quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Giuseppe Paolo Dell’Orso, por ele mesmo


Chamo-me Giuseppe Paolo Dell’Orso, nasci em 15 de junho de 1927 em uma pequena cidade chamada Pieve di Soligo, localizada no interior da Itália. Desde jovem, demonstrei um profundo amor pela literatura, influenciado por meu avô, que era um poeta local. Minha infância em meio às montanhas e campos da região moldou minha sensibilidade artística, inspirando as primeiras composições poéticas. 

Após concluir o ensino médio, decidi me mudar para Roma para estudar Literatura Italiana na renomada Universidade La Sapienza. Durante meus anos universitários, me destaquei como um aluno excepcional, recebendo diversos prêmios acadêmicos, dentre os quais se destacam: 

- Prêmio de Excelência Acadêmica (1956) – Reconhecimento por minhas pesquisas inovadoras sobre a poesia moderna. 

- Bolsa de Estudos Michelangelo (1957) – Concedida a alunos com alto desempenho acadêmico, permitindo-me que realizasse um intercâmbio na Universidade de Paris. 

- Prêmio de Melhor Trabalho de Conclusão de Curso (1958) – Por minha tese sobre a influência do Renascimento na poesia contemporânea. 

Após obter meu diploma, busquei novos horizontes e me mudei para a Inglaterra, onde fui aceito no programa de pós-graduação em Literatura Comparada na Universidade de Harvard. Minha pesquisa focou na relação entre a poesia renascentista italiana e a literatura contemporânea, o que me rendeu um doutorado com honras e o prêmio Harvard Literary Fellowship, um reconhecimento pela contribuição significativa ao campo da literatura. 

Em 2001, recebi uma proposta irrecusável: lecionar Literatura Italiana em uma universidade no Brasil, no estado do Paraná. Fascinado pela cultura brasileira e pela rica diversidade literária do país, aceitei o desafio e rapidamente me adaptei à nova realidade. 

No Brasil, me envolvi profundamente com a comunidade literária, fazendo amizade com muitos escritores locais. Organizei encontros literários e oficinas de poesia, promovendo um intercâmbio cultural que unia vozes italianas e brasileiras. 

Além da carreira acadêmica e literária, sou um defensor ativo de causas sociais. Contribui para várias entidades filantrópicas tanto no Brasil quanto na Itália, focando em projetos que promovem a educação e a inclusão social. Meu envolvimento em iniciativas culturais ajudou a criar bibliotecas comunitárias e programas de alfabetização em áreas carentes. 

Apesar de aposentado, continuo a lecionar e criar. Minha jornada, que começou em uma pequena cidade italiana, me levou a se tornar um elo entre duas culturas, inspirando muitos jovens escritores e amantes da poesia. Através de minha obra e de ações, perpetuo a ideia de que a literatura é uma ponte que conecta pessoas, independentemente de fronteiras. 

A amizade que tive com o magnífico poeta José Feldman é uma história de conexão cultural e literária que começou em 2005. Desde o início de minha jornada no país, fui acolhido por Feldman, um gestor cultural reconhecido em todo território brasileiro e no exterior, que se destacou por seu trabalho em promover a literatura nacional e internacional. Conheci sua dedicação pela trova e pela literatura em geral na Biblioteca de Parma, onde há diversas trovas e poemas de sua autoria em revistas da região. Nos conhecemos em um evento literário em Curitiba, onde eu estava estava apresentando minhas obras e minha visão sobre a interseção entre a literatura italiana e brasileira. Feldman, impressionado com a sensibilidade e a musicalidade dos poemas, se aproximou para discutir as possibilidades de colaboração e intercâmbio cultural. A amizade rapidamente se fortaleceu, baseada em uma profunda admiração pelo trabalho um do outro. Fiquei impressionado com o empenho de Feldman em promover a literatura e a cultura, não apenas no Paraná, mas também em um contexto mais amplo, por pura paixão. Mais ainda pelo seu conhecimento ímpar dos poetas de países europeus, africanos e americanos, com quem muitos deles possui contato. José Feldman, além de ser um poeta e escritor talentoso, é um fervoroso defensor da literatura mundial, organizando concursos e oficinas que conectam escritores de diferentes origens. 

Juntos, iniciamos diversos projetos que visavam fomentar a literatura e a troca cultural entre Brasil e Itália. A parceria resultou em oficinas de poesia, leituras públicas e intercâmbios de escritores, permitindo que vozes diversas fossem ouvidas e celebradas. Feldman, como um grande incentivador, sempre me apoiou na divulgação de minhas obras, ajudando a criar um espaço onde a poesia pudesse florescer, com seu blog que existe desde 2007. 

A influência de Feldman na minha carreira literária é inegável. Através de suas iniciativas, não só ajudou a promover minhas obras, mas também contribuiu para a criação de uma comunidade literária vibrante, ao mesmo tempo que eu trazia uma nova perspectiva à cena literária, enriquecendo o diálogo cultural com nossas experiências e visões. 

A nossa amizade é um exemplo de como a literatura pode unir pessoas de diferentes culturas e origens. Juntos, promovemos a poesia e a literatura, mostrando que a arte é uma ponte que conecta corações e mentes, independentemente das fronteiras. A admiração mútua e a colaboração entre nós é um testemunho do poder transformador da amizade na literatura.

Sou autor de diversos livros, tanto em italiano quanto em português, com destaque para a poesia. Meus poemas refletem a fusão entre a tradição literária italiana e as influências culturais brasileiras. 

As publicações são: 

- "Sussurros da Terra": uma coletânea de poesias que explora a beleza natural do Brasil e suas semelhanças com a paisagem italiana. 

- "Coração Trovador": um livro que reúne poemas inspirados na tradição trovadoresca, adaptados ao contexto contemporâneo. 

- "Versos entre Culturas": uma obra que aborda o diálogo entre as literaturas italiana e brasileira. 

– "Fragmentos do Eu": esta coletânea de poemas reflete sobre a busca pela identidade em um mundo multicultural. Utiliza imagens e metáforas para capturar a complexidade das experiências pessoais, abordando como as raízes familiares e as influências culturais moldam quem somos. 

