de seus próprios devaneios e conquistas. Em razão disso, uma tara esfaimada e gulosa, quase as raias do pantagruélico em ver a Tatiana nos píncaros das estrelas, se consubstanciava numa única essência, como um reflexo do desejo de brilhar e superar a si próprio, ou qualquer coisa que ele mesmo trazia escondido a sete chaves dentro de si. Contudo, na busca galopante por realizações pessoais, ele se descuidou, ou seja, deixou de lado algo que deveria ser primordial: o respeito, a consideração, a deferência e a cortesia pela vontade e pelos sentimentos de sua única descendente. Tatiana, no início, tentou corresponder às expectativas do pai. 

De todas as maneiras possíveis e imagináveis. Ela se dedicou, de corpo e alma e com profundo afinco, ao treino incansável, buscando em cada aula, em cada audição, a aprovação que sabia ser a chave para o coração de Chico Marreta. Mas o que começou como uma busca por amor e aceitação, logo se transformou em um peso traiçoeiro e esmagador. As sinfonias, que antes representavam seu refúgio, a sua vida, seus sonhos e aspirações, passaram a ser uma fonte constante de pressão e dor à farta. Sendo assim, cada concerto, cada ensaio, cada encontro, se tornava uma espécie catastrófica de obrigação e não mais uma alegria inebriante. O ponto de ruptura culminou. Aconteceu exatamente durante um recital importante no Teatro Municipal no Rio de Janeiro. Chico Marreta, como de costume, se fazia pomposo na plateia lotada, observando atentamente e com os olhos arregalados, não de um pai carinhoso e dócil, de um crítico intransigente. 

No entanto, a verossimilhança de um desempenho impecável não se alinhava com a realidade daquela noite. Tatiana estava nervosa e, em meio à performance, cometeu alguns erros que, para ela, foram profundamente dolorosos. Ao final, quando os aplausos da plateia ainda ecoavam, Chico Marreta se aproximou e, ao invés de oferecer palavras de consolo, de ternura e compreensão, acertou literalmente falando, uma tremenda marretada no âmago da sua garotinha, ou seja, mergulhou afogueado numa crítica dura, perversa, ácida e severa se enveredando, sem nenhuma cortesia e polidez, por desvãos de passos meândricos (tortuosos), no tocante a falta de (segundo ele) a total despreparação de sua única herdeira de vínculo biológico. A ferida imensurável que se abriu naquele momento amargo, se fez deveras profunda. Como um desfiladeiro que lembrava aquela ponte para o céu nas montanhas de Neman, na China. Tatiana, com os olhos baços e marejados, sentiu um peso que nunca antes experimentara. 

A sensação de inadequação e decepção se tornou quase insuportável. Em vez de orgulho, se sentia como se estivesse falhando não só como artista, mas também como filha. Naquele instante, a relação que antes parecia sólida começou a esfriar, ou melhor dito, a rachar, e o que restou logo depois, apenas e tão somente o eco de um silêncio frio e ensurdecedor. O diálogo entre pai e filha se tornou, no mesmo lado da moeda, numa espécie de recesso dentro de um solo minado, se distanciando cada vez de forma mais longínqua, em vista de uma enormidade de ressentimentos não ditos e feridas abertas sem esperanças de serem cicatrizadas. Cada tentativa de Tatiana de expressar a sua insatisfação, culminava respondida com uma mistura amarga de desdém e confusão. Chico Marreta, incapaz de compreender a profundidade do sofrimento da filha, continuava a insistir em suas expectativas, acreditando que agia da melhor forma possível. Ledo engano!

O tempo passou e, como tudo na vida, o sofrimento ímpar e penoso começou a se perpetuar em rostos serenos de compreensão. Tatiana, aos poucos percebeu e não só isso, passou a ver que o seu valor não se fazia atrelado às expectativas do autor de seus dias, e sim à sua própria essência trazida de berço, e obviamente aos seus acalantados sonhos imorredouros de adolescente. Embora a relação com o pai ainda fosse ofuscada, marcada por uma certa distância, ela aprendeu a tocar as suas músicas com um novo simulacro (arremedo). Canções de simetrias sublimes e de autoconhecimento, e, sobretudo, de majestosa libertação pessoal. O caminho para a sua cura foi longo, penoso, cheio de altos e baixos. Difícil, repleto de tropeços aqui e acolá. Muitas vezes, a menina dos olhos cor de mel se via solitária. Porém, “não há mal que sempre ature, nem bem que nunca se acabe.” De repente, do nada, como uma luz que se acende inesperadamente, em meio de um breu tremendo, Tatiana compreendeu que, às vezes, é necessário dar alguns passos para trás. 

Sopesar contras e prós, se afastar para encontrar a própria personalidade, e nela, de contrapeso, o valor indubitável da sua. Chico Marreta, por seu lado desprovido, ausente e distanciado da filha, começou a perceber, igualmente, a importância de ouvir, de escutar, em vez de apenas impor ordens e condições. A reconstrução da confiança e do entendimento mútuo é uma jornada contínua. À poucos passos, pai e filha estavam e não só isso, careciam e se faziam abertos e dispostos a trilharem por essas veredas cheias de curvas e dissabores, com a probabilidade de que, um dia, as notas de suas relações encontrariam um acorde de adesão entrelaçado a um engajamento de indestrutível expectativa. Dessa forma, mesmo com as repetições intransigentes do silêncio obscuro ainda ressoando em seus “eus escondidos", pai e filha, filha e pai, aprenderam a tocar as suas próprias cantatas. Na verdade, se coadunaram com a convicção de que, eventualmente, as suas estradas e veredas se entrelaçariam, e, obviamente, se cruzariam novamente num ponto ainda que afastado. Agora não mais como um campo minado aberto publicamente. Em oposto, entrelaçado como uma entonação de eurritmia (harmonia) onde a compreensão e o amor incondicionalmente se faziam renovados.
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Nota: entre parênteses significado das palavras não usuais, obtido no Dicionário Online de Português, pesquisa realizada pelo editor do blog.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Recordando Velhas Canções (As Laranjas da Sabina)

 (lundu/tango, 1902)
Compositor: Artur de Azevedo


Sou a Sabina, sou encontrada
Todos os dias lá na calçada
Lá na calçada da Academia
Da Academia de Medicina

Um senhor subdelegado
Moço muito restingueiro
Ai, mandou, por dois soldados
Retirar meu tabuleiro, ai...

