sábado, 14 de dezembro de 2024

O. Henry* (Maio, Mês Matrimonial)

Por favor, surrai o poeta quando ele vos quiser cantar as delícias de maio. É um mês presidido por espíritos malignos e insensatos. Duendes e diabretes assombram os bosques floridos; Puck e seu séquito de anões estão ativos na cidade e no campo.

Em maio, a Natureza nos brande um dedo admoestador para advertir-nos de que não somos deuses, mas membros enfatuados de sua grande família. Recorda-nos que somos irmãos do burro e do clã dos mariscos condenados à sopa, que somos descendentes em linha reta do amor-perfeito e do chimpanzé, e apenas primos-irmãos das rolas arrulhantes, dos patos grasnadores, das empregadas domésticas e dos policiais dos parques.

Em maio, Cupido atira às cegas — milionários casam-se com estenógrafas; judiciosos professores cortejam mascadoras de goma, de aventais brancos, que servem nos balcões dos lanches rápidos; diretoras de escola retêm os meninos maiores depois das aulas; rapazes com escadas atravessam furtivamente gramados onde Julieta espera, em sua janela de rótula, com o telescópio embrulhado; casais que saem para um passeio voltam matrimoniados; velhos de polainas brancas passeiam nas imediações da Escola Normal; mesmo os homens casados tomam-se sem querer carinhosos e sentimentais, dão palmadinhas nas costas das esposas e resmungam: "E então, minha velha?"

Maio, que não é deusa, mas Circe fantasiada para o baile em honra da linda debutante, o Verão, nos torna a todos estouvados. 

O velho Mr. Coulson resmungou um pouco, e depois aprumou-se na cadeira de inválido. Sofria terrivelmente de gota em um dos pés, e era dono de uma casa perto de Gramercy Park, de meio milhão de dólares e de uma filha. E tinha uma governanta, Mrs. Widdup. O fato e o nome merecem, cada qual, uma sentença. Têm-nas.

Quando maio cutucava Mr. Coulson, ele se tornava irmão mais velho das rolas. Na janela junto da qual se sentava, havia jardineiras com junquilhos, jacintos, gerânios e amores-perfeitos. A brisa trazia-lhes os aromas para dentro do aposento. Imediatamente travava-se luta renhida entre as fragrâncias das flores e o eflúvio eficiente e ativo do linimento para gota. O linimento levava a melhor; mas não antes de o perfume das flores esmurrar o nariz de Mr. Coulson. A obra fatídica de maio, falsa e implacável feiticeira, fora levada a cabo.

Através do parque, chegavam ao órgão olfativo de Mr. Coulson outros cheiros inegáveis, característicos e registrados da primavera, exclusivos da Grande-Cidade-Sobre-o-Metropolitano, Cheiro de asfalto quente, de cavernas subterrâneas, de gasolina, patchuli, casca de laranja, gás de rua, gurabas de Albany, cigarros egípcios, cimento, e tinta fresca de jornais.

A brisa que soprava era doce e branda. Pardais esvoaçavam felizes por toda a parte. Jamais confiai em maio.

Mr. Coulson retorceu as pontas do bigode encanecido, maldisse o pé, e esmurrou a campainha posta na mesa a seu lado.

Surgiu Mrs. Widdup. Era uma quarentona loira louçã, lépida e ladina.

— Higgins saiu, sir — disse, com um sorriso reminiscente de massagens vibratórias. — Saiu para postar uma carta. Deseja alguma coisa, sir?

— Está na hora do acônito — respondeu o velho Mr. Coulson. — Pingue as gotas para mim. Ali está o vidro. Três gotas. Em água. Maldito Higgins! Ninguém desta casa se importará se eu morrer nesta cadeira por falta de cuidados.

— Não diga isso, sir — retrucou. — Alguém se importará muito mais do que se possa imaginar. Disse treze gotas, sir?

— Três — retorquiu o velho Coulson.

Tomou a dose e a seguir a mão de Mrs. Widdup. Ela corou. Oh, sim, é fácil de fazer. Basta prender a respiração e comprimir o diafragma.

— Mrs. Widdup — disse Mr. Coulson —, a primavera chegou de vez.

— Não é mesmo? — replicou Mrs. Widdup. — O ar está realmente quente. Vêem-se anúncios de cerveja em toda esquina. O parque está cheio de flores amarelas, rosas e azuis; e eu sinto dores agudas nas pernas e no corpo todo.

— "Na primavera" — citou Mr. Coulson, retorcendo o bigode — "a fantasia de um j...", quero dizer, "de um homem inflama-se com pensamentos de amor."

— Que coisa! Não é mesmo? — exclamou Mrs. Widdup. — Parece que está no ar!

— “Na primavera” — continuou o velho Mr. Coulson — “a mais viva íris reluz sobre a lustrosa pomba.”

— São mesmo ardentes, os irlandeses — suspirou Mrs. Widdup, pensativa,

— Mrs. Widdup, — tornou Mr. Coulson, fazendo uma careta ao sentir uma pontada no pé gotoso — esta seria uma casa muito solitária sem a senhora. Sou um..., quero dizer, sou um homem de idade... mas tenho apreciável fortuna. Se meio milhão de dólares em títulos do governo e o afeto verdadeiro de um coração que, embora não pulse mais com os primeiros ardores da mocidade, ainda assim palpita de genuíno...

O estrondo de uma cadeira derrubada junto ao reposteiro do quarto contíguo interrompeu a venerável inconsciente vítima de maio. No aposento entrou Miss Van Meeker Constantia Coulson, trinta e cinco anos, alta, ossuda, conservada, nariz emproado, insensível, bem-educada, perfeito espécime do estilo de Gramercy Park. Ela levou aos olhos seu lornhão (armação sem hastes) . Mrs. Widdup inclinou-se num átimo e pôs-se a arranjar as ataduras do pé gotoso de Mr. Coulson.

— Pensei que Higgins estivesse aqui — disse Miss Van Meeker Constantia.

— Higgins saiu — explicou-lhe o pai — e Mrs. Widdup atendeu ao meu chamado. Assim está melhor, Mrs. Widdup, muito obrigado. Não, não preciso de mais nada.

A governanta retirou-se, corando sob o olhar frio e inquiridor de Miss Coulson.

— Este tempo de primavera é maravilhoso, não acha, minha filha? — disse o velho, conscientemente consciente.

— É isso mesmo — replicou Miss Van Meeker Coastantia Coulson, algo sibilinamente, — Quando começam as férias de Mrs. Widdup, papai?

— Creio que ela disse daqui a uma semana — respondeu Mr. Coulson. Miss Van Meeker Constantia deteve-se por um minuto junto à janela, a contemplar o pequeno parque, banhado pelo brando sol da tarde. Com olhos de botânica inspecionou as flores — as mais poderosas armas de maio insidioso. Com os pulsos gélidos de uma virgem de Colônia, repeliu o ataque da suavidade etérea. As flechas do sol aprazível caíram por terra, enregeladas, da fria panóplia do seu peito insensível. A fragrância das flores não despertava sentimentos ternos nos recessos inexplorados de seu coração adormecido. O pipilar dos pardais a aborrecia. Ela zombava de maio.