– "Cantos da Terra": neste livro, exploro a conexão entre o ser humano e a natureza, traçando paralelos entre as paisagens italianas e brasileiras. A obra destaca a importância da preservação ambiental e celebra a beleza dos diferentes ecossistemas, refletindo sobre como eles impactam a vida e a cultura. 

– "Ecos de Outras Vozes": uma coletânea que reúne poemas inspirados por poetas de diversas culturas. Homenageio influências literárias de diferentes partes do mundo, mostrando como a poesia pode ser um meio de diálogo entre tradições diversas. 

– "Entre Fronteiras": este livro aborda a experiência de viver entre culturas e os desafios e alegrias que isso traz. Compartilho relatos poéticos sobre minhas vivências no Brasil e na Itália, enfatizando as interações e os aprendizados que surgem dessas experiências. 

– "Sussurros do Coração": uma obra mais introspectiva, onde reflito sobre emoções universais, como amor, perda e esperança. Os poemas abordam a conexão humana, independentemente das diferenças culturais, destacando a empatia como um valor essencial. 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 66

 

José Feldman (A Biblioteca dos Portais)

No coração da cidade de Elidória, cercada por ruas de paralelepípedos e edifícios antigos, havia uma biblioteca que poucos conheciam. Chamava-se "A Biblioteca dos Portais". Seu exterior era modesto, com uma fachada de tijolos desgastados e janelas empoeiradas, mas aqueles que se aventuravam a entrar descobriam um mundo de maravilhas.

A biblioteca era enorme e labiríntica, com estantes que se estendiam até o teto e escadas que pareciam se mover sozinhas. Mas o que a tornava realmente especial eram as portas. Cada uma delas, de madeira antiga e ornamentos intricados, levava a um mundo completamente diferente.

A Biblioteca possui uma magia própria que a torna única e misteriosa. Sua escolha de visitantes não se baseia em critérios comuns, mas sim em uma conexão íntima entre o coração da pessoa e o espírito da biblioteca. Aqui estão algumas maneiras de como essa seleção ocorre:

Intenção Pura
A biblioteca é sensível às intenções dos visitantes. Aqueles que entram com um desejo genuíno de explorar, aprender ou encontrar respostas são atraídos para dentro. A curiosidade e a abertura de espírito são fundamentais para serem escolhidos.

Sinais e Coincidências
Muitas vezes, os futuros visitantes encontram sinais antes de chegarem à biblioteca. Pode ser um livro esquecido em um banco, uma conversa sobre a biblioteca que escutam ao passar, ou mesmo um sonho recorrente. Esses sinais são como convites sutis que a biblioteca envia para aqueles que estão prontos.

Experiências de Vida
A biblioteca também parece reconhecer a jornada de vida de cada um. Pessoas que passaram por desafios significativos, ou que buscam inspiração após uma perda ou mudança, frequentemente sentem uma atração inexplicável pelo local. A biblioteca se conecta com essas experiências, oferecendo mundos que refletem suas necessidades e anseios.

Escolhas do Coração
Quando um visitante entra, a biblioteca parece avaliar o que está em seu coração. Se alguém está lutando com medos, pode ser levado a um mundo como o das Sombras, onde aprenderá a enfrentar suas inseguranças. Se busca criatividade, pode ser atraído para o Reino dos Sonhos. Essa escolha é feita de maneira quase intuitiva, guiada por uma sabedoria antiga.

O Tempo e o Destino
Por fim, o tempo desempenha um papel crucial. A biblioteca é atemporal, e às vezes, os visitantes chegam em momentos específicos de suas vidas, quando estão mais receptivos a mudanças e descobertas. Essa sincronia entre o momento certo e a pessoa certa é o que torna cada visita especial.

A Biblioteca dos Portais não apenas escolhe seus visitantes; ela os reconhece. Cada pessoa que atravessa suas portas é vista e compreendida, e a magia do lugar oferece experiências que ressoam profundamente com suas almas. Assim, cada visita se torna uma jornada transformadora, onde a biblioteca se revela não apenas como um espaço físico, mas como um guia espiritual na busca pelo autoconhecimento e pela aventura.

A primeira porta que Marla, uma jovem curiosa, decidiu abrir era forrada com um veludo azul profundo. Ao atravessá-la, ela se encontrou no Reino dos Sonhos, onde as nuvens eram feitas de algodão-doce e os rios corriam com néctar. Os habitantes eram criaturas etéreas, feitas de luz e sombra, que podiam transformar pensamentos em realidade.

Ela passou dias explorando esse lugar mágico, aprendendo a moldar seus próprios sonhos. Fez amizade com um pequeno dragão de cristais chamado Lúcio, que a ensinou a voar. Quando decidiu voltar, Lúcio lhe deu uma pena brilhante como lembrança, dizendo que ela poderia usar para lembrar-se sempre de que seus sonhos eram possíveis.

A próxima porta que Marla encontrou era coberta por musgo verde e tinha um som suave como o sussurrar do vento. Ao abri-la, ela entrou na Floresta dos Ecos, onde cada palavra proferida se tornava um eco que dançava entre as árvores. As árvores eram altas e antigas, e as folhas pareciam cantar em harmonia.

Ali, ela conheceu uma sábia coruja chamada Eldrin, que a ensinou sobre o poder das palavras. Também aprendeu que as histórias contadas na floresta se transformavam em vida, e que cada eco era uma memória que moldava o futuro. Ao sair, Eldrin a presenteou com um livro em branco, prometendo que cada história que ela escrevesse teria o poder de ressoar na floresta para sempre.

A terceira porta era feita de um metal brilhante, quente ao toque. Ao cruzá-la, Marla se viu no Deserto da Ilusão, um lugar onde as miragens eram tão reais que poderiam enganar até os mais sábios. As dunas brilhavam sob o sol escaldante, e figuras dançavam à distância, sempre fora de alcance.

Lá, conheceu Zara, uma viajante que havia perdido seu caminho. Juntas, elas enfrentaram as ilusões, aprendendo a distinguir o que era real do que era apenas uma miragem. Zara revelou que o deserto testava a coragem e a determinação de quem passava por ele. Quando finalmente conseguiram encontrar a saída, Zara deu a Marla um espelho, dizendo que ele a ajudaria a ver além das aparências.