Sem banana macaco se arranja
E bem passa monarca sem canja
Mas estudante de medicina
Nunca pode passar sem a laranja
A laranja, a laranja da Sabina.

Os rapazes arranjaram
Uma grande passeata
Deste modo provaram
Quanto gostam da mulata, ai

Sem banana macaco se arranja

Na manhã de 25 de julho de 1889, um grupo de estudantes da Imperial Escola de Medicina uniu-se em uma inesperada passeata pelas ruas do centro do Rio de Janeiro. O motivo: Sabina, uma baiana vendedora de laranjas, havia sido proibida de armar seu tabuleiro em frente à faculdade, na Rua da Misericórdia. A decisão de expulsá-la, anunciada pelo subdelegado da área, provocou imediata reação dos alunos. Por onde passava, o cortejo ganhava mais adeptos e recebia aplausos de uma multidão entusiasmada. Bem-humorados, os estudantes carregavam uma coroa feita de bananas e chuchus e uma faixa criticando a autoridade, a quem chamaram de “O eliminador das laranjas”. Passaram também pelas redações dos principais jornais da cidade denunciando a arbitrariedade, o que renderia grande repercussão para o caso.

“Um viva aos rapazes, que acabam de escrever a melhor cena das próximas futuras revistas de ano”, publicava a Gazeta de Notícias três dias depois. O jornal estava sendo profético. As “revistas de ano” eram peças teatrais cômicas e musicadas, nas quais desfilavam os eventos tidos como mais importantes do ano anterior. Daí sua denominação: era o momento de passar um ano inteiro em revista. Em 1890, os irmãos escritores Artur e Aluízio Azevedo encenaram sua revista de ano, A República, e Sabina foi uma das personagens mais comentadas. Noite após noite, os cariocas corriam até o Teatro Variedades Dramáticas só para ouvir a canção As laranjas da Sabina. Sabina era interpretada por uma bela atriz grega, Ana Menarezzi, bem diferente da idosa rechonchuda retratada pela imprensa.

Em 1902, quando a indústria fonográfica chegou ao Brasil, As Laranjas da Sabina foi gravada ainda no sistema de cilindros pelo cantor Cadete e já em disco por Bahiano, ainda nesse mesmo ano. Em 1906, a atriz Pepa Delgado gravou o lundu.

Os anos passavam, mas quem disse que Sabina era esquecida? No início do século XX, as agremiações carnavalescas mantinham grupos formados por homens que, nos dias de folia, saíam às ruas fantasiados de baianas e mulatas. Numa homenagem à velha quitandeira da porta da Escola de Medicina, eles eram chamados, no grupo Kananga do Japão, de “Sabinas da Kananga”. Na sociedade dos Fenianos, eram conhecidos simplesmente como “Sabinas”.
Fonte:
https://cifrantiga3.blogspot.com/2013/08/as-laranjas-da-sabina.html

domingo, 20 de outubro de 2024

Varal de Trovas n. 614

 

José Feldman (Pafúncio e a Exposição de Cães)

Era um sábado ensolarado, e a cidade estava animada com a tão esperada Exposição Canina, um evento que reunia cães de todas as raças e tamanhos, além de seus orgulhosos donos. A revista “Fuxico & Fofocas” decidiu que era a oportunidade perfeita para Pafúncio, seu melhor jornalista, fazer uma cobertura da exposição.

Pafúncio chegou ao local da exposição vestindo uma camisa estampada de patinhas de cachorro e um boné, que mais parecia uma toalha de piquenique. Estava tão animado que mal conseguia conter seu entusiasmo. 

“Hoje vai ser um dia cheio de fofocas e sorrisos!” ele exclamou para si mesmo.

Assim que entrou na grande tenda onde a exposição aconteceria, Pafúncio ficou maravilhado com a quantidade de cães. Havia desde os pequenos Chihuahuas até os majestosos São Bernardos, todos exibindo seus trajes e adereços. 

Ele se dirigiu imediatamente à primeira bancada que encontrou, onde um juiz estava avaliando um poodle exuberante.

“Oi, tudo bem? Posso tirar uma foto desse lindo poodle?” Pafúncio perguntou, já preparando sua câmera. 

O juiz, um homem de aparência séria, assentiu, mas Pafúncio, tomado pela empolgação, começou a disparar flashes incessantemente. O poodle, irritado com os flashes, começou a latir e pular, e o juiz, exasperado, teve que segurá-lo.

“Calma, amigo! Não é para você ficar irritado!” Pafúncio gritou, mas ele mesmo estava tão concentrado na foto que não notou que estava criando um caos.

Após algumas tentativas frustradas de entrevistar donos de cães e tirar fotos, Pafúncio decidiu que precisava de uma abordagem mais direta. Ele se aproximou de um dono de um buldogue francês que estava sentado calmamente em uma cadeira. “Oi! Se o seu buldogue pudesse falar, o que ele diria sobre você?” Pafúncio perguntou.

“O que ele diria? Provavelmente que eu sou o melhor dono do mundo!” respondeu o homem, rindo.

“E que você precisa dar mais biscoitos!” Pafúncio completou, anotando tudo em seu bloco. 

Ele estava se divertindo, mas não percebeu que o buldogue francês começou a olhar para ele com um semblante desconfiado.

Depois de algumas entrevistas, Pafúncio se sentiu confiante o suficiente para fazer algo mais ousado. Ele decidiu que tiraria uma foto de todos os cães juntos. Ele subiu em uma pequena plataforma e gritou: “Atenção, cães! Todos para uma foto com o Pafúncio!”

Os donos, começaram a reunir seus cães, mas Pafúncio, na ânsia de capturar o momento perfeito, começou a disparar flashes de sua câmera sem parar. Os cães, confundidos e irritados com os flashes, começaram a latir e a se agitar, criando um verdadeiro alvoroço.

“Calma, pessoal! É só uma foto!” gritou Pafúncio, mas sua tentativa de acalmar a situação só fez piorar. Um Chihuahua nervoso começou a correr em círculos, e logo todos os cães na tenda se juntaram à confusão.

“Socorro, o que está acontecendo?” Pafúncio gritou, enquanto tentava descer da plataforma, mas, em seu desespero, acabou tropeçando e caindo de cara no chão. 