Embora Miss Coulson fosse impenetrável à estação, era bastante arguta para avaliar-lhe o poder. Sabia que homens idosos e mulheres de cintura grossa saltavam como pulgas amestradas ao som da ridícula música de maio, gaio mês zombeteiro. Já ouvira falar, antes, de velhos e tolos cavalheiros que desposavam suas governantas. Que coisa humilhante, afinal de contas, o tal sentimento chamado amor!

Na manhã seguinte, às 8 horas, quando chegou o entregador de gelo, a cozinheira avisou-o de que Miss Coulson queria falar-lhe no portão.

— Ora, ora, não é que estou ficando irresistível? — disse o entregador, admirado de si próprio.

Como concessão, desenrolou as mangas da camisa, largou os ganchos junto de uma seringueira, e entrou. Quando Miss Vau Meeker Constantia Coulson o interpelou, ele tirou o chapéu.

— Há uma entrada nos fundos deste porão — disse Miss Coulson — que pode ser atingida pelo terreno baldio vizinho, onde estão escavando os alicerces de um edifício. Quero que traga por esse caminho, dentro de duas horas, 500 quilos de gelo. Pode contratar um ou dois ajudantes. Vou mostrar-lhe onde deve ser depositado o gelo. Quero que me entregue 500 quilos diariamente, da mesma maneira, nos próximos quatro dias. A companhia pode debitar a despesa na nossa conta habitual. Tome isto pelo seu trabalho adicional.

Miss Coulson estendeu-lhe uma nota de dez dólares. O entregador inclinou-se, e segurou o chapéu com ambas as mãos atrás das costas.

— Com a sua licença, senhora. Será um prazer servi-la em tudo quanto desejar.

Pobre mês de maio!

Por volta do meio-dia, Mr. Coulson derrubou dois copos que estavam sobre a mesa, quebrou a mola da campainha, e gritou por Higgins, tudo ao mesmo tempo.

— Traga-me um machado — ordenou, sarcasticamente —, ou encomende um pouco de ácido prússico, ou chame um policial para me matar. Prefiro isso a perecer gelado.

— Parece mesmo estar esfriando, sir — replicou Higgins. — Eu ainda não havia reparado. Vou fechar a janela.

— Feche — disse Mr. Coulson. — É a isso que chamam de primavera? Se continuar assim, voltarei para Palm Beach. Esta casa parece um necrotério.

Mais tarde, apareceu Miss Coulson, a indagar solícita como ia passando o pé gotoso.

— Constantia — inquiriu o velho —, como está o tempo lá forá?

— Limpo — respondeu Miss Coulson —, mas friozinho.

— Parece inverno brabo — tornou Mr, Coulson.

— Um exemplo de "inverno adormecido no colo da primavera" — disse Constantia, olhando distraidamente pela janela —, embora a metáfora não seja de muito bom gosto.

Um pouco mais tarde, ela se esgueirou pelo lado do pequeno parque e foi até a Broadway fazer umas compras.

Mais tarde ainda, Mrs. Widdup entrou no quarto do inválido.

— Chamou, sir? — perguntou, exibindo várias covinhas. — Pedi a Higgins que fosse à farmácia e julguei ter ouvido a campainha.

— Não, não chamei — respondeu-lhe Mr. Coulson.

— Receio tê-lo interrompido ontem — continuou Mrs. Widdup — quando estava para me dizer algo.

— Por que está fazendo tanto frio nesta casa, Mrs. Widdup? — atalhou o velho, severamente.

— Frio, sir? — disse a governanta. — De fato, já que me chama a atenção, parece mesmo que esse quarto está muito frio. Mas lá fora está quente e agradável como em junho. Em dias assim, o coração da gente parece querer pular para fora da blusa! E a hera toda viçosa nas paredes da casa, e os realejos a tocarem, e as criancinhas a dançarem nas calçadas… é o tempo próprio para confessar o que nos vai no coração! Ontem o senhor dizia...

— Mulher! — trovejou Mr. Coulson —, a senhora é uma tonta! Pago-a para tomar conta desta casa. Morro de frio no meu próprio quarto e a senhora me chega com uma conversa despropositada sobre heras e realejos. Vá buscar-me um sobretudo imediatamente. E veja que todas as portas e janelas estejam fechadas. Uma velha gorda, irresponsável e obtusa como a senhora a tagarelar sobre primavera e flores em pleno inverno! Quando Higgins voltar, diga-lhe que me traga um grogue quente. E agora suma-se daqui!

Quem poderá, todavia, vencer a impudência vivaz de maio? Maroto que é, e perturbador da paz dos homens de bom senso, nem a esperteza de uma virgem prudente, nem um depósito de gelo o fará empalidecer na luminosa galáxia dos meses.

Ah, sim, a história ainda não terminou.

Passou-se uma noite, e na manhã seguinte Higgins ajudou o velho Coulson a levar sua cadeira até a janela. A gelidez do quarto desaparecera e pela janela aberta chegavam perfumes divinais e odores amenos.

Mrs. Widdup entrou apressadamente e postou-se junto à cadeira. Mr. Coulson estendeu sua mão ossuda e tomou a mão rechonchuda da governanta.

— Mrs. Widdup — disse —, esta casa não seria um lar sem a senhora. Possuo meio milhão de dólares. Se isso, e o verdadeiro afeto de um coração não mais no verdor da idade, mas ainda cálido, puder...

— Já descobri a causa do frio — atalhou Mrs. Widdup, inclinando-se para a cadeira. - Foi gelo, toneladas de gelo, no porão e na casa da fornalha, por toda parte. Fechei os registros pelos quais o frio subia até o seu quarto, Mr. Coulson, pobrezinho! E agora els-nos em maio outra vez.

— Um coração fiel — tornou o velho Coulson, algo divagantemente — que a primavera fez reviver, e... que dirá minha filha, Mrs. Widdup?

— Nada receie, sir — replicou ela, alegremente. — Miss Coulson fugiu com o entregador de gelo ontem à noite!
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*O. Henry, pseudônimo de William Sydney Porter, nasceu em 11 de setembro de 1862, em Greensboro, Carolina do Norte/EUA. Ele teve uma infância marcada por várias mudanças, já que seu pai era um médico e sua mãe morreu quando ele era jovem. Em sua juventude, trabalhou em diversas funções, incluindo como balconista e farmacêutico. Em 1896, após ser acusado de desvio de fundos em seu trabalho como caixa em um banco, ele se mudou para a América do Sul, onde começou a escrever. Ao retornar aos Estados Unidos, ele adotou o pseudônimo O. Henry e começou a publicar contos em revistas, ganhando fama por suas narrativas envolventes e reviravoltas surpreendentes. O. Henry teve uma vida pessoal tumultuada, marcada por problemas financeiros e saúde. Ele faleceu em 5 de junho de 1910, em Nova York, mas deixou um legado duradouro na literatura com suas histórias que capturam a essência da vida urbana e a natureza humana.
Obras Relevantes: Heart of the West, 1907; The Caballero's Way, 1907; The Gift of the Magi, 1905; Four Million, 1906; The Last Leaf, 1907.
O. Henry é lembrado por seu estilo ágil e por suas histórias que frequentemente apresentam finais inesperados, tornando-o um dos mestres do conto curto na literatura americana.