A última porta que Marla encontrou era feita de madeira escura e emanava um frio intenso. Ao abri-la, ela se viu no Mundo das Sombras, onde as luzes eram escassas e as criaturas pareciam se esconder nas trevas. Contudo, havia uma beleza estranha nesse lugar, com constelações brilhando em um céu noturno.

Ela conheceu um ser chamado Noctis, que guardava os segredos das sombras. Ele a ensinou que as sombras não eram para ter medo, mas sim para serem compreendidas. Com sua ajuda, Marla aprendeu a dançar com as sombras, a transformar o medo em arte. Quando decidiu voltar, Noctis deu a ela uma pequena lanterna, dizendo que ela nunca deveria esquecer a luz que existe mesmo nas trevas.

Após suas aventuras, Marla retornou à biblioteca, onde as portas agora pareciam mais brilhantes do que antes. Com cada objeto que trazia de seus mundos — a pena, o livro, o espelho e a lanterna — ela percebeu que não só tinha explorado novos lugares, mas também descoberto partes de si mesma.

Ao sair da biblioteca, ela não era mais a mesma. Tinha histórias para contar, experiências para compartilhar e, acima de tudo, um novo entendimento sobre a vida e suas possibilidades. A cada visitante que passava pela porta, ela se tornava uma contadora de histórias, levando um pouco da magia da biblioteca para o mundo real, inspirando outros a explorarem suas próprias portas e a descobrirem os mundos que habitam dentro de si.

Existem várias histórias sobre pessoas que tentaram entrar na Biblioteca dos Portais, mas não conseguiram. Essas experiências muitas vezes se tornam lendas na cidade de Elidória, servindo como avisos e reflexões sobre a natureza da biblioteca e a importância da intenção.

Um homem chamado Artur, conhecido por sua visão pragmática e ceticismo em relação a tudo que era mágico, decidiu que queria provar que a biblioteca era apenas uma fábula. Ao chegar à porta, ele empurrou-a com firmeza, mas, para sua surpresa, a porta não se abriu. Ele tentou novamente, mais insistentemente, mas nada aconteceu. A biblioteca, percebendo sua falta de crença e abertura, decidiu que ele não estava pronto. Artur saiu frustrado, mas a experiência o levou a refletir sobre suas crenças, e, eventualmente, ele se tornou uma pessoa mais receptiva ao mistério da vida.

Um grupo de amigos, animados e ansiosos para explorar, chegou à biblioteca em um dia ensolarado. Eles estavam tão distraídos com suas conversas e risadas que não notaram a aura mágica ao redor do lugar. Quando tentaram abrir a porta, ela parecia selada. Confusos, tentaram várias vezes, mas a porta não se abriu. A biblioteca, percebendo que suas intenções não eram genuínas e que estavam mais interessados na diversão do que na descoberta, decidiu não deixá-los entrar. Deveriam dar importância à calma e a atenção ao momento presente.

Uma mulher chamada Eliana, em busca de respostas para uma tragédia pessoal, chegou à biblioteca com o coração pesado e a mente confusa. Ela queria desesperadamente escapar da dor, mas sua ansiedade e desespero eram tão intensos que a biblioteca não a reconheceu como uma visitante pronta. Ao invés de abrir a porta, uma voz suave ecoou em sua mente, aconselhando-a a encontrar paz dentro de si antes de buscar fora. Ela saiu, não sem dor, mas determinada a trabalhar em seu interior.

Um jovem chamado Leo, cheio de curiosidade, decidiu que queria explorar todos os mundos da biblioteca em uma única visita. Ele se aproximou da porta, mal conseguindo esperar para entrar. Sua impaciência era palpável, e quando tentou abrir a porta, ela permaneceu firmemente fechada. A biblioteca, percebendo sua falta de respeito pelo processo e pela jornada, decidiu que Leo não estava pronto para a profundidade da experiência que oferecia. Grandes descobertas requerem paciência e respeito.

Essas histórias ilustram que a Biblioteca dos Portais não é apenas um lugar físico, mas um espaço que exige introspecção e sinceridade. As portas podem ser fechadas, mas cada tentativa frustrada serve como um aprendizado, preparando os visitantes para a verdadeira magia que aguarda aqueles que entram com o coração aberto e a mente receptiva. Cada história de negação se transforma em uma lição valiosa, guiando as pessoas em suas jornadas pessoais até que estejam prontas para cruzar o limiar da descoberta.

E assim, a Biblioteca dos Portais continuava a ser um lugar onde a imaginação não conhece limites, e onde cada porta abre um novo capítulo na história de quem se atreve a cruzá-la.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Vereda da Poesia = Ari Santos Campos (Balneário Camboriú/SC)



Célio Simões* (“A bico de pena”)

No ano 4.000 a.C., o homem já sulcava superfícies rochosas com utensílios de osso ou bronze. No ano 3.000 a.C. egípcios e chineses escreviam com  finíssimos pincéis e canetas feitas de junco. Em 1.300 a.C. romanos, asiáticos e anglo-saxões encontraram formas de escrever na cera, usando estiletes de metal. A pena de ganso e de outras aves (corvo, águia, coruja, ganso e peru) foi o instrumento de escrita mais usado no ocidente desde o século VI até o início do século XIX. A mais comum e fácil de conseguir era a de ganso, animal doméstico. O uso das penas de aves na escrita exigia muito tempo para prepará-las, precisavam ser constantemente apontadas e tinham curta durabilidade. No final do século XVIII finalmente apareceram as penas de metal, que se popularizaram depois de 1850, quando ficaram mais resistentes com a utilização de metais como irídio e ródio.

Desde o século XVII houve várias tentativas de produzir uma caneta que tivesse reservatório de tinta. Embora em 1819 John Scheffer tenha produzido sua primeira caneta tinteiro, e em 1832 John Jacob Parker tenha lançado a primeira caneta auto-recarregável, só em 1884 Lewis Waterman patenteou sua caneta "Ideal", ao produzir um modelo que não vazava. Os sucessivos avanços técnicos encontraram novos materiais e soluções cada vez mais práticas e limpas para encher o reservatório de tinta sendo que,  até a década de 1960, as canetas tinteiro eram instrumentos de uso cotidiano, por profissionais e estudantes, embora seu uso na escola fosse restrito aos alunos de famílias mais abastadas. 