A cena era hilária: ele estava cercado por uma mistura de raças caninas, todas latindo e pulando ao seu redor.

Desesperado, Pafúncio se levantou e começou a correr, mas os cães, ainda irritados pelos flashes, decidiram que ele era o alvo perfeito para sua fúria. Ele fez uma curva, tentando escapar, mas a tenda estava cheia de obstáculos: mesas de petiscos, cadeiras e até uma fonte de água para cães.

Os latidos se tornaram ensurdecedores, e Pafúncio, em sua corrida desgovernada, acabou derrubando uma mesa cheia de biscoitos para cães. Os biscoitos voaram pelo ar e, instantaneamente, todos os cães mudaram de alvo, indo atrás das guloseimas que estavam caindo.

“Ufa, consegui!” Pafúncio pensou, parado em um canto, mas seu alívio durou pouco. Ele não percebeu que, enquanto os cães estavam distraídos com os biscoitos, ele ainda era o foco de atenção. Assim que a mesa foi destruída, os cães voltaram a olhar para ele, e percebendo que ainda estava cercado, começou a correr novamente.

“Não! Por favor, não me mordam!” ele gritou, enquanto todos os cães pareciam decidir que seguir Pafúncio era a coisa mais divertida a fazer. 

Ele saiu da tenda em disparada, cruzando o gramado e fazendo uma curva em direção à saída do evento.

As pessoas olhavam em choque e riam ao mesmo tempo, enquanto Pafúncio corria, com uma matilha de cães atrás dele, todos latindo e pulando. 

Ele se sentiu como um personagem de um filme de comédia, onde a situação se tornou completamente insana.

Finalmente, Pafúncio chegou à saída, onde alguns seguranças estavam de plantão. Eles, percebendo a cena, tentaram conter os cães que estavam se espalhando. 

“O que está acontecendo aqui?” perguntou um dos seguranças, tentando ajudar.

“Cães! Eles estão atrás de mim!” Pafúncio gritou, ofegante.

Os seguranças, em vez de ajudá-lo, começaram a rir. “Acho que você se tornou a nova atração do evento!” disse um deles, enquanto tentava controlar a situação.

Com um último esforço, Pafúncio conseguiu se desvencilhar dos cães, que finalmente se distraíram com uma nova bandeja de biscoitos que alguém havia trazido. Ele se afastou, aliviado da própria desgraça.

Ao chegar em casa, ele decidiu que tinha uma história para contar. Enquanto escrevia sua matéria, ele refletiu sobre como a vida pode ser imprevisível, e que, mesmo em meio ao caos, havia sempre espaço para boas risadas.

“Pafúncio, o jornalista que não só entrevistou cães, mas também se transformou em uma verdadeira atração canina!” ele anotou, rindo ao pensar na cena que vivera. 

E assim, mais uma vez, ele provou que, independentemente de quão desastrosa uma situação possa parecer, sempre há um lado divertido.

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

Vereda da Poesia = Américo Ferrer Lopes (Queluz/Portugal)



Olavo Bilac (Sumé: Lenda dos Tamoios)

Foi na imensa e fértil região das águas de montanhas e areias, que vem do Espírito Santo até o Rio de Janeiro, que apareceu Sumé, o venerando velho, pai da agricultura, cuja memória foi tão criminosamente perdida pela ingratidão dos homens.

Nessa larga faixa de terra, cujos cabos e promontórios rochosos invadem o mar, quase tocando ilhas fecundas, que verdejam ao sol, entre bancos de areia, — vivia um povo forte e valente, respeitado na paz e temido na guerra. Eram os Tamoios, cujas canoas guerreiras dominavam a costa, desde o cabo de S. Tomé até Angra dos Reis, guardando as aldeias, formadas de cabanas sólidas, cercadas de altas paliçadas inexpugnáveis. Quando as tribos vizinhas ousavam invadir a seu território, — o canto do pajé concitava (instigava) os filhos da grande nação. E, ao som dos chocalhos de pedras, das buzinas de madeira, dos tambores e das flautas de taquara, — os grandes exércitos tamoios abalavam em hostes cerradas, para repelir o invasor. E a nação não descansava, enquanto os inimigos não fugiam ao valoroso embate das suas armas de gloriosas, — maças pesadas feitas de lenho de palmeira, formidáveis machados chatos de madeira vermelha, flechas agudas, arcos da altura de um homem. 

Mais de uma vez, assim, os Goitacazes e Goianazes tiveram de ver castigada a sua ousadia. Quando a guerra findava, toda a tribo comemorava com grande festa a vitória de seus filhos. E a música e a dança celebravam, em torno dos prisioneiros que tinham de ser comidos vivos, a derrota dos inimigos. Depois vinha de novo a livre e arriscada existência da paz, — a pesca, nas canoas ligeiras que voavam como as aves do mar à flor das águas, e a caça dentro dos matos bravos, povoados de feras.

Ora, um dia, em que uma grande multidão da tribo, à beira-mar, estava reunida, celebrando uma vitória, — viram todos que sobre o largo oceano, vinha, do lado em que o sol aponta, uma grande figura, que mais parecia de deus que de homem.

Era um grande velho, branco como a luz do dia, trazendo, espalhada no peito, como uma toalha de neve, até os pés, uma longa barba venerável, cuja ponta roçava a água do mar. E houve um grande espanto entre os Tamoios, vendo assim um homem, como eles, caminhar sem receio sobre as ondas como sobre terra firme.

Era Sumé, enviado de Tupã, senhor do Céu e da Terra. E Sumé operava prodígios nunca vistos. Diante dele, os matos mais cerrados se abriam por si mesmos, para lhe dar passagem: a um aceno seu, acalmavam-se os ventos mais desencadeados: quando o mar furioso rugia, um simples gesto de sua mão lhe impunha obediência. A sua presença fazia abaterem as tempestades, cessarem as chuvas, abrandarem as secas. E até as feras quando o viam, vinham submissamente lamber-lhe os pés, arrastando-se, de rojo, na areia. E os Tamoios, cativos de sua bondade, conquistados pelo assombro dos seus milagres, tomaram Sumé para seu conselheiro. E todas as tardes, os chefes adiantavam-se para ele, — enquanto em roda, mulheres, homens e crianças paravam a escutar, — vinham contar-lhe a história de seu povo, e interrogá-lo sobre as suas crenças, e pedir-lhe conselhos e lições.