Fontes: O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909.
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Vereda da Poesia = Dorothy Jansson Moretti (Três Barras/SC, 1926 - 2017, Sorocaba/SP)



Célio Simões* (O nosso português de cada dia) “Dor de Cotovelo”

No senso comum, sentir dor de cotovelo significa sentir inveja. Simples assim… 

Na doutrina católica, junto com a soberba, a avareza, a ira, a luxúria, a gula e a preguiça, a inveja é um dos sete terríveis pecados capitais. Para quem não sabe os chamados pecados capitais são considerados desde o Século XIII, pelo catolicismo, como os pais de todos os demais vícios, más ações e maus pensamentos da humanidade. E são capitais porque tem origem no latim “caput”, que significa cabeça ou parte superior. Os juristas sabem disso, acostumados que estão pela frequente consulta ao “caput” de um determinado artigo de lei. 

Identificar alguém com uma tremenda “dor de cotovelo” ou mesmo um invejoso não é tarefa difícil, a partir da observação de próprio comportamento, destacando-se nele os seguintes distúrbios de personalidade: 

1) são muito competitivos, pois reivindicam as atenções apenas para si e querem sempre estar à frente dos demais, mesmo que para tirar uma simples fotografia; 

2) não costumam fazer elogios aos outros, mas adoram ser elogiados ou simplesmente se autoelogiar; 

3) sentem prazer em criticar todo mundo, mesmo imotivadamente, deles ninguém escapa; 

4) subestimam ou desdenham as conquistas alheias e exaltam apenas as suas, mesmo que não sejam relevantes ou significativas. 

Trata-se, evidentemente, de um sentimento altamente destrutivo, maléfico e mesquinho, mas que infelizmente está presente no cotidiano das relações pessoais de qualquer grupo social. É comum dizer-se que alguém ficou “roxo de inveja”, quando não, com “dor de cotovelo” pelo êxito de outrem. Daí o antigo sábio adágio: “O invejoso adoece quando o vizinho passa bem”… 

No íntimo, o invejoso é um coitado, que sofre e até se sente mal pelas conquistas alheias. Ele é incapaz de ficar feliz pelos outros, pois em sua tosca concepção de vida, a vitória de alguém representa para ele uma espécie de perda pessoal. 

A origem da expressão está associada à cotovelada, que passou a ser utilizada como um sinal discreto para chamar a atenção de alguém ao lado sobre algo incomum ou extravagante, sempre possível de ser censurado ou ridicularizado. O invejoso inadvertidamente se revelava ao tocar com o cotovelo o corpo de quem lhe estava próximo para que ele reparasse em algum detalhe da conduta alheia e partilhasse com ele o mesmo sentimento de despeito que, num círculo vicioso, é exclusivamente resultante da própria inveja. Se alguém dava muitas cotoveladas por estar a todo o momento procurando algo para reprovar, botar defeito, criticar ou falar mal, era natural e razoável que lhe doesse o dito cujo no final do dia. 

Há quem diga que foi do famoso compositor Lupicínio Rodrigues, cantor de músicas do estilo “fossa”, a autoria da expressão “dor de cotovelo”. A música dor-de-cotovelo, também conhecida por fossa, atualmente virou sofrência e existe desde que o rapaz da caverna conheceu a moça da outra caverna, de quem levou um tremendo fora. Modernamente, o termo faz alusão a aquele relacionamento que acabou, mas a pessoa não quer admitir a perda. 

Como diz o rei Roberto Carlos, “não adianta nem tentar me esquecer”. É a trilha para uma dor de cotovelo, embora cheia de orgulho pelo desafio sub-reptício que lança… (julga-se inesquecível). Inconformado, a vítima se escora na dura madeira de um balcão de bar, para esquecer o amor perdido e se embriagar. É a cena clássica de alguém sentado em um bar, com os cotovelos apoiados no balcão enquanto mexe uma bebida em um copo e chora o amor que perdeu. 

Ontem como hoje, também é comum utilizar a expressão “dor de cotovelo” para designar o indisfarçado recalque provocado pelo ciúme, a tristeza causada por uma decepção amorosa, a mágoa de alguém por não ter êxito em determinada conquista ou qualquer outra desilusão principalmente no campo sentimental.
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(*) O autor é advogado, escritor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Artística e Literária de Óbidos, da Confraria Brasileira de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós.

Fontes: Uruá Tapera. 08 julho 2021
https://uruatapera.com/dor-de-cotovelo/ 
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Estante de Livros ("A Leste do Éden" de John Steinbeck*)

"A Leste do Éden" ("East of Eden"), publicado em 1952, é uma das obras mais ambiciosas de John Steinbeck, explorando temas de moralidade, identidade e o conflito entre o bem e o mal. A narrativa se passa na Califórnia, principalmente no Vale de Salinas, e entrelaça as histórias de duas famílias, os Trask e os Hamilton, ao longo de várias gerações.

ENREDO

O romance começa com a introdução das famílias Hamilton e Trask. Adam Trask é um dos protagonistas, um homem que se muda para o Vale de Salinas com a esperança de criar uma vida melhor. Ele é marcado por um relacionamento conturbado com seu pai, que tem uma visão rígida e opressiva da vida. A história logo revela a rivalidade entre Adam e seu irmão, Charles. A tensão entre eles culmina em um confronto violento, refletindo a luta pela aceitação e o amor paterno.

Adam eventualmente se casa com Cathy Ames, uma mulher manipuladora e sem escrúpulos, que logo se revela uma mãe negligente ao abandonar Adam e seus filhos gêmeos, Cal e Aaron. A ausência de Cathy afeta profundamente a vida dos filhos, que crescem em um ambiente marcado por conflitos internos e rivalidades.

TEMAS CENTRAIS

1. O Conflito entre o Bem e o Mal: 

Um dos temas mais proeminentes é a luta interna entre o bem e o mal. O conceito de “tu podes” é central à obra, sugerindo que cada indivíduo tem o poder de escolher seu próprio destino. Essa ideia é fundamental para a evolução dos personagens, especialmente Cal, que busca redimir-se das ações de sua mãe.

2. Identidade e Hereditariedade:

Steinbeck explora a influência do passado na formação da identidade. Cal e Aaron lutam para definir quem são em meio ao legado de sua mãe e as expectativas do pai. A busca por aceitação e amor é uma constante em suas vidas.

3. Relações Familiares: 

As dinâmicas familiares são complexas e multifacetadas. A relação entre irmãos, a influência dos pais e a busca por conexão são temas centrais. Steinbeck apresenta a família como uma força poderosa, capaz de moldar e destruir ao mesmo tempo.

4. Ambiente e Natureza: 

O Vale de Salinas é mais do que um cenário; é um personagem que reflete as emoções e as experiências dos protagonistas. A natureza é retratada como uma força vital que influencia as vidas dos personagens, simbolizando tanto beleza quanto desafios.

PERSONAGENS PRINCIPAIS

- Adam Trask: Um homem bondoso, mas ingênuo, que busca amor e aceitação. Sua vida é marcada por uma relação conturbada com seu pai e seu irmão, Charles.

- Charles Trask: O irmão de Adam, que representa a inveja e a rivalidade. Sua relação com Adam é complexa, marcada por ciúmes e a busca pela aprovação paterna.

- Cathy Ames: A esposa de Adam, uma personagem manipuladora e sombria que abandona a família. Cathy simboliza o mal e a desumanidade, desafiando as noções de maternidade e amor.