Marcas famosas pontificaram no mercado, como as canetas Sheaffer, Johann Faber, Compactor, Goldem e a cobiçada Parker nas versões 45, 61 e 75, sendo que nenhuma delas foi tão desejada como a Parker 51, considerada verdadeira joia, hoje comparada, guardadas as proporções, à extraordinária e caríssima Montblanc, que dá status social e econômico aos seus donos. Porém, durante a década de 1960, a estudantada carente consagrou as canetas tinteiro Skater, que esteticamente se destacavam por seus coloridos rajados em marrom, azul e verde, afora o preço acessível. Seu caráter utilitário era às vezes desvirtuado pelos jovens estudantes, que empunhando suas canetas, travavam entre si embates com esguichos de tinta na hora do recreio, emporcalhando os uniformes de seus “adversários”, o que lhes rendia a esperada e merecida reprimenda de pais e mestres. 

Em 1938 o jornalista húngaro László Biró, junto com seu irmão György, criou uma caneta recarregável com ponta em forma de esfera móvel que ao girar distribuía tinta de modo uniforme no papel. Biró a patenteou e começou a fabricar esferográfica na Argentina, onde se fixou a partir de 1940. Em 1945 as primeiras esferográficas foram vendidas com muito sucesso no mercado americano, mas como não funcionavam bem logo caíram em desuso. Em 1949 o barão francês Marcel Bich introduziu a esferográfica "Bic" na Europa e em 1958 ele entrou no mercado americano comprando a empresa Waterman Pen Company. Em 1959, com ampla campanha publicitária na TV, a caneta esferográfica Bic foi vendida nos Estados Unidos por apenas 29 centavos de dólar. A Bic chegou ao Brasil em 1961 e seu baixo custo substituiu as de penas metálicas que ainda eram usadas nas escolas. E veio para ficar, pois revolucionou os hábitos de escrita de milhões de pessoas em todo o mundo.

Já o chamado desenho A BICO DE PENA utiliza penas metálicas especiais para criar quadros, cartuns e histórias em quadrinhos. A técnica remonta à Idade Média, quando os monges e escribas copiavam manuscritos à mão. Foi muito utilizada para desenhos no ocidente europeu do século VI até ao século XVIII e até hoje inspira seguidores, como o artista plástico, pesquisador e escritor paraense Sebastião Godinho, membro da Academia Paraense de Letras, que se dedica à produção de belos quadros, retratando monumentos e prédios históricos de Belém, usando essa refinada técnica. 

Na MPB, José Fortuna - cantor, compositor, autor teatral, ator brasileiro e autor de sucessos como a guarânia "Índia", que aparece no disco de "Meu Primeiro Amor" (também de sua versão) gravados originalmente no ano de 1952 - compôs a música que denominou de “BICO DE PENA”, cuja repercussão deve-se ao fato de ser interpretada por Tonico e Tinoco, dupla caipira formada pelos irmãos João Salvador Perez e José Salvador Perez, considerada uma das mais importantes da história da música brasileira, que na primeira estrofe da  extensa letra aborda o tema: 

Com pena peguei na pena
Para com pena escrevê
Alembrando de Ritinha
Que comigo eu vi crescê!
Foi escrevendo estes versos
Comparando meu vivê
Com este bico de pena
Que escreveu o meu padecê...

Atualmente, o computador e os softwares de desenho substituíram o papel, o lápis e a tinta na produção de cartuns e nas histórias em quadrinhos, mas ainda há artistas que preferem a leveza e a sensibilidade do traço manual, minucioso, detalhista e preciso, com que encantam o público mercê do seu grande talento e de sua insuperável arte. (fonte: web)
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(*) O autor é advogado, escritor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Artística e Literária de Óbidos, da Confraria Brasileira de Escritores, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós. 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Francisco Gabriel* (A aurora sobre o mar)


Na década de 1990, tínhamos uma casa de praia, no povoado de Barreta, distante cerca de 50 quilômetros da nossa capital, Natal. Pelo menos uma vez a cada mês, nós frequentávamos esse local. Eu e minha esposa ainda éramos jovens e os meus filhos, André e Aline, ainda eram crianças,

Enquanto estávamos veraneando, o nosso dia era preenchido pelo banho de mar, pelas caminhadas nas areias de um morro que ficava em frente à nossa casa, e pela confraternização com os amigos. Lembro-me muito do meu compadre Antônio Gordo, que não parava de comer e beber, e de diversos familiares da minha esposa, especialmente as suas primas Neta e Marluce.

À noite, juntos com os nativos, liderados por Luiz de Tindor, participávamos da pesca de aratus com facho, além de outras aventuras. Mas o que mais me deslumbrava era ficar contemplando o firmamento; lá não havia iluminação pública, com isso as estrelas pareciam que estavam bem próximas da Terra, formando, simbioticamente, um só véu. A Lua era um espetáculo à parte, parecia uma bola de fogo, saindo de dentro d'água.

Nesse tempo, eu me acostumei a acordar cedo e ficava, ao final de cada madrugada, na varanda, esperando o nascer da aurora. Era de uma beleza indescritível, parecia que o dia estava nascendo do ventre do mar. Nesse período, eu observei também que cada dia a aurora nascia com um colorido diferente, como se dissesse: "Hoje eu estou bela, mas me veja amanhã, que eu estarei ainda mais bela".

Todos os fatos acontecidos naquela praia ou foram sepultados pelo tempo, ou viraram escombros, exceto o deslumbre que eu sentia ao observar a Lua e as estrelas e, especialmente, a beleza da aurora perfumando as minhas madrugadas; isso permanece vivo em um recanto da minha alma.
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* O autor é de Natal/RN

(esta crônica obteve o 5. Lugar no Concurso de Crônicas Adulto Nacional “Foed Castro Chamma”, em 2020, com o tema Aurora)

Fontes: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Jerson Brito (Asas da poesia) 02

 

José Feldman (O Cruzeiro das Trapalhadas)


Era uma vez um casal muito peculiar: Epitáfio e Etelvina. Eles decidiram que era hora de uma aventura e, com isso, embarcaram em um cruzeiro para as deslumbrantes Ilhas Gregas. O barco, o "Navegador do Sol", estava repleto de passageiros animados, todos prontos para desfrutar do calor e das belezas naturais. Mas, como todos sabem, quando Epitáfio está por perto, a aventura nunca é apenas uma simples viagem, não consegue ficar quieto, parece que tem tachinhas nos pés.