E diziam-lhe a sua religião: “Tupã, para fazer o céu e a terra, criou as mães para tudo. O sol é a mãe do dia e da noite. A lua é a mãe das plantas e dos animais. Os homens nasceram, e foram maus. Tupã, para castigar a sua maldade, mandou que as águas crescessem desmedidamente e cobrisse tudo. Então, viram-se os peixes nadando entre as folhagens das árvores, e os tigres afogados boiando sobre a vastidão das ondas crescidas. E os homens fugiam de monte em monte. E o céu se abria em relâmpagos e em quedas assombrosas de água. Mas um varão forte, que Tupã amava, — um varão de alma grande, que tinha o nome de Tamandaré, salvou a raça guardando dentro de uma canoa os seus filhos, e livrando-os do naufrágio espantoso. E de Tamandaré saímos nós, guerreiros que não tememos o trovejar das armas dos inimigos, quando o furor os assanha no campo de guerra, — mas que nos rojamos por terra, lembrando a antiga punição, quando ouvimos trovejar o céu, carregada de ameaças de maldição, a grande voz sagrada de Tupã, senhor e criador de todas as coisas e de todos os seres...”

Sumé amou aquela nação simples e sóbria, sem vícios e sem pecados. Louvou-lhe a bravura na guerra e a modéstia na paz. E quis torná-la feliz, ensinando-lhe o meio de viver na abundância. E ordenou que todos os homens válidos, depois de haverem abundantemente provido de caça e de pesca as cabanas, em que as mulheres e as crianças ficariam, seguissem com ele, para obrigar a terra a dar-lhes o sustento diário.

Disse-lhes Sumé: “A grande mãe é a terra: a grande mãe generosa; basta acariciá-la, basta amá-la e afagá-la, para que ela se abra logo prodigamente em toda a sorte de bens e de venturas.” 

Mas um pajé, velho sábio, conhecedor das coisas que o comum dos mortais ignora, observou: “Como pois, grande Santo, até hoje só tem ela tido para nós espinhos e répteis?” E Sumé respondeu: “Porque até hoje não a amastes com fervor e trabalho. Cavai-a e suai sobre ele: se rasgará agradecida, não para vos engolir, mas para vos dar vidas novas. Vinde comigo e vereis!” 

Seguiram-no eles. E a terra, por toda a parte, era nua e ingrata. Matagais crespos e impenetráveis subiam do seu seio. E, dentro deles, as cobras silvavam, as onças uivavam: e toda aquela natureza primitiva era inimiga do homem, inimiga sem piedade, que afiava contra ele os dentes de suas feras e as pontas agudas dos seus espinheiros. Mandou Sumé que desbastassem a terra, e tivessem, para destruir os matos fechados, a mesma bravura e o mesmo vigor que tinham para destruir as hostes dos inimigos.

Ordenou-lhe depois que amanhassem o solo, e, dando-lhes sementes várias, disse-lhes que as lançassem sem conta sobre o seio da grande mãe assim preparado.

Deste modo correu Sumé todo o litoral. E atrás dele todos os homens válidos da tribo seguiam. Os dias passavam. Passavam os meses. Passavam os anos. E de sol a sol, a febre do mesmo trabalho sacudia aquela multidão, que a virtude e a bondade de um só homem arrastavam seduzida e cativa. 

Quando Sumé chegou à grande Angra, que fechava ao sul o domínio dos Tamoios, parou. E disse, reunindo os trabalhadores:

— É tempo de retroceder... Ides ver como a terra vos paga em abundância e ventura as bagas de suor que gastastes em seu favor!

Retrocederam. E, então, começou o deslumbramento da tribo. À medida que se aproximavam do ponto de partida, viam a terra mudada, de mais em mais, abrindo-se em folhagens que não conheciam, em frutos que nunca tinham visto. E, quando chegaram ao grande acampamento, as mulheres e as crianças dançavam e cantavam. Os celeiros da tribo regurgitavam. O céu parecia mais belo; mais belo parecia o mar; mais bela a natureza toda; porque a tribo toda via agora a natureza através dessa alegria que é a filha da felicidade. Das sementes que o Santo Sumé fornecera, tinham nascido, em touceiras imensas, s bananeiras fartas; tinham nascido os carás e as mandiocas; tinham nascido os milhos de espigas de ouro; tinham nascidos os algodoeiros, os feijões e as favas...

Sumé não achou bastante o que já tinha feito: e ensinou-lhes a arte de fabricar a farinha, moendo a mandioca: e revelou-lhes os segredos da navegação, aperfeiçoando as suas igaras rústicas, dando-lhes velas, que, como asas de pássaros, ajudassem a voar com o vento, e lemos que, como caudas de peixes, as ajudassem a cortar ondas. E toda a tribo abençoou Sumé.

E em honra sua, todas as tardes, quando o pôr-do-sol ensanguentava as águas, a tribo dançava, ao bater compassado dos tambores, em torno do grande velho, — filho querido de Tupã, pai da Agricultura, Gênio protetor dos Tamoios.

Mas os anos passaram. E, com o passar dos anos, passou a gratidão da tribo.

Os pajés, ciumentos do poder do Santo, envenenaram a alma da nação: “Como? Pois ela, tão forte, que, em todo arredor, só seu grito de guerra bastava para amedrontar todas as outras nações, ficaria sempre sob o domínio de um só homem, um estrangeiro, um homem de pele branca?”

E o rumor da maledicência crescia em torno do Santo. E, em torno dele, a rede da intriga se apertava.

E ele ouvia, e sorria. E a sua grande alma, toda sabedoria e bondade, compreendia e perdoava a ingratidão das gentes.

Uma madrugada, quando o Santo saía da sua cabana, viu formados todos os Tamoios, que vociferavam, ameaçando-o. E todos eles estavam armados. E as fisionomias de todos eles transpiravam ódio e rancor.