- Cal e Aaron Trask: Os filhos gêmeos de Adam e Cathy, que refletem a dualidade entre o bem e o mal. Cal, em particular, luta com a sombra de sua mãe e a busca por aceitação.

A história entrelaça a herança dos Trask com a vida dos Hamilton, uma família que representa a bondade e a moralidade. Samuel Hamilton, patriarca da família, é um sábio agricultor que serve como mentor para Adam e seus filhos, trazendo uma perspectiva mais esperançosa à narrativa.

ESTILO E LINGUAGEM

Steinbeck utiliza uma prosa rica e poética, imbuída de um forte senso de realismo. Seus personagens são desenvolvidos com profundidade emocional, e a narrativa é entremeada por reflexões filosóficas que elevam a história a um nível mais profundo. O autor faz uso de diálogos autênticos, capturando a voz do povo e a complexidade das relações humanas.

IMPACTO E RELEVÂNCIA

"A Leste do Éden" é frequentemente considerado um dos grandes romances americanos, e sua relevância perdura ao longo do tempo. A obra não apenas oferece uma crítica social e uma reflexão sobre a moralidade, mas também toca em questões universais que continuam a ressoar com os leitores contemporâneos.

FILME "VIDAS AMARGAS"

"Vidas Amargas" (título original: "East of Eden") é uma adaptação cinematográfica de 1955, dirigida por Elia Kazan e estrelada por James Dean, Julie Harris e Raymond Massey. A película se concentra principalmente na relação entre Cal e Aaron Trask, trazendo à tona os conflitos familiares e a luta pela aceitação.

A adaptação de Kazan é notável por sua capacidade de capturar a essência emocional da obra de Steinbeck, embora tome algumas liberdades criativas. James Dean, em sua performance como Cal, traz uma intensidade emocional que personifica a luta interna do personagem. A relação entre irmãos é retratada com profundidade, enfatizando o tema da rivalidade e da busca por amor paterno.

O filme se concentra mais na luta de Cal para superar seu passado e a influência de sua mãe do que na complexidade da narrativa original. A adaptação é visualmente impressionante, utilizando a cinematografia para evocar a beleza e a dureza do Vale de Salinas.

 CONSIDERAÇÕES FINAIS

"A Leste do Éden" explora questões universais sobre a condição humana, a moralidade e as complexidades das relações familiares. Enquanto o romance de Steinbeck oferece uma visão abrangente e multifacetada, a adaptação cinematográfica de Kazan destaca a intensidade emocional dos personagens, tornando a história acessível a um público mais amplo. Ambas as obras permanecem relevantes, refletindo as lutas atemporais da humanidade e a busca por identidade e aceitação.
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*John Steinbeck nasceu em 27 de fevereiro de 1902, em Salinas, Califórnia. Cresceu em uma família de classe média e teve acesso à literatura desde jovem, o que influenciou sua carreira. Estudou na Universidade de Stanford, embora não tenha concluído o curso. Trabalhou em diversas funções, incluindo como operário agrícola e jornalista, experiências que moldaram sua visão social. Durante a Grande Depressão, começou a escrever obras que abordavam as dificuldades dos trabalhadores e as injustiças sociais. Ele se tornou um dos maiores escritores americanos do século XX, ganhando o Prêmio Nobel de Literatura em 1962. Faleceu em 20 de dezembro de 1968, deixando um legado duradouro na literatura.

Obras Mais Relevantes: "O Destino Viaja de Ônibus" (1937); "As Vinhas da Ira" (1939); "A Pérola" (1947); "A Leste do Éden" (1952); "O Inverno de Nosso Descontentamento" (1961)

Essas obras refletem a preocupação de Steinbeck com a condição humana e as injustiças sociais, consolidando seu lugar como um dos grandes escritores da literatura americana.

Fonte: José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 11 *

 

José Feldman (Fábula do Gato, do Cachorro, da Raposa e do Homem)

Naqueles tempos em que os animais falavam. 

Em uma aldeia tranquila, um gato chamado Felix, um cachorro chamado Bruno, e uma raposa chamada Bela, viviam em harmonia, cada um com suas peculiaridades, mas sempre respeitando as diferenças uns dos outros. 

Felix, o gato, era astuto e independente. Passava os dias explorando os telhados e caçando pequenos insetos. Bruno, o cachorro, era leal e protetor. Passava seu tempo cuidando da casa de seu dono e brincando com as crianças da aldeia. Bela, a raposa, era curiosa e hábil, sempre buscando novas aventuras na floresta. 

Certa manhã, enquanto os três amigos se reuniam perto da fonte, um homem apareceu na aldeia. Ele era conhecido por ser muito rico, mas também muito ganancioso. O homem tinha ouvido falar das habilidades únicas de cada um dos animais e decidiu que os queria para si. Assim, ele planejou capturá-los. 

Felix, com sua astúcia, percebeu os olhares do homem e alertou seus amigos. “Vocês viram aquele homem? Ele não parece confiável. Precisamos ter cuidado.” 

Bruno, sempre protetor, respondeu: “Devemos nos unir e confrontá-lo. Juntos, poderemos nos defender.” 

Bela, porém, tinha uma ideia diferente. “E se usássemos a astúcia de Felix e a força de Bruno para despistá-lo? Podemos mostrar a ele que não somos brinquedos para serem possuídos.” 

Os três concordaram em criar um plano. Enquanto Felix se escondia entre as sombras, Bruno latiu alto, atraindo a atenção do homem. Assim que o homem se aproximou, Felix saltou rapidamente de onde estava, surpreendendo-o e fazendo-o tropeçar. Bela, ágil como sempre, correu em círculos ao redor do homem, criando uma distração. 

O homem, confuso e irritado, tentou capturar Bela, mas ela era muito rápida. Com um último movimento astuto, ela levou o homem a correr atrás dela em direção à floresta. 

Os três amigos aproveitaram a oportunidade para se afastar, rindo juntos de sua esperteza. 

No entanto, enquanto corriam, Bela começou a se sentir culpada. “Acho que fizemos algo errado. O homem, por mais ganancioso que seja, apenas queria nos levar com ele. Não podemos simplesmente desprezar os sentimentos dos outros.” 

Felix concordou, mas Bruno estava preocupado. “Mas ele só faria isso para nos explorar. Não podemos permitir que isso aconteça.” 

Após algumas horas de reflexão, eles decidiram voltar à aldeia. Enfrentariam o homem e tentariam convencê-lo a mudar seus modos. Com coragem no coração, os três se aproximaram da casa do homem. 

Quando chegaram, encontraram-no sentado na varanda, visivelmente frustrado. “O que vocês querem?” perguntou o homem, com um tom de desdém. 

Felix, sempre astuto, começou: “Viemos aqui para conversar. Sabemos que você tem suas razões para querer nos capturar, mas gostaríamos de lhe mostrar que a amizade e a liberdade são mais valiosas do que a posse.” 

Bruno acrescentou: “Você pode ter tudo o que deseja, mas a verdadeira felicidade não vem de dominar os outros. Vem de compartilhar e respeitar.” 

Bela, com sua sinceridade, finalizou: “Se você nos deixar livres, poderá se surpreender com o que podemos oferecer. A amizade é um presente que não se pode comprar.” 

O homem, tocado pelas palavras dos animais, começou a refletir. Ele percebeu que, apesar de sua riqueza, estava solitário. Ao ver a união e a amizade entre Felix, Bruno e Bela, algo dentro dele começou a mudar. 