Assim que embarcaram, Epitáfio, sempre entusiasmado, começou a explorar o navio como se fosse uma criança em uma loja de doces.

— Olha, Etelvina! — exclamou ele, apontando para uma escada em espiral. — Vamos ver onde isso nos leva!

— Epitáfio, espera! — gritou Etelvina, mas ele já tinha desaparecido. Quando ela finalmente o encontrou, ele estava em cima de uma mesa de sinuca, tentando “fazer um truque”.

— Epitáfio, desça daí! Você vai quebrar alguma coisa! — disse ela, com a mão na cabeça.

— Não se preocupe, querida! Eu sou um mestre do equilíbrio! — ele respondeu, e, claro, assim que se inclinou para mostrar isso, escorregou e caiu de costas no chão, fazendo a mesa balançar e as bolas de sinuca rolarem pelo convés.

Os passageiros que assistiam à cena começaram a rir. Um senhor idoso até comentou:

— Olha, o novo esporte do cruzeiro: sinuca acrobática!

No dia seguinte, na hora do almoço, Epitáfio decidiu que era sua vez de ajudar. Ele foi até o buffet e, com toda a sua boa intenção, começou a servir comida para os dois.

— Aqui está, Etelvina! Uma especialidade grega! — disse ele, colocando uma porção generosa de tzatziki* no prato dela.

— Epitáfio, isso é demais! — reclamou ela, mas ele não a ouviu. Em um movimento desastrado, ele derrubou um jarro de azeite, que escorreu pelo chão como um rio dourado.

Os passageiros ao redor começaram a rir novamente. Uma senhora, com um olhar divertido, comentou:

— Acho que o Epitáfio está tentando criar um novo prato: “Azeite à la Epitáfio”.

Depois do almoço, Epitáfio decidiu que era hora de se divertir na piscina. Ele pulou na água de forma tão exagerada que fez uma onda gigantesca, que molhou todos os que estavam próximos.

— Epitáfio! Você não pode fazer isso! — gritou Etelvina, que estava secando o cabelo com uma toalha.

— Relaxa, amor! É só um pouco de diversão! — respondeu ele, enquanto tentava nadar, mas em vez disso, começou a se debater como um peixe fora d'água.

Os passageiros, entre risadas e sustos, começaram a se afastar da borda, enquanto um marinheiro observava tudo com uma expressão de incredulidade.

Eventualmente, o capitão do navio, um homem robusto com uma voz que poderia fazer uma tempestade silenciar, decidiu intervir.

— Senhor Epitáfio! — chamou ele, enquanto se aproximava. — Eu preciso que o senhor fique em sua cabine por um tempo. Você está causando caos!

— Mas eu só estava me divertindo! — respondeu Epitáfio, fazendo uma careta.

— Sua diversão está deixando os passageiros um pouco… nervosos! — disse o capitão, tentando manter a compostura.

— Tudo bem, capitão! — Epitáfio se rendeu, enquanto Etelvina soltava um suspiro de alívio.

No entanto, Epitáfio não estava disposto a ficar em sua cabine. Assim que o capitão se afastou, ele viu uma oportunidade e escapuliu.

— Ah, eu só quero dar uma volta! — murmurou ele para si mesmo, caminhando pelo convés. Sem perceber, ele se aproximou da borda do navio e, ao tentar se esconder de um grupo de marinheiros, escorregou e caiu direto no mar.

O grito que ele deu ecoou pelo navio:

— Etelvina! Socorro! Estou afundando!

Os passageiros, agora em um misto de choque e riso, correram até a borda para ver o que estava acontecendo. Etelvina, horrorizada, gritou:

— Epitáfio! Volte aqui!

Os marinheiros, já acostumados com as trapalhadas de Epitáfio, entraram em ação. Um deles, um jovem chamado João, pulou na água e nadou até Epitáfio.

— Calma, amigo, eu estou aqui! — disse João, enquanto puxava Epitáfio de volta para o barco.

Ao ser resgatado, Epitáfio estava todo encharcado, mas com um sorriso no rosto.

— Eu sempre quis experimentar a natação em alto-mar! — exclamou ele, enquanto todos ao redor caíam na risada.

Quando finalmente conseguiram voltar ao convés, o capitão, agora com um sorriso no rosto, não pôde deixar de comentar:

— Bem, senhor Epitáfio, você definitivamente trouxe um novo significado para o "cruzeiro".

Etelvina, com a cabeça nas mãos, não sabia se ria ou chorava. Mas, no fundo, sabia que, com Epitáfio, cada dia seria uma nova aventura.

— Apenas não me faça passar por isso novamente, por favor! — pediu ela, enquanto abraçava o marido.

Epitáfio piscou:

— Prometo que na próxima vez, eu só vou fazer trapalhadas em terra firme!

E assim, o casal continuou sua viagem pelas Ilhas Gregas.

O casal, agora um pouco mais consciente das reações dos passageiros, tentou se comportar, mas a natureza atrapalhada de Epitáfio estava longe de ser domada.

Na primeira parada, Santorini, a beleza das casas brancas e das vistas deslumbrantes deixou Etelvina encantada. No entanto, Epitáfio estava mais interessado na comida local.

— Vamos experimentar aquele prato que dizem que é uma delícia! — sugeriu ele, apontando para uma taverninha.

Etelvina hesitou:

— Epitáfio, lembre-se da última vez que você decidiu experimentar algo novo.

Mas Epitáfio já estava na porta, e em um instante estava pedindo uma moussaka** gigantesca. Quando o prato chegou, ele não conseguiu conter a empolgação e, em sua pressa, derrubou a bandeja, cobrindo o garçom e a mesa ao lado com molho quente.