O Santo Sumé quis falar. Não pôde. Uma flecha certeira, partida das fileiras dos ingratos, veio cravar-se no seu peito. O Santo sorriu. E, arrancando o dardo das carnes, atirou-o ao chão, e foi andando, de costas, para o lado do mar. Então, o ataque recrudesceu. As setas voavam, às centenas, aos milhares, todas atingindo o alvo. Sumé, com o mesmo sorriso nos lábios, ia sempre caminhando de costas para o lado do mar, e, de uma em uma, ia arrancando do corpo as setas que não o magoavam.

Quando chegou à praia, entrou pela água, cresceu sobre ela, sobre ela se equilibrou, e, sempre de costas, foi fugindo, — e sorrindo, sem amaldiçoar os ingratos a quem dera fartura.

E toda a tribo, paralisada de assombro, via, oscilando de leve sobre as ondas que o nascer do sol ensanguentava, ir diminuindo, diminuindo, até sumir-se de todo na extrema do horizonte, aquela doce figura, de pele branca com o a luz do dia, trazendo espalhada sobre o peito, até os pés, como uma toalha de neve, a longa barba venerável, cuja ponta roçava a água do mar…

Fonte: Olavo Bilac e Coelho Neto. Contos pátrios. 1906.

Recordando Velhas Canções (Na casa branca da serra)

(Modinha, 1880)
Compositores: Guimarães Passos e Miguel E. Pestana


Na casa branca da serra
Onde eu ficava horas inteiras
Entre as esbeltas palmeiras
Ficaste calma e feliz
Tudo em meu peito me deste
Quando eu pisei na tua terra
Depois de mim te esqueceste
Quando eu deixei teu país.

Nunca te visse oh! formosa
Nunca contigo falasse
Antes nunca te encontrasse
Na minha vida enganosa
Por que não se abriu a terra
Por que os céus não me puniram
Quando os meus olhos te viram
Na casa branca da serra.

Embora tudo bendigo
Desta ditosa lembrança
Que sem me dar esperança
De unir-me ainda contigo
Bendigo a casa da serra
Bendigo as horas fagueiras
Bendigo as belas palmeiras
Queridas da tua terra.

Saudade e Melancolia na Casa Branca da Serra
A música 'Na casa branca da serra', é uma canção que exala saudade e melancolia. A letra descreve um lugar específico, a casa branca da serra, onde o eu lírico passou momentos felizes e tranquilos. As palmeiras esbeltas e a calma do ambiente são elementos que evocam uma sensação de paz e nostalgia. No entanto, essa tranquilidade é contrastada com a dor da separação e o esquecimento por parte da pessoa amada.

O eu lírico expressa um profundo arrependimento por ter conhecido a pessoa amada, desejando nunca tê-la encontrado para evitar o sofrimento subsequente. A dor é tão intensa que ele questiona por que os céus não o puniram ou por que a terra não se abriu quando seus olhos encontraram os dela. Essa hipérbole enfatiza a profundidade do seu sofrimento e a intensidade de seus sentimentos.

Apesar da dor, o eu lírico ainda bendiz as lembranças da casa na serra, as horas felizes e as palmeiras queridas. Isso mostra uma dualidade de sentimentos: a dor da perda e a gratidão pelos momentos felizes vividos. Cascatinha e Inhana, conhecidos por suas canções que frequentemente abordam temas de amor e saudade, conseguem transmitir essas emoções de maneira tocante e poética, fazendo com que o ouvinte sinta a profundidade do lamento e da nostalgia presentes na música.

Segundo Almirante "se há uma modinha que se possa considerar tradicional no Brasil, esta é chamada “Na Casa Branca da Serra”, da autoria de Miguel Emílio Pestana, com versos de Guimarães Passos. Há dezenas de anos que “Na Casa Branca da Serra” tem sido ao mesmo tempo do repertório dos seresteiros de rua como das mais graciosas senhoritas nos elegantes saraus, já em desuso" (O Pessoal da Velha Guarda, 14-12-1950).

Fontes:
https://cifrantiga3.blogspot.com/2006/04/na-casa-branca-da-serra.html
https://www.letras.mus.br/cascatinha-e-inhana/565140/significado.html

sábado, 19 de outubro de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “27”

 

José Feldman (Mais filas na Comédia da Vida)


Ah, as filas continuam! Esses longos e intermináveis serpentários que, mais do que um mero aborrecimento, se tornaram verdadeiros palcos de comédia na vida cotidiana. Se você já se viu preso em uma fila, sabe que, por mais frustrante que possa ser, sempre há espaço para boas risadas. Vamos explorar o fascinante mundo das filas em cinco cenários clássicos, onde a paciência é testada.


FILAS DO BANHEIRO: O GRANDE ENIGMA
Comecemos pela fila do banheiro, o local onde o tempo parece parar e a necessidade se torna uma questão de vida ou morte. Você está lá, na fila, e percebe que cada pessoa na sua frente parece estar enfrentando um dilema existencial. Uma mulher, com uma expressão de concentração digna de um filósofo, observa o relógio e parece estar calculando a média de tempo que cada um leva dentro da cabine.

Enquanto isso, uma criança na fila começa a fazer perguntas filosóficas sobre o que acontece dentro do banheiro. “Mamãe, por que o tio está demorando tanto? Ele está fazendo xixi ou tentou entrar em outra dimensão?” E você, ali, tentando não rir da situação, se pergunta se a resposta envolve um portal mágico.

Quando finalmente é sua vez, você entra e percebe que, em um universo paralelo, o banheiro é um spa luxuoso, mas na realidade, é só um cubículo apertado com uma descarga que faz mais barulho do que alívio. No momento em que você sai, a fila aumentou e a pergunta filosófica da criança ecoa em sua mente: “O que é mais estressante: esperar ou estar dentro?”

FILAS PARA O CINEMA: O SHOW DO ENTRETENIMENTO
Depois de sobreviver ao banheiro, você decide ir ao cinema, acreditando que a fila para comprar ingressos será mais tranquila. Mas, ah, a inocência! Na fila, você se depara com uma verdadeira assembleia de cinéfilos. Um grupo discute fervorosamente o último filme de super-herói, enquanto outro faz teorias mirabolantes sobre quem é o verdadeiro vilão da trama.

Quando finalmente chega sua vez, você percebe que o atendente tem a velocidade de um caracol em dia de folga. Enquanto você espera, começa a sentir a pressão. Decidir entre a pipoca doce ou salgada se torna um dilema filosófico. “E se eu escolher a pipoca salgada e, no meio do filme, desejar a doce? E se a pipoca doce não combina com o filme de terror que escolhi?” As angústias cinematográficas são reais!