“Talvez vocês tenham razão,” disse o homem, com um sorriso tímido. “Eu sempre pensei que a riqueza me traria felicidade, mas agora vejo que a verdadeira riqueza está em relacionamentos. Vocês estão livres. Não quero mais aprisioná-los.” 

Os três amigos, aliviados e felizes, agradeceram ao homem e partiram. Eles aprenderam que, mesmo diante da adversidade, o diálogo e a compreensão podem mudar corações. 

Moral da Fábula
A verdadeira riqueza não está na posse, mas na amizade e na liberdade. Quando respeitamos os outros e buscamos entendimento, podemos transformar até os corações mais gananciosos.
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Fontes: José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Renato Frata* (Letra perdida)

Fuçando gavetas, papéis amarelados sorriram. 

Achar o passado que se perdera, às vezes, faz bem; cria a conexão mágica que só o vivido consegue com o ontem, virando hoje e revivendo, mesmo que por segundos, fato cuja importância marcou o dia, a época com seus borrões, e que o tempo, o mais poderoso dos sabões, se esqueceu.

Peguei o maço de folhas ali deixadas e senti, ainda, a baba seca do destilado de outrora pregada sobre as linhas oscilantes do texto, e me repugnei: um tênue cheiro de coisa azeda exalou do papel, calando-me. 

Fui mesmo um insano ao regurgitar, lá atrás no tempo, sobre o escrito. Nunca se deve deixar que a baba escorra pelo trabalho. 

Quanto às linhas sinuosas do amarrado amarelo, uma explicação; o alinhamento desregulado da máquina de escrever fê-la tão bêbada quanto o datilógrafo ao compor o texto em que descreveu que "a noite escura galopava a tristeza de um amor perdido e, nesse negror, estrelas riscadas a carvão estampavam um céu de mortalha".

Tétrico, diria, se compreendesse o texto. 

Devia mesmo estar muito bêbado para ter escrito coisas assim.

Quem consegue barrar a ânsia do embriagado? 

Palavras e ideias somatizam no álcool o medo/melancolia que o absorve, e faz simplesmente o que o coração determina. 

São energias expelidas como varetas em leque a se espalhar pelas veias, até chegarem ansiosas às pontas dos dedos.

Dizia o texto também que "cães vadios lhe serviriam de companhia aos espinhos da solidão" e que "as horas passavam mais lentamente que os goles que dava na bebericagem de um copo sebento e pastoso", como se o copo cheio a se tornar vazio, fosse ou servisse de medida de tempo...

Até que em determinada frase, que reclamava de alguém, uma expressão deixou-me mais perplexo: "... esse amor de mulher solúvel…

Mastigando as bochechas, parei de ler.

- Péra aí! Alguma coisa está errada. Mulher solúvel?

Puxei as frases sem sentido e as reli. Por três vezes. E só aí decifrei o que escrevera na escuridão dos sentimentos não correspondidos.

E não me fiz de rogado; perdoei-me pela pasmaceira etílica deixada envelhecer bêbada nas folhas babadas, pois me lembrei que a velha máquina desalinhada, certa vez, caiu ao chão, deixando escapar, para nunca mais ser encontrada, a bendita letra "V".

No êxtase alcoólico, a letra sumida foi substituída pelo "S", como a cuidar da agonia que a inspiração impunha, livrando, naquele momento, o rapazote de bem-querer, amarrotado pelo desprezo de uma mulher, ao seu ver, volúvel.

O amor contém razões que nem ele mesmo conhece - dizem, mas sempre deixa um rastro, às vezes amarelado e malcheiroso, que pode se tornar incógnita quando se mistura letra que se perdera... vivências que marcaram... paixões evaporadas com o álcool ingerido no ar pesado do quarto de solteiro, de república de jovens esperançosos. 

E enamorados.

Costumeiramente embriagados.
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* Renato Benvindo Frata nasceu em Bauru/SP, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Professor da rede pública, aposentado do magistério. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor
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Célio Simões* (Bicho de sete cabeças)

Trabalhei quase a vida inteira, sustentei minha numerosa família e exerci com dignidade minha profissão de advogado fazendo uso de uma máquina datilográfica Remington cuidadosamente guardada até hoje, com a qual nos fins de semana escrevi muitas das crônicas que publiquei em vários jornais e revistas.

De repente, passei a encontrar dificuldade de comprar as fitas de cores pretas e vermelhas, os carretéis e até mesmo garimpar alguém que se dispusesse a proceder a uma prosaica limpeza no equipamento, pois foram desaparecendo os mecanógrafos, na mesma proporção que sumiram os sapateiros, os alfaiates, os leiteiros que vendiam seu produto de porta em porta e tantas outras atividades. Essa cruel realidade, que eliminou os datilógrafos da vida nacional, tem um responsável, que veio para ficar e se tornar irreversível em nosso dia a dia – o computador.

Resisti o quanto pude, porém paulatinamente fui sendo cercado por essa engenhoca, em casa, no escritório, nos caixas eletrônicos dos bancos, nas salas de audiências (“… doutor, a ata o senhor recebe pela internet”, dizem as secretárias…), nos fóruns e ofícios de justiça, nos Tribunais, no Ministério Público, enfim, em todas as frentes das quais não pode fugir quem vive numa cidade e exerce qualquer atividade profissional, em especial, a advocacia. Até médico não olha mais para o paciente. Este diz onde dói e o doutor consulta de imediato o monitor, como que a perguntar: – E aí amigão, o que esse sujeito tem?…

Depois de muita insistência e com uma baita desconfiança, guardei a máquina datilográfica e passei a dar os primeiros passos na computação, sob a orientação dos meus três filhos, cada qual deles o mais solícito para incutir na minha cabeça dura os conceitos mais elementares daquele avanço tecnológico, sem o qual atualmente nada se faz. Passaram eles mais de dois anos tentando, até chegarem à mesma conclusão:

– “Ele tem dificuldade de aprender e quando aprende, esquece depressa…”.

Todos desistiram, cada qual com uma desculpa esfarrapada. Falta de tempo, um. Excesso de tarefas, outro. Carência de paciência, o terceiro. Recebi da minha mulher um sábio conselho:

– Por que você não se matricula num curso de computação?

– Pelo simples fato de que não vou pagar mico nesta idade.

Teimei mais um ano remando contra a maré. Dependia de tudo e de todos para simplesmente ligar o aparelho, quanto mais realizar as operações que me permitiriam redigir um singelo texto para anexar a um processo, cuja impressão ficava para o dia seguinte, quando alguém colocava a impressora para funcionar. Assim, temendo perdas, os prazos judiciais para mim passaram a acabar na véspera.

Chegou o dia em que eu mesmo fiquei convencido da necessidade de buscar orientação com gente do ramo e sorrateiramente, como que pedindo desculpa para mim mesmo, matriculei-me sexta-feira em uma escola existente a uma quadra de casa, que me permitiria ir a pé, sem o sufoco da falta de estacionamento, assim libertando-me da ditadura dos flanelinhas.

Atendeu-me um cidadão magrinho e diáfano, cabelos louros em desalinho, olhar esperto, estatura mediana e pele esbranquiçada como se nunca tivesse ido à rua ou a uma praia tomar sol, parecendo personagem surgido de um museu de cera. Mas era muito educado. Após acertarmos o preço do curso, marcou minha primeira aula para a segunda-feira subsequente. E ante a revelação de que eu nada entendia de computadores, procurou me acalmar:

– Fique tranquilo. Comigo, em 30 dias, o senhor vai dar um show!