— Desculpe! — gritou ele, enquanto todos ao redor se esquivavam.

Na segunda parada, o casal decidiu fazer uma excursão de barco para explorar as caldeiras. O guia, um homem charmoso, começou a falar sobre a história da ilha, mas Epitáfio, distraído pelo movimento do barco, decidiu que era hora de tirar fotos.

Ele se levantou abruptamente para captar a vista e, ao fazer isso, quase derrubou a câmera de um passageiro.

— Olha, pessoal! É uma selfie em alto-mar! — exclamou ele, tentando equilibrar a câmera. O resultado foi um álbum de fotos com Epitáfio em posições hilárias, com o fundo das caldeiras sempre desfocado.

Etelvina não sabia se ria ou se ficava envergonhada. Mas, no final, todos estavam se divertindo e tirando selfies com Epitáfio.

Na última noite do cruzeiro, o navio organizou uma festa de gala. Todos estavam elegantes, e Etelvina, em um vestido deslumbrante, parecia uma verdadeira deusa grega. Epitáfio, por outro lado, decidiu que uma gravata borboleta colorida seria o toque final do seu traje.

Durante o jantar, enquanto a orquestra tocava, Epitáfio tentou dançar, mas acabou pisando no pé de um dos dançarinos profissionais, que estava fazendo uma apresentação. O homem, surpreso, girou e, sem querer, acabou arrastando Epitáfio para o centro da pista.

— Vamos lá, Epitáfio! Mostre o seu talento! — gritou um dos passageiros, incentivando-o.

Epitáfio, sem saber o que fazer, começou a dançar de forma desajeitada, fazendo movimentos engraçados que rapidamente contagiou a plateia. Todos começaram a rir e aplaudir, e logo ele se tornou o centro das atenções.

Quando o cruzeiro finalmente chegou ao seu fim, Epitáfio e Etelvina se sentaram no convés, observando o sol se pôr sobre o mar.

— Apesar de tudo, foi uma viagem incrível, não foi? — disse Etelvina, com um sorriso.

— Com certeza! — respondeu Epitáfio, olhando para ela com adoração. — E quem diria que eu seria o rei no final?

— E o herói das selfies! — brincou Etelvina.

Enquanto o navio se afastava das ilhas, o casal percebeu que cada trapalhada de Epitáfio se tornara uma lembrança especial. Eles não apenas viveram uma aventura, mas também aprenderam a rir juntos, mesmo nas situações mais embaraçosas.

Ao desembarcarem, Epitáfio olhou para Etelvina e disse:

— O que você acha de planejarmos outra viagem? Quem sabe para… as montanhas?

Etelvina riu, balançando a cabeça:

— Apenas se você prometer não escorregar em nenhuma trilha!

E assim, com o coração leve e o espírito divertido, Epitáfio e Etelvina embarcaram em novos planos, prontos para mais aventuras, sabendo que, independentemente das desventuras, o mais importante era estarem juntos.
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* Tzatziki = é um acepipe típico da culinária da Grécia e da Turquia, mas também difundido entre outros países da Europa Oriental, Oriente Médio e Índia, sob diferentes denominações e com inúmeras variações regionais: seja quanto à consistência, seja quanto às ervas e especiarias adicionadas à preparação básica, que se compõe de iogurte, pepino e alho.

** Moussaka = Mussaca ou Mussacá é uma especialidade gastronômica do Oriente Médio, típico das culinárias grega e turca, entre outras, sendo, na versão árabe, um cozido de grão de bico com berinjelas, muito comum na culinária vegana. Pode ser também uma variação de lasanha italiana, só que grega, muitíssimo saborosa. Essa versão é originalmente feita com carne de carneiro, berinjelas, e tomate, sempre condimentado com azeite, cebola, ervas e fortemente temperado com pimenta ou malagueta.


Fontes: 
José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul
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Monsenhor Orivaldo Robles (Ao filho de pais caretas)


Você não lembra, é claro. Nem teria como lembrar. Era muito pequeno. Eles o pegavam no colo. Abraçavam, apertavam, acontecia de mordê-lo. Por vezes, você acabava chorando, sufocado pelo excesso de um carinho que eles não sabiam dosar. Se conseguisse falar, você diria: “Parem com isso. Estão me machucando. Sou muito fraquinho”. Mas reclamar para quem? Os avós faziam pior. Parece que disputavam para ver quem judiava mais.

Você nunca pensou nisso, mas sua vinda foi muito esperada. Desde quando descobriram que estava a caminho, você tornou-se o centro da vida deles. Não havia assunto mais importante, preocupação maior. Tudo era para você, que ia chegar.

Você provocou grande transformação em sua mãe. Ela se tornou mais sensível, emotiva, meio dengosa. Chorava à-toa, parecia insegura, se irritava por nada. Voltou a ser, outra vez, uma adolescente. Ou quase. Seu pai sentiu-se meio perdido. De repente, passou a achar estranha a mulher com quem vivia.

Depois que você nasceu, complicou de vez. Vieram trapalhadas com sua higiene, alimentação, saúde... Em várias situações eles se perdiam. Vinha-lhes à mente perguntar: E agora, fazer o quê? Criança devia vir com manual de instruções.

Hoje você é forte, bonitão e se considera dono de um mundo que se abre aos seus pés. Capaz de tomar decisões, de resolver o que é melhor, o que vale a pena na vida. “Sei o que estou fazendo” diz, com uma segurança que talvez nem eles demonstrem. Você os olha com piedoso pouco caso, como se para outra coisa não servissem além de pegar no seu pé.  De vez em quando, não tem vontade de dizer, se é que já não disse: “Pô, velho(a), dá um tempo?”

Com vinte anos, você está quilômetros à frente deles, não? Eles nada sacam do que acontece hoje. Já tiveram a vez deles; agora é a sua. Por que tanta bronca com seu jeito, se assim fazem todos os seus amigos? Você não precisa de conselhos. Não acreditam que ninguém faz a sua cabeça? Que já é grande para decidir entre o certo e o errado? Que sabe escolher o que o fará feliz? Que sabe afastar-se do que vai prejudicá-lo?