Finalmente, você consegue comprar seu ingresso e, ao entrar na sala, descobre que a única vaga disponível é ao lado do grupo que não parou de comentar sobre o filme, mesmo durante a exibição. E assim, a fila se transforma em uma experiência de cinema interativa.

FILAS PARA O ATENDIMENTO MÉDICO: O CONSULTÓRIO DO DRAMA
Agora, é hora de ir ao médico. As filas de espera nos consultórios são um espetáculo à parte. Você entra e se depara com uma sala cheia de pessoas que parecem estar em um reality show de “Quem Tem a Doença Mais Estranha”. Ao seu lado, um senhor está explicando para a esposa que ele tem certeza de que sua dor nas costas é causada por um ataque alienígena.

Enquanto espera, você se distrai contando as plantinhas da sala, que tentam, em vão, melhorar o clima. E então, quando finalmente é chamado, você se sente como um jogador de loteria que acabou de ganhar o prêmio. Mas, ao entrar no consultório, o médico parece ter saído para um café e você acaba esperando mais cinco minutos dentro da sala, pensando se a espera estava realmente valendo a pena.

FILAS NO CARTÓRIO: O LABIRINTO DA BUROCRACIA
Depois da consulta, você precisa ir ao cartório. Ah, o cartório, onde a burocracia é elevada à categoria de arte. Você entra e se depara com uma fila que parece ter saído de um filme de terror, onde os cidadãos estão ali, cada um com sua história de desespero.

A conversa entre os que estão na fila é digna de uma comédia de stand-up . “Você já viu como é o novo formulário? Parece que é mais fácil se alistar na NASA do que tentar registrar um documento aqui!” E todos riem, compartilhando suas experiências de como preencher um simples papel se tornou um verdadeiro teste de paciência.

Quando finalmente chega sua vez, a atendente parece ter saído de um filme de ação, digitando tão rápido que você se pergunta se ela está tentando salvar o mundo ou apenas registrando um documento. E você, claro, esquece todos os documentos que deveria ter trazido.

FILAS PARA O ÔNIBUS: O TEATRO DA VIDA URBANA
Por fim, mas não menos importante, a fila para o ônibus. Chegar à parada é como um jogo de estratégia. Você se posiciona no lugar certo, mas logo percebe que alguém mais ousado já está na sua frente, como se tivesse um mapa secreto do caminho mais curto.

Enquanto espera, você ouve conversas hilárias. Um grupo de adolescentes discute se a nova série da moda é melhor que a anterior, e você se pega pensando se a vida real é tão dramática quanto as tramas que eles discutem. E quando o ônibus finalmente chega, a “luta” para entrar se transforma em uma cena de ação digna de Hollywood, com empurrões e acrobacias.

E assim, ao final de um dia repleto de filas, você percebe que a vida é um grande circo, e cada fila é uma atração à parte. Rir das situações absurdas, compartilhar histórias e até mesmo fazer amigos inesperados no caminho é o que torna tudo mais divertido. Portanto, da próxima vez que você se deparar com uma fila, lembre-se: não é apenas uma espera, é uma oportunidade de viver um pouco mais da comédia da vida!

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

Vereda da Poesia = Mário Quintana



Arthur Thomaz (O velho e o vento)

Aqui fora, conversando com o sol e com as plantas, percebo a chegada do vento mansamente sem causar alarde.

Arrisquei um "buenas tardes”, mas me disse que podia falar na minha língua, pois ele percorrera os mais distantes rincões do planeta e conhecia todos os idiomas e dialetos.

Então perguntei a ele que bons ventos o traziam (não resisti a essa brincadeira). Indaguei se ele estava com alguma dúvida.

Respondeu que sim, se era verdade que uma mulher quis tentar me estocar.

Após muitas risadas respondi que não era uma mulher e sim uma alienígena, portadora de apenas dois neurônios, e que não deveria ser levada em conta.

Mais risadas.

Nisso uma garça branca chegou, vestida de bombacha e com uma cuia de chimarrão, e depois de saudar a todos perguntou ao vento se ele já tinha lido o texto do Luís Fernando Veríssimo, o qual afirmava que pessoas tristes ouvem o vento gemer e pessoas alegres, ouvem o vento cantar.

Nesse momento, o amigo vento entoou uma maravilhosa canção encantando todos nós.

Um quero-quero e uma maritaca, que observavam a cena, vendo a boa acolhida que a garça branca teve, juntaram-se a nós. 

Formada a roda de chimarrão continuamos nossa conversa. O quero-quero, que também veio lá do sul do Brasil, disse com orgulho que tinha lido a trilogia "O tempo e o vento" de Érico Veríssimo. A maritaca já foi logo perguntando se ele tinha participado do filme "O vento levou". O vento sorriu e soprando levantou as penas da falante ave. Risadas de todos na roda.

Eu pedi que contasse algumas de suas peripécias mais atuais.

Com face de criança arteira perguntou se eu soube do cargueiro que com uma lufada o fez ficar atravessado e interromper a passagem do canal de Suez.

– Consegui o maior congestionamento de navios de todas as épocas: mais de quatrocentos.

Disse também que, às vezes, apenas se divertia levantando saias das moças ou arrancando a peruca de carecas e, há pouco tempo, levou areia do Saara e jogou nos olhos de pessoas em países que estavam atrapalhando a paz mundial.

Imaginando as cenas, rimos juntos por algum tempo.

Ele afirmou que vagara por bilhões de anos antes da vida surgir no planeta e necessitava umas peraltices para acalmar a tempestade interior (devolveu com outra brincadeira).

Um tanto nostálgico, falou que durante esses bilhões de anos no planeta, ainda sem nenhuma forma de vida, contou com a companhia de um fiel amigo: o tempo.

Ficaram tão unidos que pensaram em formar uma dupla sertaneja, Éolo & Cronos, mas desistiram porque o rádio ainda não havia sido inventado e não haveria audiência. Risos.

Indaguei o motivo de andar tão mal-humorado. 

Calmamente, ele disse que não. E que até já convocara uma coletiva de imprensa para explicar e desmentir esse boato. Tudo inútil, mal prestaram atenção no que eu disse, distraídos olhando o celular.