Saí dali entusiasmado, raciocinando com meus botões: – “Essa molecada vai ver só se ainda vou viver de favores…”. Ao mesmo tempo, aquele aceno de mil facilidades despertou-me a desconfiança, pois tenho severas restrições contra bazófias e recebo com reserva as promessas de milagrosas vantagens, sejam de vendedores ou prestadores de serviços, capazes de tudo para faturar em cima dos incautos.

Segunda-feira, 19h, lá estava eu firme na minha carteira, a cara no chão de vergonha, porque em torno de mim só tinham jovens, os quais me olhavam como se eu fosse um extraterrestre. Mais um pouco e entraram na sala diversos instrutores, inclusive o “museu de cera” que tratara antes comigo. Efusivo, cumprimentou-me, fez-me repetir alto meu nome a guisa de apresentação e para não me rotular de velho, apelou para um eufemismo:

– Atenção, nosso colega “veterano” nada sabe de computador. Vamos ajudá-lo a se tornar um craque…

Ninguém riu, e eu muito menos, pois estardalhaço em torno do meu analfabetismo virtual era tudo o que eu não queria naquele momento. O tal sujeito, em vez de ir embora, puxou uma cadeira, sentou ao meu lado em frente à tela de um computador e iniciou a sessão de tortura:

– Hoje nós vamos estudar um pouco de HARDWARE, SOFTWARE, SLOTS e BARRAMENTO. Hardware são todas as partes físicas que formam o computador, sabia?

– Se o senhor está dizendo…

– Placa mãe ou Mother Board é o elemento central de um microcomputador. É uma placa onde se encontra o micro e vários componentes que fazem a comunicação entre ele com os meios periféricos externos e internos, entendeu?

– Parceiro, dá pra deixar a mãe fora dessa história?

– Calma, não é isso que o senhor está pensando. A mãe é a do computador, inserida numa placa…

– Ainda bem parente, senão não ia prestar…

– Então vamos continuar. Além da placa mãe (…a dele, por via das dúvidas…), temos ainda a placa de vídeo, a placa de som, a placa de fax/modem e a placa de rede. Já ouviu falar delas?

– De rede já, eu nasci dentro de uma…

– O senhor é um gozador. Lembre que esta é apenas nossa primeira aula e temos que acelerar. Não se esqueça dos 30 dias que lhe falei – disse o professor – abrindo uma apostila e continuando a aula:

– Vamos falar um pouco de SOFTWARE. O senhor sabe que a isso se chama um conjunto de instruções que juntas tentam resolver problemas do cotidiano. Eles possuem uma sequência que são construídas através de uma linguagem de programação, “fácil de ser assimilada”, denominadas de aplicativos: WORD, EXCEL, CALCULADORA, AUTOCAD, PHOTOSHOP, WINDOWS, LINUX, UNIX, SOLARES, CD-ROM PARA APRENDER O ALFABETO, SHOW DO MILHÃO, etc.

Comecei a me sentir tonto. Um suor gelado inundou minha pele, mas procurei mostrar interesse:

– Mestre, que mal lhe pergunte, esse tal de Show do Milhão tem alguma coisa a ver com o Sílvio Santos?

– Não disse que o senhor é um gozador?…

– Sabe como é; a mensalidade é cara e eu tenho o direito de perguntar…

– Fique frio, disse o instrutor. Vamos aproveitar o tempo que resta (fez um gesto com o braço e apertou a vista olhando para o relógio de pulso) para conversarmos um pouco sobre Internet. Já ouviu falar?

– Já, mas não manjo nada. Só sei escrever na minha Remington…

– O que é isso?

– Nada, deixe pra lá…

– Bem, como eu ia dizendo, na Internet tem a HOMEPAGE, o DOWNLOAD, o UPLOAD, os SITES, os LINKS, HYPERLINKS, a praga dos SPAMS, SHAREWARE, FREEWARE, SITES DE BUSCA e PESQUISA, LISTA DE DISCUSSÃO, E-COMERCE, ANTIVIRUS, FIREWALL, VIRUS, JAVA, HTML e os COOKIES. Qual deles é do seu conhecimento?

– Professor, o senhor ainda não entendeu. Não conheço nada de computador, quanto mais de Internet.

– Perdão, tinha me esquecido. Vou fazer um resumo do que é isso: – A Internet reúne mais de um bilhão de pessoas, chamadas de internautas, funcionando com perfeição sem controle de ninguém. Uma entidade privada, a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers, com sede na Califórnia, sem intuito de lucro, faz a administração dos endereços da web, embora a Internet que hoje conhecemos, a World Wide Web, tenha sido inventada em Genebra, na Suíça, pela maior organização científica mundial, a Conseil Européen pour La Recherche Nucléaire, que recentemente criou o colisor de hádrons, um acelerador de partículas que pretende fazer colidir prótons em busca de vida em outras dimensões. Ficou claro agora?

– O pessoal de Óbidos já sabe disso?

– Óbidos? Não sei. Nunca estive na Ilha do Marajó…

– Olha aqui cara, vê se não sacaneia. É a minha cidade e não fica no Marajó. Tu pode ser bamba na informática, mas em geografia…

– Não se aborreça, não sou paraense, cheguei há pouco a Belém e acho que estou indo rápido demais. Voltemos apenas ao computador, para conhecimento das barras de ferramentas. Vamos descobrir os principais recursos existentes na barra de menus como ALT + A; ALT + E; ALT + X; ALT + I; ALT + F; ALT + M; ALT + B; ALT + J e ALT + U. Há também um detalhe importante, que o senhor deve ter sempre na cabeça. São os BITS e os BYTES, pois eles calculam o tamanho das informações. O BIT é a menor unidade de processamento de dados. Um BYTE é o conjunto de 8 bits, ou seja, 1 BYTE é igual a 8 BITS. Partindo dessa certeza, é fácil calcular que 1 KB é igual a 1024 Bytes; 01 MB é igual a 1024 KB e 1 GB é igual a 1024 MB. Eu vivo dia e noite na frente do computador e sei tudo isso de memória (“… não é a toa que esse treco é da cor de uma estearina, pensei…”). Alguma dúvida?

– Eu já posso ir pra casa?

– Claro que sim. Acho que o senhor foi muito bem para quem nada sabia. Desligue o computador e até amanhã.

Quando, respirando aliviado, já me dirigia à porta de saída, olhei para trás e vi o “museu de cera” tirando um pedaço de papel do bolso e me chamando pelo nome:

– Sim?…

– Aproveite as horas de folga para decorar uma coisa importante. Está escrito nesse papel, que dou para todos os meus alunos. Recoloquei as lentes e li: TIPOS DE CÓDIGOS: .org: site organizacional; .gov: site governamental; .edu: site educacional; .mil: site militar; .br: site brasileiro; .ar: site argentino; .us: site norte americano; .jp: site japonês. Por Deus que está no céu pensei, horas de folga eu não tenho; e pra que eu ia querer site americano, argentino ou japonês? Meu único objetivo era escrever minhas petições, só isso.