Pois é. As desgraças do mundo, que você tanto condena, foram causadas por gente que julgava não precisar de conselhos. Achava que sabia tudo; os outros, sim, é que não passavam de um bando de tapados. “Foram adultos que construíram o mundo podre que está aí”, dirá você. Está coberto de razão. Adultos que, com a idade que você tem hoje, se comportavam como donos da verdade. Não aceitavam palpite nem admitiam mudar coisa alguma em sua vida.

Se amanhã você entrar numa roubada, daquelas que parecem não oferecer saída, sabe quem ficará do seu lado? Não vão ser os amigos que em tudo lhe dão razão, eu garanto. Nem a gata que só lhe diz aquilo que você gosta de ouvir.

Amar não é coisa de momento. Amor de verdade é para a vida inteira. Enquanto você viver, será amado pelos seus pais. Ainda que lhe custe acreditar. Amar não é concordar sempre e a propósito de tudo. É, muitas vezes, ter coragem de dizer não. Mesmo com lágrimas. Guarde esta verdade: lágrima de pai e mãe não sai dos olhos, sai do coração. Porque é com o coração que se ama. Você nem existia ainda e eles já o amavam.

Vereda da Poesia = César Torraca (Rio de Janeiro/RJ)



Renato Frata* (Sorriso de Algodão Doce)

O escritor Renato Benvindo Frata é de Paranavaí/PR
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Deem-lhe a forma que quiserem, cores que apetecerem e embalagens que imaginarem, o algodão-doce é e continuará como símbolo de alegria e terá sempre o formato do sorriso de criança ao descobrir a delícia.

Garanto que sua receita saiu da imaginação do mais requintado anjo, desses que fazem de um tudo quando estão de bem com a vida.

Eram momentos de espera quando, nas férias escolares, circos e parques de diversões aportavam na cidade. Criavam expectativa desde a montagem com homens movimentando peças e a grande lona, os extensos cordões incandescentes, até a bela iluminação da portaria a dizer a que veio.

Vivas eram dadas quando alguém aparecia com o indefectível carrinho de chapa esmaltada contornado de vidros e, de posse de uma corneta acionada a apertos de mãos, anunciava num megafone de lata o famoso doce. Havia também pipocas, balas, pirulitos, mas nenhum se igualava ao sabor indiscutível do algodão.

As buzinadas assanhavam lombrigas, enchiam de água nossas bocas, arregalavam nossos olhos movidos pela excitação que nos levava a buscar moedas nos bolsos dos pais, ou licença de mães para mexermos na caneca de trocados.

Um algodão-doce valia o dia! A semana! As férias inteiras. 

Eram instantes de agonia que encorajavam na fila reacendendo a fé, porque comer algodão-doce naquela época, só mesmo nessas ocasiões. Não havia as máquinas que hoje habitam shoppings, nem a gastura imposta pela medicina de que provoca cáries em crianças e diabetes em adultos. Ninguém ligava para isso. Médicos, dentistas, eram difíceis de encontrar e, quando se os encontravam, estavam na fila do algodão também.

Delícia era permanecer ali, uma verdadeira tourada à inquietação, até chegar nossa vez e acompanhar, encantados, a vibração do disco quente a produzir teias de fios finíssimos, que rapidamente se amontoavam e engrossavam ao redor de uma hastezinha de bambu inteirando-se em alvos e doces chumaços a adoçar nosso desejo, inquietação, harmonia e felicidade.

Nossos olhos se injetavam nas órbitas, esperando o momento da primeira bocada morna que rapidamente sumia derretida calcando na boca o sabor inigualável do açúcar queimado, para deixar fiapos incrustados ao redor da boca até o nariz que nos faziam estirar a língua para não perder um tico da gostosura... Coisas que produziam felicidade na simplicidade do algodão.

Ouso dizer que não conheço doce mais doce a se inventar, não com a doçura definitiva e inconfundível que trazia o bem-querer entre a transição da infância e puberdade.

Claro que cada um pode escolher qualquer doce que represente o sorriso.

O doce que escolho se esconde no açúcar trefilado por aquecimento e centrifugação em máquinas especiais, magicamente transformado em fios e estes em chumaços... como os que encontrávamos nas portas de circos e parques, no saudoso ontem.

Fontes: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor
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Paulo Cezar Tórtora* (Crônica de uma manhã de sol)


A janela aberta, no sétimo andar do hotel em uma cidade serrana, despeja para dentro do meu 
apartamento a exuberância da mata atlântica, a apenas alguns metros de distância. O sol matinal abraça a vegetação, celebrando a explosão de vida que grassa por entre o arvoredo.

Debruçado à janela reparo, tocaiado entre os arbustos, o menino. Silencioso, espreita sua caça. Tem nas mãos uma atiradeira, que retesa, apontando cuidadosamente para a copa das árvores mais altas. Os dedos que distendem os elásticos abrem-se, simultaneamente! Consigo ouvir a bolinha de gude partir como uma bala, "zásss!...", estraçalhando a folhagem em seu caminho até emudecer o canto de um sabiá, num baque surdo que arrebenta seu peito.

O menino corre a tempo de aparar a queda do corpo agonizante, antes mesmo que ele chegue ao chão. Assiste, impassível, ao último estertor da ave moribunda, em suas próprias mãos. Nem liga para o rubro do sangue que tinge seus dedos. Ao ver-me na janela a observá-lo, esboça um sorriso e some por entre as árvores.

Na sua inocência ignora que seu casto sorriso celebra a ignorância. Desconhece o que seja a covardia, a brutalidade gratuita e as mais elementares leis do convívio harmonioso entre homens, natureza e animais ditos irracionais. Terá pais que moldem seu caráter ainda na infância? Tornar-se-á um homem de bem? Quem poderá adivinhar os caminhos que lhe reservam os enredados fios do destino?...