Já havia implorado aos seres humanos que parassem de testar bombas atômicas, que não poluíssem o meio ambiente, que não jogassem lixo nos mares e rios. Explicou que isso aquecia o ar e o jogava em correntes diferentes do seu curso normal. Quando percebia, já se transformara em ciclones ou devastadores furacões.

Eu lhe disse, com ar consternado, que não via possibilidade desses ditos humanos alterarem esse tipo de conduta. 

Que se preparem para acontecimentos piores, vaticinou.

Ele, então, me envolveu em um tépido abraço e assobiando deslocou-se para outras paragens, prometendo voltar para outras conversas.

E, de longe, brincou que por mais força que fizesse jamais despentearia o meu topete.

A borboleta, pousando em meu joelho, indagou se o vento tinha debochado de minha careca.

Até as plantas ao redor gargalharam.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: mirabolantes. Santos/SP: Bueno ed., 2021. E-book enviado pelo autor.

Recordando Velhas Canções (Se todos fossem igual a você)


(samba canção, 1957)

Compositores: Tom Jobim e Vinícius de Moraes

Vai tua vida,
Teu caminho é de paz e amor
Vai tua vida é uma linda canção de amor
Abre os teus braços
E canta a última esperança
A esperança divina de amar em paz

Se todos fossem iguais a você
Que maravilha viver
Uma canção pelo ar,
Uma mulher a cantar
Uma cidade a cantar,
A sorrir, a cantar, a pedir
A beleza de amar
Como o sol,
Como a flor,
Como a luz
Amar sem mentir,
Nem sofrer

Existiria verdade,
Verdade que ninguém vê
Se todos fossem no mundo iguais a você

A Utopia do Amor e da Paz em 'Se Todos Fossem Iguais a Você'
A música 'Se Todos Fossem Iguais a Você', de Vinicius de Moraes, é uma ode à paz, ao amor e à esperança. A letra começa com um convite à vida, destacando que o caminho a ser seguido é de paz e amor. Vinicius sugere que a vida é uma linda canção de amor, e que devemos abrir nossos braços e cantar a última esperança, que é a esperança divina de amar em paz. Essa introdução estabelece um tom otimista e idealista, onde o amor é visto como a solução para os problemas do mundo.

No refrão, Vinicius imagina um mundo onde todos fossem iguais à pessoa amada. Ele descreve esse mundo como um lugar maravilhoso para se viver, onde a música e a alegria estariam presentes em todos os lugares. A imagem de uma cidade inteira cantando e sorrindo reforça a ideia de uma sociedade harmoniosa e feliz. A beleza de amar é comparada a elementos naturais como o sol, a flor e a luz, simbolizando pureza e verdade. Amar sem mentir nem sofrer é apresentado como um ideal a ser alcançado.

A música também aborda a questão da verdade, sugerindo que a verdade que ninguém vê existiria se todos fossem iguais à pessoa amada. Isso implica que a falta de amor e compreensão é o que impede a verdade de ser percebida. Vinicius de Moraes, conhecido por suas poesias e canções que exploram temas de amor e existencialismo, utiliza essa música para expressar uma visão utópica de um mundo melhor. A simplicidade e a beleza da letra refletem a profundidade dos sentimentos humanos e a busca por um ideal de vida baseado no amor e na paz.

Em meados de 56, Vinícius de Moraes estava com a peça "Orfeu da Conceição" pronta, faltando somente conseguir um compositor para musicá-la e, se possível, orquestrá-la. Achava Vinicius que o nome ideal para a tarefa seria o de Vadico (Osvaldo Gogliano), parceiro de Noel Rosa que, convidado não aceitou.

Atendendo, então, a uma sugestão do crítico musical Lúcio Rangel, o poeta convidou Antônio Carlos Jobim, na época um jovem compositor e arranjador ainda pouco conhecido.

Começava assim a parceria Tom/Vinicius, uma das mais importantes da música brasileira, juntando o talento de um grande músico ao de um poeta consagrado e que deu como primeiro fruto "Se Todos Fossem Iguais a Você". Romântica, requintada, até com uma certa tendência para o monumental, "Se Todos Fossem Iguais a Você" é a melhor composição do repertório criado para a peça. Lançada por Roberto Paiva no final de 56 chegaria ao sucesso no ano seguinte, quando recebeu várias outras gravações.

Fontes:
Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, A Canção no Tempo. vol. 1. 1997.
https://www.letras.mus.br/vinicius-de-moraes/49284/

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

José Feldman (Grinalda de Versos) * 4 *


 

Geraldo Pereira (Colombinas Enternecidas)

As minhas saudades estão guardadas agora em dourados guizos das fantasias dos meus outroras e revivem lembranças dos carnavais que se foram e nunca mais hão de voltar. Ah, recordações dos tempos pretéritos, de amores rompidos assim, sem as antecipações dos rumores e das dores! 

Onde andarão as enternecidas colombinas de meus anos, que encantavam pierrôs apaixonados e inquietavam arlequins desesperados? E os palhaços, de roupas largas e de muitas cores, de máscaras risonhas, tocando castanhola e acompanhando o frevo de bloco ou o rasgado dos acordes?

Nem as serpentinas jogadas bem longe, nas distâncias que embalam os nostálgicos sonhos do imaginário, recuperam aqueles tempos: os salões enfeitados e os pares rodopiando alegria. E nem os confetes, com o espectro todo do arco-íris da vida, flutuando nos ares ao sabor dos ventos, vão trazer de volta os beijos roubados das mascaradas moçoilas, que escondiam a face, mas não podiam negar as formas do corpo! Se o lança perfume evaporou-se para sempre, deixou pelo menos gravado na memória das épocas o aroma gostoso que aproximava os corações ardentes, inflamando as paixões! E o mais do que tradicional corso, como uma serpente enorme, espalhando-se e se espraiando, carro após carro, caminhões enfeitados com faixas de pano, batucadas improvisadas e músicos de ocasião? O bate-bate de maracujá e a animação tomando conta do mundo pequeno dos meus dias de menino desapareceram também nos ares da vida! Era o frevo no pé e o pé no frevo, contanto que houvesse alegria na fanfarra das horas!