Cheguei em casa arrasado. Só não dei um beijo na minha máquina de datilografar porque ela estava num canto do armário, coberta de poeira e cheia de teia de aranha. Fiquei saudoso das aulas no teclado, na Escola São Francisco, de propriedade da minha querida mãe: A S D F G e pronto! A gente ia aprendendo as teclas por fileiras, inicialmente da esquerda para a direita, depois os números e um dia fazíamos a prova, quando o risco de reprovação era remoto e ocorria apenas se o candidato fosse muito bronco. Tudo sem a torrente de explicações com que fui bombardeado naquela maldita aula.

Perdi o dinheiro da matrícula, porém nunca mais coloquei os pés na tal escola, que acabou falindo, pois no local hoje funciona uma lanchonete. Confessei minha desolação ao meu filho caçula, que penalizado me deu de presente um computador de terceira mão, prontificando-se a me ensinar tudo nas nossas raras horas ociosas.

– Toma, pai. Vai aprendendo neste…

Tenho evoluído aos poucos. No escritório, já redijo e imprimo minhas petições sem maiores dificuldades e por cautela contratei um técnico para os reparos nessa máquina maravilhosa, pois em nossos frequentes conflitos e desacertos, invariavelmente saio derrotado. Mesmo a tal internet não é um bicho de sete cabeças. Vivia esquecendo minha senha, até decorá-la sem atropelos. Criei um e-mail fácil de memorizar, pois era o nome do nosso cachorro de estimação, somente trocado quando o afável vira lata morreu de velhice. Estou convencido que dessa ferramenta não posso prescindir para o exercício profissional. Fazer o quê?

Cada vez menos me lembro da velha Remington, que continua em completo desuso. Meu novo amor agora é o laptop da Itautec, mesmo com evidentes sinais de fadiga. A bateria pifou de vez e ele somente funciona ligado diretamente à tomada, o que prejudica sua portabilidade. Levei-o a uma loja especializada para fazer a devida substituição, mas não houve jeito. O atendente foi direto ao ponto:

– Não se fabrica mais bateria para esse tipo de computador e se fabricasse, não ia compensar. O preço seria quase igual a um computador novo. Sugiro que o senhor aproveite nossa promoção.

– Moço, não é bem o preço, mas eu já me acostumei com este.

– Mas a diferença é pequena para um novo. Muda apenas o sistema operacional.

– Como assim?

– Agora só vendemos Windows 7. O seu ainda é Windows XP.

– E onde está o “XP” da questão?

– É a interface!

Interface? Lembrei imediatamente do “museu de cera”. Ia começar tudo de novo. Agradeci, fui saindo à francesa e voltei para casa acariciando o velho laptop pousado no meu colo, enquanto dirigia o carro com apenas uma das mãos. Nenhum guarda me multou por causa disso…
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(*) O autor é advogado, escritor, palestrante, poeta e memorialista. É membro da Academia Paraense de Letras, da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Artística e Literária de Óbidos, da Confraria Brasileira de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós.

Fonte: Uruá Tapera. 08 julho 2021
https://uruatapera.com/bicho-de-sete-cabecas-3/ 
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Estante de Livros (“A Viúva Simões”, de Júlia Lopes de Almeida)

"A Viúva Simões" (1897) é um romance da escritora brasileira Júlia Lopes de Almeida, considerado um clássico da literatura brasileira.

RESUMO

A história segue a vida de Carolina Simões, uma jovem viúva que retorna ao Rio de Janeiro após a morte do marido. Carolina é uma mulher inteligente, independente e determinada, que busca reconstruir sua vida.

ENREDO

1. Retorno ao Rio: 
Carolina volta para a casa de sua família, onde encontra seu pai doente e sua irmã solteira.

2. Conflitos familiares: 
Carolina enfrenta pressões para se casar novamente, mas resiste à ideia.

3. Amizade com Fernando: 
Conhece Fernando Seixas, um jovem escritor, com quem desenvolve uma estreita amizade.

4. Desenvolvimento sentimental: 
Carolina e Fernando começam a nutrir sentimentos um pelo outro.

5. Obstáculos sociais: 
A sociedade não aceita o relacionamento, devido à diferença de classe social.

6. Crise e resolução: 
Carolina enfrenta uma crise pessoal, mas finalmente encontra a felicidade com Fernando.

ANÁLISE

Crítica social: 

O livro critica a sociedade brasileira da época, abordando temas como:
- A opressão feminina.
- A hipocrisia da classe alta.
- A importância da educação.

Feminismo: 
Carolina é um exemplo de mulher independente e autônoma, lutando contra as convenções sociais.

Amor e liberdade: 
O romance explora a busca pela felicidade e liberdade individual.

Identidade feminina: 
Carolina enfrenta desafios para manter sua identidade em uma sociedade patriarcal.

Realismo literário: 
O livro apresenta uma visão realista da vida cotidiana no Rio de Janeiro da época.

Personagens principais

Carolina Simões: Protagonista, viúva, inteligente e independente.

Fernando Seixas: Jovem escritor, amigo e posteriormente namorado de Carolina.

Sr. Simões: Pai de Carolina, doente e conservador.

Irmã de Carolina: Solteira e dependente do pai.

Estilo e influências

1. Realismo literário: Influenciado por autores como Gustave Flaubert e Émile Zola.

2. Naturalismo: Aborda temas sociais e psicológicos.

3. Romantismo: Explora o amor e a liberdade individual.

IMPACTO CULTURAL

1. Influência na literatura brasileira: "A Viúva Simões" inspirou gerações de escritores brasileiros.

2. Representação feminina: O livro contribuiu para a representação mais realista da mulher brasileira na literatura.

3. Crítica social: O romance ajudou a questionar as convenções sociais da época.

Fonte: José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Daniel Maurício (Poética) 81

 

José Feldman (A Solidão das Cadeiras Vazias)

O crepitar dos fogos de artifício ecoava pela cidade, iluminando o céu noturno com cores vibrantes. Era a época do ano em que a alegria parecia contagiar a todos, mas, para muitos, essa festa era apenas um lembrete da solidão. Nas janelas empoeiradas de um pequeno apartamento, Dona Lucinda se acomodava em sua cadeira de balanço, o mesmo lugar que ocupava há décadas. Com um olhar distante, observava os fogos riscando o céu, enquanto lembranças do passado dançavam em sua mente.

Dona Lucinda era uma mulher de noventa anos, cheia de histórias e vivências. Nos tempos áureos, sua casa estava sempre repleta de risadas, familiares e amigos. Ela era a matriarca da família, a que organizava as festas, as ceias, a que contava histórias de um tempo em que o mundo parecia mais gentil. Mas, ao longo dos anos, as perdas foram se acumulando. Filhos que se foram, amigos que se afastaram, e a solidão, silenciosa, se instalou em sua vida.

Enquanto os fogos iluminavam o céu, Dona Lucinda não conseguia evitar a tristeza que a envolvia. A saudade apertava o seu peito. Lembrou-se de como costumava dançar com seu falecido marido, Jorge, sob as estrelas, com a música embalando seus sonhos. “Como o tempo passa”, pensou, enquanto uma lágrima escorria por seu rosto enrugado. O barulho da festa lá fora parecia distante, quase como um eco de um mundo que já não pertencia a ela.