Sem muita convicção, disse para mim mesmo que tudo daria certo, era preciso ser otimista. Afinal, era apenas um menino. Recolhi minhas dúvidas e apreensões. Fechei a janela. Fui para a rua. Lá fora a aurora me chamava.
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* O autor é Do Rio de Janeiro/RJ

(esta crônica obteve o 4. Lugar no Concurso de Crônicas Adulto Nacional “Foed Castro Chamma”, em 2020, com o tema Aurora)

Fontes: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.
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domingo, 24 de novembro de 2024

Luiz Poeta (Nuvens de Sonhos) 02

 

José Feldman (O Relógio das Memórias)

Em um futuro não muito distante, as pessoas começaram a perceber que o tempo não era apenas uma sequência de momentos, mas uma tapeçaria intricada de memórias. Em uma pequena cidade chamada Palatium, um inventor excêntrico chamado Victor criou um dispositivo revolucionário: o “Relógio das Memórias”. Este relógio tinha a capacidade de capturar e reproduzir memórias de forma vívida, permitindo que as pessoas revivessem momentos de suas vidas como se estivessem acontecendo novamente.

Victor, um homem de cabelos desgrenhados e olhos brilhantes, sempre acreditou que as memórias eram a essência da vida. Ele passou anos em seu laboratório, cercado por engrenagens e dispositivos, até que finalmente completou sua obra-prima. O Relógio das Memórias não apenas armazenava recordações, mas também as transformava em experiências sensoriais completas. As cores, os sons, os cheiros — tudo poderia ser revivido com um simples toque.

A cidade estava em polvorosa quando Victor apresentou seu invento ao público. 

“Imaginem, meus amigos!” ele exclamou. “Poder reviver os melhores momentos de suas vidas! Conhecer novamente aqueles que amamos, sentir a euforia da juventude, ou até mesmo corrigir erros do passado!” 

A multidão estava atenta, maravilhada com a ideia de ter suas memórias ao alcance da mão.

Entre os espectadores estava Clara, uma jovem professora de história. Clara sempre teve um amor profundo pelas memórias, especialmente as de sua infância, quando passava horas ouvindo sua avó contar histórias de tempos passados. Ao final da apresentação, Clara sentiu uma atração irresistível pelo Relógio. O desejo de reviver suas memórias mais queridas a levou até Victor.

“Posso experimentar?” perguntou Clara, sua voz trêmula de emoção.

“Claro!” respondeu Victor, ajustando os dials do relógio. “Escolha uma memória.”

Clara hesitou, mas logo decidiu: “Quero reviver o dia em que minha avó me contou sobre sua juventude.”

Assim que Clara tocou o relógio, a sala se iluminou e, em um piscar de olhos, ela se viu na cozinha de sua avó, o aroma de bolo de cenoura fresco no ar. As paredes estavam adornadas com fotos antigas, e o sol filtrava-se pelas cortinas, criando um ambiente acolhedor. Sua avó, com um sorriso caloroso, começou a falar sobre sua juventude e as aventuras que a vida lhe proporcionara.

Clara sentiu a alegria inundar seu coração. Ela riu, chorou e se lembrou do quanto amava aquelas histórias. O tempo passou, mas para Clara, tudo parecia tão real quanto antes. No entanto, quando a experiência terminou, uma tristeza profunda a envolveu. Ela percebeu que, apesar de reviver momentos felizes, não poderia alterar o que havia passado.

Com o passar do tempo, o Relógio das Memórias se tornou uma sensação na cidade. As pessoas começaram a usá-lo com frequência, cada vez mais dependentes das memórias que podiam reviver. No entanto, algo bizarro começou a acontecer. As pessoas estavam se tornando incapazes de viver no presente. Elas se isolavam, preferindo a segurança de suas memórias a enfrentar a realidade.

Clara, preocupada com o que estava vendo, decidiu confrontar Victor. 

“Victor, as pessoas estão se perdendo! Elas estão tão obcecadas por reviver suas memórias que esquecem de viver! O relógio se tornou uma prisão!”

Victor, que antes estava entusiasmado, agora parecia preocupado. 

“Eu não previ isso. A intenção era boa, mas talvez tenhamos aberto uma porta que não deveria ser aberta.”

Determinada a mudar a situação, Clara começou a pesquisar sobre o impacto das memórias e do tempo na vida humana. Ela descobriu que as memórias, embora belas, também podiam ser dolorosas. A idealização do passado impedia que as pessoas apreciassem o presente e planejassem o futuro.

Clara decidiu que precisava fazer algo radical. Junto com algumas pessoas da cidade, criou um movimento chamado “Viva o Agora”. As pessoas eram incentivadas a se desconectar do Relógio e a redescobrir a alegria de viver no presente. Era uma batalha difícil, pois o Relógio havia se tornado um símbolo de status e felicidade.

Em um evento público, Clara subiu ao palco e se dirigiu à multidão. 

“Amigos, o passado é uma parte de quem somos, mas não podemos deixá-lo nos aprisionar! Precisamos viver cada dia como se fosse um novo começo! O Relógio das Memórias pode ser uma ferramenta, mas não pode ser a nossa vida!”

Enquanto falava, Victor a observava, orgulhoso e triste ao mesmo tempo. Ele percebeu que havia criado algo que não só capturava memórias, mas também capturava as pessoas. Ele decidiu desativar o Relógio, mesmo que isso significasse perder sua invenção.

A decisão de Victor trouxe a cidade de volta ao presente. As pessoas começaram a se reconectar com suas vidas, a valorizar o que tinham agora, ao invés de viver no passado. Clara tornou-se uma líder na comunidade, ajudando as pessoas a entender o valor do presente.

O Relógio das Memórias foi desmontado e suas peças foram transformadas em arte. As pessoas começaram a criar suas próprias histórias e memórias, agora sem a ajuda de um dispositivo. Elas aprenderam a aceitar o tempo como um fluxo natural, onde cada momento, por mais simples que fosse, tinha seu valor.

Anos depois, em uma tarde ensolarada, Clara estava sentada em um parque, cercada por crianças rindo e brincando. Ela sorriu ao lembrar de sua avó e das histórias que tanto amava. Agora, Clara contava suas próprias histórias para as crianças, criando novas memórias.

E assim, a passagem do tempo tornou-se uma celebração da vida. As memórias não eram mais algo a ser revivido, mas uma parte de uma narrativa contínua. O Relógio das Memórias pode ter desaparecido, mas a essência do tempo, com todas as suas alegrias e tristezas, continuava a ser a verdadeira magia da vida.

Fontes: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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