Revejo, então, o sacrário das minhas saudades, depositário das minhas lembranças, para acender os meus devaneios pueris, guardados ali, naquele canto das recordações dos pretéritos do existir terreno. A fantasia azul de marinheiro, da cor do céu, de gola branca e larga estava lá, engomada e passada, pronta para ser usada. Foi a minha mãe quem a manteve assim, embalando as divagações e os sonhos da criança do antes, oníricos, sobretudo diurnos, preservando os mais particulares desejos, de ver e de rever esse tempo encantado. Não adianta querer vestir a roupinha de palhaço, de fazenda estampada, com um coração muito grande preso no pano, representando os amores de uma infância feliz e bem vivida. E de que serve querer ouvir, na velha radiola de casa, os acordes dos frevos de bloco, a musicalidade de Nelson e de Capiba, tão presentes naqueles dias?

O disco de 78 rotações não tem mais em que agulhinha rodar, porque cedeu lugar aos avanços e perdeu o espaço na corrida do tempo: 

“Ah!/Saudade!/Saudade tão grande!/Saudade que tenho...” . Na madrugada do domingo, agora, não posso mais ver chegar a musa de minha rua, vestida com a fantasia de capitão, da mais pura e branca seda, aos beijos e aos abraços com o pretendente emergente, num amor de causar dor e dó a todos que a tinham na mais do que franca maneira de promover no imaginário as enlevações do espírito. Se casou ninguém sabe, ninguém viu! Sabe-se, apenas, que ficou na lembrança de muita gente!

Faço hoje mesmo o itinerário sentimental do corso e viajo pelas ruas do Recife, sem me ater aos indicativos de trânsito, às proibições do tráfego, postas aqui e ali sinalizando a modernidade, contanto que possa rever os meus passos e os meus passados, as minhas andanças, afinal, em tempos idos, acolhidos já na enorme distância das saudades! Posso ouvir o batuque cadenciado dos tamborins daqueles outroras, que no caminhão, ao fundo, animava a meninada toda! E na velha Casa de Detenção descortino os antigos sinais dos encarcerados, da gente presa ali, pendurada às grades, dando adeus à liberdade dos outros. Passo pela a rua da Concórdia inteira, o meu paço da folia à época, do começo à praça, cumprimentando em pensamento os passantes todos, as colombinas e os arlequins, os pierrôs e os palhaços, os mascarados e os papangus* que assombravam os meninos nas ruidosas manhãs de sábados encantados. Sento-me, porém, num banco qualquer e vou rebuscar encontros e desencontros dos meus derradeiros corsos! Foi aqui, relembro, falando quase, que vi a musa dos meus dias, que identifiquei o peculiar sorriso, alvo e puro, de incisivos levemente oblíquos, dando vida à beleza nascente, que a vi crescer e desenvolver na corrida do tempo, do implacável relógio marcando as horas e rodando os dias. Quando os nossos olhares se cruzavam nos ares da fanfarra, o riso adornava-lhe a face bem desenhada das esculturas forjadas pelas mãos do Criador! Tomei a mim a missão de amá-la! Melindrosa dos meus dias!

Posso, então, cantar, com o menestrel do amor: “Os melhores dias de minha vida/Eu passei contigo/Minha querida...”. Assim, atualizo as minhas saudades, lembrando os carnavais do ontem e amando a musa do hoje!
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* Papangus = Pessoa que sai à rua mascarada ou com certa fantasia, no carnaval ou em reisados.

Fonte: Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

Vereda da Poesia = Nei Garcez (Curitiba/PR)



Clarisse da Costa (Trabalho coletivo)


Você perde muitas coisas seguindo padrões. O bom profissional pensa fora da caixa. Primeiro que trabalhar no coletivo é pensar coletivamente. Temos que ser visionários. Eu não organizo uma antologia pensando no lucro, mas sim, visando o futuro de todos, pois é um trabalho coletivo.

A base de um trabalho coletivo é dedicação, troca de ideias, parcerias, diálogos abertos e ocupação de espaços, para o melhor andamento do projeto.

É necessário conhecer as pessoas com quem iremos trabalhar, por isso a importância de diálogos abertos.

Claro que conhecer as técnicas e todas as teorias faz parte do processo, entretanto precisamos usar o lado humano em algumas em algumas questões. Afinal de contas, usamos máquinas no nosso trabalho, mas não precisamos ser máquinas.

Fonte: Texto enviado por Samuel da Costa

Recordando Velhas Canções (Eu não existo sem você)

(samba-canção, 1958)


Compositores: Vinícius de Moraes e Tom Jobim

Eu sei e você sabe,
já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo
levará você de mim
Eu sei e você sabe
que a distância não existe
Que todo grande amor
só é bem grande se for triste

Por isso, meu amor, não tenha medo de sofrer
Pois todos os caminhos me encaminham prá você

Assim como o oceano só é belo com o luar
Assim como a canção só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem só acontece se chover
Assim como o poeta só é grande se sofrer
Assim como viver sem ter amor não é viver
Não há você sem mim e eu não existo sem você

A Intensidade do Amor em 'Eu Não Existo Sem Você'
A música 'Eu Não Existo Sem Você', é uma expressão lírica da intensidade e da profundidade do amor romântico. A letra transmite a ideia de que o amor verdadeiro é tão essencial à existência dos amantes que um não pode viver sem o outro. Através de comparações poéticas, Vinicius de Moraes enfatiza que a vida sem o ser amado é incompleta, assim como a canção precisa da voz para existir ou o oceano precisa da lua para ser belo.

O poeta também aborda a inevitável presença da tristeza no amor, sugerindo que o sofrimento é um componente natural e até mesmo necessário para que o amor seja grandioso. A aceitação da dor como parte do amor é um convite para enfrentar os desafios sem medo, pois todos os caminhos levam ao encontro do ser amado. A música reflete a visão de Vinicius de que o amor é um sentimento sublime, capaz de transcender distâncias e adversidades.

A canção é um clássico da música popular brasileira e reflete o estilo lírico e emocional de Vinicius de Moraes, que era conhecido como 'o poeta do amor'. Suas obras frequentemente exploram os temas do amor, da paixão e da saudade, e 'Eu Não Existo Sem Você' é um exemplo marcante dessa temática, ressoando com ouvintes que se identificam com a experiência universal do amor profundo e suas complexidades.
Fonte: https://www.letras.mus.br/vinicius-de-moraes/49268/