A solidão dos mais velhos, especialmente nas festividades de fim de ano, é um tema que frequentemente passa despercebido na correria das celebrações. Muitas vezes, todos estão tão ocupados com os preparativos, os encontros e as festanças que esquecem que, do outro lado da rua, existem pessoas que gostariam de ser lembradas. A vida moderna, com sua agitação e individualismo, muitas vezes deixa para trás aqueles que construíram as bases da sociedade.

Dona Lucinda não era a única. Em cada esquina, havia histórias semelhantes. O senhor Manoel, que morava no andar de cima, também estava sozinho. Ele costumava ser um contador de histórias, mas agora suas narrativas eram apenas sussurros perdidos no vento. E a dona Rita, que sempre preparava os melhores doces para a ceia, agora se via cercada por caixas vazias, enquanto o cheiro de panetone no mercado a lembrava de tempos melhores.

A conscientização sobre a solidão dos mais velhos deve ser um esforço coletivo. Precisamos olhar para além de nossas vidas agitadas e enxergar aqueles que estão à nossa volta. Um simples gesto – uma visita, um telefonema, ou mesmo um convite para a ceia – pode fazer toda a diferença. É preciso que cada um de nós se lembre que, enquanto estamos cercados de amigos e familiares, há quem deseje apenas um pouco de companhia, quem apenas anseia por um ouvido atento.

Naquela noite de Ano Novo, ao invés de se deixar consumir pela tristeza, Dona Lucinda decidiu fazer algo diferente. Lembrou-se de um projeto que havia começado anos atrás: uma cartinha escrita à mão para cada um de seus netos, contando um pouco de suas memórias e desejos. Com um novo ânimo, pegou papel e caneta e começou a escrever. Enquanto as palavras fluíam, sentiu-se menos sozinha. Era como se, ao relembrar sua história, ela pudesse compartilhar um pedaço de sua vida com aqueles que amava.

A festa lá fora continuava, mas dentro do pequeno apartamento, um novo brilho começava a surgir. A cada palavra escrita, Dona Lucinda sentia que estava, de alguma forma, conectando-se novamente ao mundo. Assim como os fogos de artifício que iluminavam a noite, suas lembranças também brilhavam, oferecendo um vislumbre de esperança.

MORAL:
A vida continua, e a importância de estender a mão a quem está sozinho é uma responsabilidade que todos devemos carregar. Que no fim de ano, ao celebrarmos juntos, possamos sempre lembrar das cadeiras vazias e fazer delas, por um momento, lugares cheios de histórias e amor. Porque, no fundo, cada um de nós é um pouco da história do outro.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Arthur Thomaz (Voo atrapalhado)

O autor é de Campinas/SP
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Jorge Henrique e Mário Jorge, piloto e copiloto de uma companhia internacional, recém-chegados de um longo voo, hospedaram-se no hotel conveniado e, após um pequeno descanso, resolveram se aventurar na noite da cidade.

Indicado pelo concierge, foram até um famoso bar na avenida principal. Sentaram-se à mesa e pediram dois sofisticados drinques por pura ostentação. Ao notar que duas esplendorosas mulheres os fitavam ostensivamente, Jorge perguntou ao amigo se não era estranho o fato delas estarem flertando com dois caras feinhos como eles. Mario brincou dizendo que era por causa das caríssimas bebidas que eles estavam consumindo. Dirigiu-se até a mesa das moças e as convidou para tomar algo com eles.

Algum tempo depois, elas manifestaram o desejo de ir com eles até o quarto do hotel. Acordaram com o som das batidas da camareira na porta. Nus, com as mãos amarradas e sem lembrar nada dos acontecimentos da véspera.

Todos os objetos de valor haviam desaparecido, incluindo dinheiro e cartões de crédito. Entenderam que foram vítimas do famoso golpe "boa noite Cinderela" e, resignados, foram até o distrito policial registrar a ocorrência.

Num requinte de crueldade, as duas levaram seus cintos obrigando-os a improvisar com um barbante cedido pelo gerente do hotel. Segurando as calças, na delegacia ainda ouviram gracejos dos policiais perguntando se as "cinderelas" iriam estrelar filmes da Disney.

De volta ao hotel, colocaram seus uniformes, compraram cintos novos e apresentaram-se para o voo de retorno.

Não foram informados que além da amnésia, a droga que ingeriram permanecia no organismo provocando intensa sonolência.

Entraram na cabine do avião e após a decolagem, Jorge Henrique fez o cumprimento habitual aos passageiros e esqueceu ligado o intercomunicador.

Ao ver Mario Jorge dormindo ao lado gritou que, “não era hora de dormir”.

A moça gordinha da primeira fileira, ao ouvir que o piloto estava dormindo, em histeria, jogou-se ao chão parecendo ter uma convulsão, que passou assim que ela ouviu Alexandre o comissário de bordo, chamar a enfermagem para aplicar-lhe uma injeção. Então ela voltou à poltrona e continuou a gritar, histericamente, que o piloto estava dormindo na cabine.

 Kátia, Valéria e Alexandre, os comissários de bordo, tentavam em vão acalmar os passageiros.

Outra senhora gritava para abrirem a porta porque ela queria descer. Alguns, incluindo os mais fervorosos ateus, pediam ajuda às suas divindades. Ouvia-se gritos por Alá, Jesus, Buda, Ogum, Jeová e até Zeus.

Um marinheiro reformado, aos berros, dizia que era um atentado dos muçulmanos o que foi veementemente rebatido por um jovem barbudo com o Alcorão nas mãos. Quase deflagrando mais um conflito entre ocidente e oriente.

Mais atrás, um homem com as faces vermelhas e que tomava whisky em uma pequena garrafa, bradou que iria morrer; portanto, tomaria mais uma dose.

Três crianças, ao ouvir a palavra morrer, chorando, perguntaram à mãe se elas também morreriam. A mãe, como sempre, respondeu que não sabia e que perguntassem ao papai. O pai, em pânico, sorrateiramente esgueirou-se e foi beber whisky com o homem da face avermelhada.

Nesse momento, levantou-se alguém que parecia um pastor e gritou para que todos levantassem, dessem as mãos e orassem. Aumentou a confusão porque todos se ergueram ao mesmo tempo.

Nesta situação caótica, ouviu-se uma potentíssima voz de um grisalho senhor dizendo que era piloto aposentado e que iria assumir o comando da aeronave no lugar do dorminhoco piloto.

Fez-se um silêncio imediato.

 O senhor dirigiu-se à cabine sob o olhar apreensivo de todos. Com firmeza entrou e fechou a porta da cabine. Antes de desligar o intercomunicador, disse em voz alta a fim de que todos os passageiros ouvissem, que agora assumiria o comando. Desligou o aparelho, acordou o copiloto e disse que não era piloto nem de patinete, mas que na hora achou que era a única solução para acalmar a histeria coletiva.

Pegou o quepe, colocou na cabeça, saiu da cabine e falou aos passageiros que já estava no comando e que todos sentassem para prosseguir a viagem em segurança.

Aclamaram-no aos gritos de mito, herói e outros adjetivos.

A aterrissagem foi tranquila e o novo comandante foi carregado nos ombros dos passageiros por todo o aeroporto. Logo que se desvencilhou da multidão, desapareceu antes que alguém descobrisse que nunca havia sequer entrado em um avião até aquela data.

Fonte: Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: mirabolantes. Volume 2. Santos/SP: Bueno Editora, 2021. Enviado pelo autor 
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